ESTUDO DOS APEDIDOS PRESENTES EM JORNAIS PARAIBANOS DO SÉCULO XIX SOB A ÓTICA DA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO

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Transcrição:

ESTUDO DOS APEDIDOS PRESENTES EM JORNAIS PARAIBANOS DO SÉCULO XIX SOB A ÓTICA DA TEORIA DA ENUNCIAÇÃO Roseane Nicolau 1 Resumo Nos jornais, a cada época, encontramos um exercício dos discursos vigentes no meio social como uma enciclopédia de todas as formas de linguagem, falares concretos e socialmente definidos de uma época. Os Apedidos são textos feitos pela comunidade, que deixam transparecer costumes de uma época e compõem, com outros gêneros textuais, os jornais do século XIX. Nesse trabalho, que faz parte de um projeto maior denominado Projeto História do Português do Brasil (PHPB), temos como objetivo observar e analisar o gênero textual: Apedido, mobilizando as noções de interação verbal, discurso, enunciado/enunciação, gênero do discurso, dialogismo, evento/ato, plurilinguismo, etc., apresentadas por Bakhtin e seu Círculo. Essas noções vêm sendo aplicadas pelas teorias da enunciação que não desconsideram o contexto lingüístico. As palavras, nesses textos, mostram-se reveladoras de valores, atitudes culturais e modos de expressão da época em que circularam; possibilitam também o reconhecimento da riqueza dos recursos da língua utilizados nessas mensagens e as intenções nelas marcadas numa visão histórica orientada para e por uma perspectiva dialógica da linguagem. Foi possível, através desse estudo, constatar que: a) o Apedido, discursivamente, é o registro daquilo que foi escrito numa dada situação enunciativa, ou seja, é um documento de uma época fiel às relações sociais; b) por meio desse gênero textual é possível um diálogo com o passado (memória) e com todo o seu processo constitutivo; e c) o discurso do enunciador do Apelido apresenta-se como um discurso do cotidiano, de um sujeito responsável e responsivo em sua atuação social. Palavras-chave: Enunciação. Gêneros textuais. Apedidos. Jornais do Século XIX Introdução Gilberto Freire destaca, na década de 60 do século passado, que os apedidos e anúncios do século XIX, mais do que os livros de história e os romances, apreendem aspectos da vida sócio-cultural, bem como da linguagem praticada naquela época e as relações nela implicadas. A riqueza discursiva destes textos plurilinguísticos é infinita, organizada e carece de estudo. Nessa pesquisa, pretendemos conhecer um pouco mais dessa realidade discursiva que se encontra nos jornais paraibanos do século XIX, guardada no acervo da Casa Fundação José Américo (CFJA) em João Pessoa-PB, realizando uma leitura dos apedidos, de sua finalidade comunicativa, e das formas textual-enunciativas que esse gênero discursivo usa para poder atual e interage com os leitores. Por meio de uma pesquisa exploratória, explicativa e descritiva, buscamos fazer uma aplicação das teorias lingüístico-discursivas que partem da visão de Bakhtin e seu Círculo e de outras que trabalham ao mesmo tempo com o linguístico e com o histórico em gêneros jornalísticos diversos; e, assim, alcançar o objetivo ao qual nos propomos. Entendemos que o diferencial desta pesquisa reside no fato de centramos no fazer discursivo de uma atividade que surge de uma necessidade social de divulgar fatos diversos 1 Professora do Departamento de Ciências Sociais da UFPB Campus IV/Litoral Norte

