Figura 1 Representação esquemática da estrutura molecular do desmosoma (adaptado de Sen-Chowdhry et al. JACC 2007)

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Tema 4 Rev. Medicina Desportiva informa, 2013, 4 (3), pp. 18 22 Miocardiopatia (displasia) arritmogénica do ventrículo direito dificuldades e implicações do diagnóstico em atletas Dr. António Freitas 1, Dr. Pedro Magno 1, Dra. Virgínia Fonseca 2 1 Cardiologistas, Centro de Medicina Desportiva de Lisboa e Serviço de Cardiologia, Hospital Fernando Fonseca; 2 Docente da Área Científica de Cardiopneumologia, Escola Superior de Tecnologia da Saúde de Lisboa Resumo / Abstract A Miocardiopatia Arritmogénica do Ventrículo Direito (MAVD) é uma doença cardíaca hereditária, com um largo espectro de manifestações clínicas, das quais se destaca a predisposição para arritmias malignas e morte súbita, especialmente em indivíduos jovens e atletas 1,2. As alterações eletrocardiográficas e as arritmias ventriculares são as manifestações mais freqüentes da doença, podendo ocorrer precocemente antes das alterações estruturais, detectáveis pelos métodos de imagem. O diagnóstico pode ser extremamente difícil, tendo sido propostas recomendações para apoiar o diagnóstico clínico 4. Nos atletas a forma mais comum de apresentação é a doença subclínica, com alterações estruturais ligeiras e risco arrítmico elevado. O diagnóstico diferencial entre adaptação fisiológica ao treino físico e MAVD é por vezes dificil. Por outro lado, o treino físico pode acelerar a progressão da doença e desencadear arritmias malignas, razão pela qual uma vez estabelecido o diagnóstico é uma contraindicação formal para desporto de competição. (VD) por tecido fibroso e adiposo, que constitui o substrato para arritmias ventriculares 1. A prevalência da MAVD tem sido estimada entre 1:2000 e 1:5000, com importante variação geográfica, admitindo-se que globalmente esteja subavaliada. O espectro das manifestações clínicas varia desde as formas assintomáticas, com alterações morfológicas mínimas, até às formas de expressão clínica mais florida, em que predominam as alterações do ritmo e manifestações de insuficiência cardíaca congestiva (Figura 2). De salientar que na fase subclínica as arritmias malignas e a MS podem ser a primeira manifestação da doença. Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy (ARVC) is an hereditary heart disease, with a wide spectrum of clinical manifestations and early predisposition for life-threatening arrhythmia and sudden cardiac death, especially in young patients and athletes 1,2. ECG abnormalities and arrhythmias are the most frequent manifestations of the disease and may occur early before detectable structural changes. The diagnosis may be very difficult and task force criteria have been proposed to help in the clinical diagnosis 4. In athletes subclinical disease with mild structural changes and high arrhythmic risk are the most common clinical profile. The differential diagnosis between physiological adaptation and ARVC is challenging. Exercise training may be arrhytmogenic and acelerate phenoype expression and penetrance of the disease. When the diagnosis is established competitive sports is not allowed. Palavras-Chave / Keywords Miocardiopatia arritmogénica do ventrículo direito, morte súbita, atletas, desporto de competição. Arrhythmogenic right ventricular cardiomyopathy, sudden death, athletes, competitive sports. Introdução A Miocardiopatia Arritmogénica do Ventrículo Direito (MAVD) é uma doença cardíaca hereditária, com transmissão autossómica dominante, causada por mutações nos genes que codificam a síntese das proteínas desmosómicas (Figura1), responsáveis pela estabilidade mecânica e transmissão do estímulo elétrico entre os cardiomiócitos. A etiopatogenese é ainda mal conhecida. O mecanismo atualmente mais aceite é o do enfraquecimento e subsequente rotura das ligações intercelulares, com remodelagem Figura 1 Representação esquemática da estrutura molecular do desmosoma (adaptado de Sen-Chowdhry et al. JACC 2007) a nível dos discos intercelulares, apoptose e substituição progressiva do miocárdio do ventrículo direito Figura 2 História natural da MAVD. Fase subclínica a mais comum nos atletas. Ao contrário do que se pensava inicialmente, a doença não afeta exclusivamente o VD. As formas biventriculares ou com envolvimento predominante do VE ocorrem com alguma frequência, justificando a designação, que começa a ser preferida por alguns autores, de miocardiopatia arritmogénica. Têm sido referidas na literatura formas secundárias de MAVD em atletas de endurance, com fenótipo semelhante, não associada a mutações das proteínas desmosómicas, com perfil disrítmico igualmente agressivo e prognóstico desfavorável 4. Diagnóstico O diagnóstico de MAVD assenta num puzzle complexo de elementos de ordem clínica, eletrocardiográfica, imagiológica, histológica e de genética molecular (Figuras 3 e 10). Não há um gold standard ou 18 Maio 2013 www.revdesportiva.pt

teste que isoladamente estabeleça o diagnóstico, motivo pelo qual têm sido propostas recomendações (Task Force Criteria-TFC) para apoiar o diagnóstico clínico. 5 As primeiras TFC foram propostas em 1994, e revistas em 2010, agrupam as manifestações em seis categorias diferentes, classificando as respetivas alterações como major e minor (Figura 3) em função da sua sensibilidade e especificidade. O diagnóstico definitivo exige a presença de 2 critérios major, 1 major e 2 minor ou 4 critérios minor. 5 Os critérios atuais (TFC 2010) foram elaborados com base na forma de apresentação clínica mais conhecida da doença, a forma arrítmica. Nas fases iniciais, ou nas formas mais evoluídas, os referidos critérios são menos sensíveis e específicos. Quando suspeitar de MAVD em atletas e qual a eficácia do rastreio médico-desportivo? A MAVD tem sido reconhecida como uma causa importante de MS em atletas jovens. Desde os primeiros relatos da doença em 1988 pelo grupo italiano de Thiene e Corrado até aos registos mais recentes, como o estudo multidisciplinar realizado na América do Norte 2, que tem sido descrita uma elevada percentagem de atletas profissionais (34%) ou com atividade desportiva de recreação (36%), sugerindo uma clara relação entre o treino físico e a expressão fenotípica da doença. A penetrância da MAVD é variável e a expressão fenotípica dependente da idade, com um pico na fase de crescimento rápido da adolescência. O diagnóstico na fase inicial da doença é difícil, tendo em conta a sua evolução silenciosa. Por outro lado, as modificações morfológicas e funcionais de adaptação ao treino físico, especialmente nas modalidades de endurance, poderão originar fenótipos de sobreposição e difícil distinção com a MAVD (Figura 9). Sintomas e história familiar A sintomatologia pode ser escassa, muitas vezes inespecífica e não valorizada pelo atleta, não o impedindo de atingir níveis de desempenho elevados. Episódios sincopais, palpitações rápidas, tonturas e dor torácica atípica, especialmente se desencadeadas pelo exercício, devem ser investigadas 1. Não deve ser esquecido que cerca de 30% dos doentes com MAVD (sobretudo jovens) são assintomáticos e a MS pode ser a primeira manifestação da doença. A história familiar de doença confirmada (cirurgia, necrópsia ou preenchimento da TFC) em familiares do 1.º grau é um critério major. Por sua vez a história de familiar Diagnóstico de miocardiopatia arritmogénica do VD (MAVD) Miocardiopatia Arritmogénica (Mca) TFC De 2010 Figura 3 TFC 2010 agrupamento das alterações da MAVD em 6 categorias diferentes e respetivas alterações classificadas como major e minor (adaptado de F. Marcus et al Eur Heart J 2010). Revista de Medicina Desportiva informa Maio 2013 19

Figura 4 Atleta de 16 anos de idade, caucasiano, assintomático, com história familiar negativa. ECG com ondas T negativas nas derivações precordiais de V1 a V4. A avaliação subsequente (Ecocardiograma, ECG de Holter, Prova de Esforço e Potenciais Tardios) foi normal. Figura 5 Atleta de 17 anos, caucasiano, assintomático com história familiar negativa. ECG com sistoles prematuras ventriculares com padrão de BCRE (origem no VD). Avaliação subsequente foi normal. de MS antes dos 35 anos, ou doença não confirmada em familiares até ao 3.