numa época remota. Ressalta-se que esse exercício de análise em textos antigos já vem sendo realizado por grupos de pesquisadores que resolveram compor uma frente de trabalho na busca de fontes inéditas para análises linguísticas em manuscritos, oficiais e particulares, enfim de textos da imprensa cujas primeiras manifestações datam do século XIX. Na Paraíba esse projeto vem sendo desenvolvido, deste 2004, por um grupo de pesquisadores da UFPB (Universidade Federal da Paraíba) e tem por finalidade dar a conhecer a produção linguística paraibana dos jornais dos séculos mencionados. Alguns conceitos iniciais: discurso, interação, linguagem e gênero discursivo O discurso, para Bakhtin e seu círculo é uma construção coletiva de uma realidade interativa que faz parte de toda atividade de linguagem, estabelecendo efeitos de sentido dentro do processo de comunicação que vai além do linguístico. Segundo Brait (2001, p.194) define a interação verbal como um fenômeno sociocultural, com características lingüísticas e discursivas passíveis de serem observadas, descritas, analisadas e interpretadas. As interações podem ser interpretadas, observando, não apenas o que está sendo dito na sua materialidade lingüística, mas também nas formas e nas maneiras de dizer; o que permitirá que se revele e evidencie a interação. Nessa observação, devemos levar em conta as marcas que permitem reconhecer a intencionalidade do enunciador, os efeitos de sentido constitutivos e instaurados e, por fim, a persuasão e manipulação que o enunciador busca exercer sobre o enunciatário. Isso porque, o enunciado, resultado de produto da interação social que está ligado a uma situação material concreta de comunicação, está ligado a um contexto mais amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma comunidade linguística específica. Conforme Bakhtin (2000), é sobre a diversidade de atos sociais emitidos pelos diversos grupos linguísticos e, consequentemente, sobre a diversidade de produções de linguagem que constituem sistemas diferentes e que forma o todo discursivo. É na visão de discurso como um processo dialógico que se forma a concepção de linguagem, enquanto uma atividade interativa e o texto como uma estrutura inacabada, sempre em formação. Complementando com expressões do próprio Bakhtin (2002): toda palavra, todo discurso, todo enunciado, todo texto não deve ser visto, sobretudo, da perspectiva da sua vida concreta de seu ato de produção. Vemos que para Bakhtin, os elementos linguísticos constituem apenas uma face do enunciado, sendo a outra a situação extra-verbal. Conforme Todorov (1981), a existência dessa última face do enunciado não foi negada pela Linguística antes de Bakhtin; mas, sim, considerada como um elemento exterior do enunciado. Desta maneira, Bakhtin forma a definição de enunciado como sendo a reunião dessas duas instâncias: os elementos linguísticos e os elementos do discurso, que não são elementos oponíveis, mas implicados em cada ato enunciativo de produção do enunciado. Até mesmo na reprodução do texto pelo sujeito, por meio de uma releitura, de uma citação, é um evento novo, é um elo novo na cadeia histórica da interação verbal (BAKHTIN, 2002). O fato de ser um evento novo, não-reproduzível não implica ser o enunciado individual, ao contrário, implica ser estritamente social; cada uma das instâncias que o compõem é contemplada por Bakhtin enquanto forma e função específicas dessa individualidade, bem como representante de um contexto, uma forma de vida social. E é do equilíbrio entre os elementos heterogêneos, constitutivos do ato enunciativo, que surge o conceito bakhtiniano: dialogismo. Para Bakhtin (2000), qualquer enunciado está ligado a uma situação material concreta, bem como a uma esfera mais ampla que constitui o conjunto das condições de vida de uma comunidade linguística. Cada esfera elabora tipos relativamente estáveis de enunciados, isto é, gêneros do discurso, que se caracterizam por seu conteúdo temático, estilo e unidades composicionais dimensões que refletem a esfera social em que são produzidos e modificados. Bakhtin chama atenção para o fato de que a linguagem, as enunciações só ganham significação e sentido quando inseridos em um contexto ou situação social determinado. A situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por

assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação. (BAKHTIN, 2002; p.113). Ou seja, a rede de significações possíveis só poderá ser significada, se compreendida no contexto analítico. Para Bakhtin, quando a atividade mental se realiza sob a forma de enunciação, esta adquire maior complexidade devido à exigência de adaptação ao contexto social imediato e aos interlocutores concretos da qual fazem parte. Bakhtin considera a língua enquanto atividade social, em que o foco do interesse está não no enunciado, mas na enunciação. A língua seria para ele um fato social (e não individual), originado da necessidade de comunicação. Para Bakhtin, (2002; p.123): A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua. A análise e distinção desses gêneros, como postula Bakhtin, são de grande importância para o estudo lingüístico de forma geral, e não podem ser ignoradas, por favorecer a compreensão da natureza do enunciado. Para melhor compreender o funcionamento dos gêneros e, consequentemente, a natureza do enunciado, se faz necessário conhecer seus suportes. Segundo Marcuschi (2003, p.10), o suporte é imprescindível para que o gênero circule na sociedade. Porém, é preciso confrontar e diferenciar suporte, de canal ou meio de condução. A noção de canal é mais ampla e difusa, abrigando, conforme Marcuschi, todo tipo de fenômeno inclusive suporte. Suporte, conforme Marcuschi (op.cit, p.11), é um lócus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação, tendo como função básica fixar o texto e torná-lo acessível para fins comunicativos. Já o canal é um meio físico que veicula, transporta e faz circular o texto. Em suma, o canal seria o condutor do texto e o suporte, o fixador deste. As fronteiras entre suporte e canal dependem mais da perspectiva de observação. No caso do jornal, por exemplo, este pode ser considerada um canal quando visto como um veículo de comunicação de massa, como um canal de transmissão ou pode ser considerado como um suporte por suportar, fixar diversos gêneros, como: crônicas, notícias, charges, informes, anúncios e os apedidos. O Gênero Apedido O Apedido, gênero impresso encontrado nos jornais brasileiros do século XIX, faz parte de um espaço discursivo publicitário que visa à divulgação de um fato de forma pública ou, ainda fazer circular uma informação uma diversidade de textos de denúncias, avisos, comunicados etc. A intenção maior deste nosso estudo é ampliar os conhecimentos sobre os Apedidos que circularam nos jornais do século XIX. Observar o seu papel para a formação do arcabouço midiático de hoje, bem como a relação desse gênero de comunicação com as condições de enunciação da época e as formas textual-enunciativas pelas quais os discursos se concretizam. Análise de apedidos do século XIX Selecionamos dois apedidos para fazer um estudo de aspectos lingüísticos e discursivos e, também, históricos do gênero apedido do século XIX, tendo como base as teorias enunciativas propagadas por Bakhtin e seu círculo que consideraram o enunciado com um produto da interação social que está ligado a uma situação material concreta de comunicação.