º grau, é um critério minor. Eletrocardiograma As alterações do ECG têm sido descritas em mais de 80% dos doentes com diagnóstico estabelecido de MAVD, ultrapassando mesmo os 95% em algumas séries, o que lhe confere elevada sensibilidade diagnóstica 3. A realização sistemática do ECG no contexto do exame médico- -desportivo é assim um instrumento fundamental no rastreio de atletas assintomáticos. A presença de ondas T negativas nas derivações precordiais direitas (duas ou mais derivações contíguas além de V1), na ausência de bloqueio completo de ramo direito, em indivíduos com idade superior a 14 anos é considerada pelas TFC 2010 como critério major (Figura 3). Há que ter em conta que na fase inicial da doença as alterações do ECG são menos frequentes e mais subtis. Por outro lado, a presença de ondas T negativas nas derivações precordiais direitas são frequentes em jovens, especialmente antes dos 14 anos (cerca de 8,4%), designadas por padrão juvenil, e consideradas como variante da normalidade. No período pós-pubertário são menos frequentes (>14 anos - 1,7% e >16 anos - 0,1%) 3, razão pela qual a sua persistência, e sobretudo o aparecimento de novo, deve levantar a suspeita de patologia miopática (Figura 4). O envolvimento das derivações inferiores e V5 e V6 aumenta a especificidade, devendo igualmente levantar a suspeita de envolvimento do VE. A presença de sístoles prematuras ventriculares (Figura 5) com morfologia de bloqueio completo de ramo esquerdo, com frequência superior a 500/24h (critério minor) ou a TV não mantida (critério major ou minor em função do eixo elétrico) também sugerem o diagnóstico. Outras alterações eletrocardiográficas incluem a baixa voltagem dos complexos QRS nas derivações dos membros (I, II e III), o atraso da ativação terminal (> 55 ms desde o nadir do S até à linha isoeléctrica) nas derivações precordiais direitas (V1-V3) e a onda Epsilon, que embora pouco sensível, tem especificidade elevada 5. Avaliação subsequente e confirmação do diagnóstico Havendo suspeita diagnóstica, clínica ou eletrocardiográfica segue- -se a demonstração de alterações estruturais, em que a a avaliação imagiológica não invasiva, quer por Ecocardiografia, quer por Ressonância Magnética Cardíaca (RMC), têm papel fundamental. O Eco é o teste Figura 6 Ecocardiograma bidimensional: Planos tomográficos para avaliação do VD; apical 4-câmaras modificado (A) paraesternal /câmara de entrada do VD (B) e curto eixo dos grandes vasos - câmara de saída do VD (C) (ver texto). 20 Maio 2013 www.revdesportiva.pt

Figura 7 Ecocardiograma (apical-4 cam) de atleta com MAVD, em que é possível observar aneurisma localizado no apex VD de imagem de primeira linha na avaliação morfológica e funcional do VD, não obstante as dificuldades relacionadas com a sua localização retrosternal e geometria complexa. A avaliação ecocardiográfica deve ser completa e sistematizada (incluindo estudo do VE, estruturas valvulares, origem das artérias coronárias, etc), acompanhada de avaliação detalhada do VD, nomeadamente das dimensões da câmara de entrada e de saída, da função sistólica global e das alterações segmentares do VD (Figura 6). Quando o estudo ecocardiográfico suscita dúvidas, a RMC é a técnica de imagem de eleição pelo elevado poder de resolução espacial e pela capacidade de detetar alterações da estrutura miocárdica. A ventriculografia direita tem sido descrita como o gold standard na demonstração das alterações morfológicas da MAVD. A angiotac e o mapping eletro-anatómico poderão em situações especiais dar informação complementar importante. Os critérios morfológicos/imagiológicos implicam a presença simultânea de alterações da cinética segmentar do VD (acinesia, discinesia e aneurisma) associados a dilatação e/ou disfunção (Figuras 7 e 8). Os critérios definidos pela TFC 2010, particularmente no que se referem às dimensões e volumes do VD, não estão adaptados à população desportiva, nem têm em conta as modificações morfológicas e funcionais secundárias ao treino físico. Nas modalidades de endurance as dimensões do VD excedem Figura 8 Representação esquemática dos critérios morfológicos de MAVD segundo as TFC 2010 (adaptado de Marcus F et al Eur. Heart J 2010) Revista de Medicina Desportiva informa Maio 2013 21