No que se refere ao tema tratado nos Apedidos, há uma variação conforme a necessidade da população. Esse gênero é uma prática discursiva, reflexo modo de vida do povo brasileiro no século XIX. Vale ressaltar que, como não havia jornais-empresas como hoje, o local de elaboração e de impressão desses jornais, e de seus anúncios eram as tipografias. Nas tipografias do Brasil - Império tanto se redigiam anúncios e notícias sobre a Colônia quanto se faziam diversas transações comerciais. Os jornais do século XIX prestavam-se ao serviço de utilidade pública, divulgando, dando a conhecer, fazendo circular preocupações e desejos da comunidade. E, por meio destas ações, destas formas de dizer que circulavam socialmente, passamos a conhecer uma época, fragmentos do século XIX, considerado por alguns historiadores como um século fundante, base formadora da nossa civilização atual. Toda palavra, todo enunciado, desses Apedidos que serão analisados, relembrando Bakhtin, deve ser visto da perspectiva da sua vida concreta de seu ato de produção, da sua prática discursiva e de sua historicidade. Podemos perceber claramente que o real da História se apresenta no real da língua (Brandão, s/d), quando a imprensa, através de enunciados concretos, fez circular discursos de uma sociedade que via no gênero Apedido uma forma de contato, de relacionamento, ao informar um fato ou realizar uma denúncia ou, ainda, costumes vigentes na época. Como podemos depreender nas análises que seguem: O discurso do anúncio tratado através da teoria de enunciação corresponde a uma relação do locutor com a língua em determinado tempo e lugar em função de um ato, ação sobre o qual se estar em acordo ou desacordo. Aos dous moços que residem c[ilegível]junctamente, a rua da Manguei ra desta cidade, pede-se que cohi- bam-se de praticar escândalos. Semelhante procedimento não está naturalmente de accordo com a educação que receberam. Respeitem as famílias que por suas infelicidades habitão a mesma rua. Se não formos attendidos em tão justo pedido, fiquem na intelligen- cia de que não trepidaremos em de- cli[ilegível]ar seus nomes já bastante co- nhecidos do publico. Os 2 V, Gazeta da Parahyba, 20 de maio de 1888. Neste anúncio acima, percebe-se que havia práticas de exercícios de coersão por parte da comunidade local. Nesse anúncio-denúncia, a relação entre o eu e o tu é essencial para que o ato de linguagem se torne discurso. Essa relação de interação o locutor-anunciante se volta para seu interlocutor como uma resposta a uma ação (praticar escândalos). No caso do anúncio de jornal, essa relação entre interlocutores adquire novos contornos pelo fato de que a palavra do locutor toma dimensão pública, não ocorrendo, assim, o contato face a face. O discurso é disseminado por coerções sociais (no caso do anúncio coibir uma ação anti-social), está assentado sobre vozes sociais (da justiça e do bom costume) que, por sua vez, corresponde a formações ideológicas. Porém é no estilo que se percebe a presença de um sujeito no enunciado que instaura o discurso-anúncio-advertência e que tomará providências, caso o seu discurso (assentado sobre vozes sociais) não seja considerado. Assim o particular está necessariamente em diálogo com o coletivo, deixando ver, em seu conjunto, o participante da interação em que se insere e que, por força da dialogicidade, incide sobre ações do passado e do futuro. LENÇO PERDIDO. Da casa do Sr. Dr. Cordeiro, na noute de 8 dé Setembro p. p. levaram, naturalmente por engano, um lenço finamente borbado em cambraia de li- nho. E como não tenha sido até hoje restituido á sua donna, sem duvida porque a pessoa que o le- vou ignora onde ella mora, declaramos que podem leval-o ao escriptorio desta folha, ao Largo de S. Frei Pedro Gonçalves n. 8, onde encontraráõ pes- soa competente para recebel-o; do contrario ver- nos-hemos forçados a publicar o nome dessa pes- soa, pois sabe-se quem é. O Conservador, 29 de setemembro de 1875

Na análise considera-se a concepção de ato num sentido ativo e durativo, proposta por Bakhtin e seu Círculo, em vez do ato tomado apenas post-factum. Trata-se do ato como uma ação concreta, no mundo-vivido, intencional, praticado por alguém situado, não transcendente. Ato que apresenta caráter de responsibilidade - que se responsabiliza por seus próprios atos e responde a alguém ou a algo na corrente de comunicação. É interessante observar, nesse anúncio, o que gerou o ato, no caso, uma reação a uma dada ação física (ficar com o lenço) na qual o sujeito situado constrói o sentido. A materialidade constitutiva do ato em si, desse texto, já existe, uma vez que se trata de um Apedido, gênero que se presta para o ato de divulgação diversa, inclusive esta, de apropriação indevida de algo, no caso, um lenço; mas esse fato é atualizado, postulado, recriado pelo sujeito enunciador em conformidade com o momento que se mostra singular, no qual reside uma intencionalidade o que esse enunciador quer com esse ato, uma atitude, uma reação física (entrega do lenço) -, resultando num ato responsível que envolve o conteúdo do ato, seu processo, e, unido-os, a valoração/avaliação fundado na tríade eu-para-mim, eu-para-o-outro e o-outro-para-mim (SABRAL, 2005). O valor dado ao ato se constrói dessa concepção relacional do sujeito estabelecida por Bakhtin podendo ser visualizada no anúncio em que o enunciador se coloca como dono do lenço, e o outro para ele como possuidor de algo que não lhe pertence. Dessa relação de posse do lenço surge o ato do sujeito/dono do lenço, que reclama a posse por ser o legítimo dono, sendo, portanto, por meio do ato que se toma consciência da ação de posse e da posse indevida. Esse ato pode ser compreendido levando-se em conta o contexto mais amplo em que não querendo dirigir-se a pessoa pericialmente, serve-se do jornal para fazer a declaração e o pedido se devolução, seguido de uma ameaça. A análise restrita do conteúdo desse anúncio visto apenas como produto acabado não permite ver o processo complexo do ato, o evento que lhe serve de cenário enunciativo e o complexo emaranhado de razões que podem vir a justificar a realização do ato. O processo do ato que o faz ter existência deve ser reconhecer, o contexto também se faz presente na arquitetônica do ato. Considerações finais Os apedidos têm sua interpretação feita no interior de uma determinada formação discursiva, marcadamente histórica e que pode ser resgatada não só pelas marcas linguísticas, mas, sobretudo, no cruzamento da língua com a histórica, nas suas condições de produção. Como pudemos constatar nos apedidos analisados, sob a ótica das teorias enunciativas, que uma grande quantidade de anúncios do século XIX reflete uma prática discursiva, de um modo de vida do povo brasileiro em formação. Era apenas por meio dos jornais do século XIX que circulavam informações ou a promovia a venda de produtos e de serviços uma vez que não existiam ainda no nosso país outros meios de comunicação de massa. Dessa forma, pudemos apreender aspectos linguísticos e sociais de uma comunidade discursiva do século XIX representantes de um contexto, de uma forma de vida social. Referências BAKHTIN, M.(VOLOCHÍNOV). Marxismo e Filosofia da Linguagem. (1ª edição 1929).Tradução: Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Editora HUCITECANNABLUME,10ª edição, 2002. BAKHTIN, M. Discurso na vida e discurso na arte (sobre a poética sociológica) trad. Carlos Faraco e Cristivão Tezza, a partir da tradução inglesa de I. R. Titunik Discourse in life and, discourse in art concerning sociologial poetics. In: Freudism. New York: Academic Press, 1976 (cópia xerox).

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