Figura 9 Grey-zone MAVD vs adaptação VD ao treino físico. frequentemente os cut-offs definidos. A valorização dos parâmetros volumétricos deve nestes casos ser enquadrada no contexto clínico global e da adaptação cardio-circulatória ao exercício (Figura 9). De salientar que a presença de alterações da cinética segmentar do VD (acinesia, discinesia ou aneurisma), que é obrigatória como critério de positividade para MAVD, estão tipicamente ausentes no VD do atleta. Por outro lado, o aumento das dimensões do VD como adaptação ao treino físico é proporcional e simétrico ao VE e restantes cavidades cardíacas. Não é de esperar no coração do atleta um VD grande, ao lado de um VE normal ou pequeno! Histologia e biópsia endomiocárdica A histologia é o único teste que isoladamente é capaz de estabelecer o diagnóstico definitivo de MAVD. Os critérios baseiam-se na substituição do miocárdio (< 60% miócitos residuais critério major; 60 a 75% de miócitos residuais critério minor) por tecido fibroso, com ou sem tecido adiposo, afetando predominantemente as camadas média e externa epicárdica. De salientar que a biópsia endomiocárdica, mesmo quando orientada por mapeamento eletroanatómico (MEA), tem baixa rentabilidade diagnóstica, pelo caráter focal e segmentar da doença na sua fase inicial e envolvimento predominante da camada externa e média, poupando frequentemente o endocárdio. Sendo um exame invasivo e tendo em conta a fragilidade da parede livre do VD, o risco de complicações não deve ser subestimado. Figura 10 Diferentes patamares no diagnóstico de MAVD. Estudo genético A pesquisa de mutações nos principais genes desmosómicos [plakophilin2, desmoplakin, desmoglein2, desmocollin2 e plakoglobina (JUP)], pode dar um contributo importante para o diagnóstico nos casos borderline (1 critério major e 1 minor ou 3 minor), em que a identificação de uma mutação patogénica pode ser decisiva para a confirmação diagnóstica. De salientar que apenas cerca de 50% dos doentes com MAVD têm testes positivos para mutações desmosómicas e que um estudo negativo não invalida o diagnóstico. Por outro lado, o estudo genético não está indicado quando a expressão fenotípica da doença se limita a um ou dois critérios minor isolados 6. Nos casos confirmados de MAVD (caso index) a identificação da ou das mutações patogénicas é importante não para confirmar o diagnóstico, mas para facilitar o rastreio dos familiares do 1.º grau. O papel do estudo genético é limitado quanto à informação prognóstica e orientação terapêutica. A confirmação ou exclusão do diagnóstico condiciona muitas vezes uma escalada de exames complementares (Figura 10), progressivamente mais complexos, nem sempre conclusivos, que não permitem descolar da zona de ambiguidade diagnóstica. A decisão deve ser suficientemente prudente de forma a evitar desqualificações por falsos positivos, defendendo o mais possível a segurança e a saúde do atleta. O diagnóstico inequívoco implica contra-indicação formal para a prática desportiva de competição, tendo em conta o papel agravante do treino físico (ao aumentar a pré- -carga e o stress mecânico do VD), e o exercício como fator precipitante de disritmias malignas. Conclusão A MAVD é uma miocardiopatia rara que afeta predominantemente indivíduos jovens, sendo considerada a 2.ª causa de MS em atletas. O diagnóstico é difícil, exigindo a combinação de múltiplos exames, sendo que por vezes a MS é a primeira manifestação da doença. O ECG é indiscutivelmente o método de rastreio mais importante, embora subsistam dúvidas sobre a sua eficácia. O conhecimento aprofundado das variantes da normalidade, relacionadas com a idade, etnia, género e modalidade desportiva, é fundamental para reduzir ao mínimo os falsos positivos. Continua a ser investigado o papel do exercício na aceleração da expressão fenótipica da doença e a possibilidade de formas de MAVD secundárias ao treino físico. O diagnóstico confirmado constitui uma contraindicação formal para a prática desportiva de competição. Referências bibliográficas: 1. Sen-Chowdhry S, Morgan RD, Chambers JC, McKenna WJ. Arrhythmogenic cardiomyopathy: etiology, diagnosis, and treatment. Annu Rev Med. 2010;61:233-53. 2. Marcus F, Zareba W, Calkins H,et al. Arrhythmogenic Right Ventricular Cardiomyopathy/Dysplasia, Clinical Presentation and Diagnostic Evaluation: Results from the North American Multidisciplinary Study Heart Rhythm. 2009; 6(7): 984 992. 3. 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