Misericórdia, o que é? Certas realidades, umas mais comuns do que outras, só se tornam intuíveis em situações de excepção, em que o modo habitual, desatento, da nossa estadia na vida e no ser se vê forçado a evoluir, mais ou menos rapidamente, tornando-se mais atento, por vezes, como que sorvendo a realidade, intensificando, assim, a experiência que dela, como sentido, haurimos. De estas situações, a situação de guerra, que, por definição, é aquela em que alguém quer aniquilar alguém, podendo, sempre, este último alguém ser eu. Quando a minha vida está permanentemente em questão e em perigo e isso é por mim notado, a atenção vígil, então, alarga-se e aprofunda-se e, com ela, o seu correlato que é isso que habitualmente chamamos «mundo», mundo exterior, mas também mundo interior. Serve esta breve reflexão para relevar que, nestes momentos, nos tornamos muito diferentes e, connosco, o mundo como unidade e relação de sentido. Intuímos, assim, muitas coisas, isto é, muito sentido, que, de outro modo, nunca intuiríamos. As situações extremas, como a guerra, predispõem-nos a ser muito mais e muito melhor inteligentes. Dito isto, passamos a narrar uma cena de um filme que nos permitirá ajudar a compreender o que está em causa quando pensamos em «misericórdia». O filme é A lista de Schindler, de Steven Spielberg, e a cena é aquela em que o próprio Schindler tenta que Goeth, comandante do campo de concentração de Plaszow, perto de Cracóvia, na Polónia, perceba o que é a misericórdia. O comandante era um homem profundamente cruel, que matava impiedosamente, sem qualquer misericórdia. Tal prática era constante. Era a sua forma de demonstrar a força política de que era detentor, que era uma 1
força extrema, pois era uma força que podia administrar a morte, a seu belprazer. Para Goeth, tal constituía a detenção de poder, por excelência. Mas também para os prisioneiros seus escravos tal era uma manifestação de poder extremo, para eles absoluto, pois dizia respeito ao seu bem derradeiro, a sua vida, toda a sua possibilidade. Aparentemente, quer o comandante quer os seus escravos tinham razão: o poder cruel e sem-misericórdia é o poder na sua mais alta e potente forma. Poder verdadeiramente divino. Ora, Schindler sabia que não era assim. O contacto com as pessoas já lhe tinha feito entender que o verdadeiro poder reside não em destruir, mas em construir, não em condenar, mas em perdoar, não no uso cruel da força, mas no uso da força em virtude de uma afirmação da grandeza positiva do seu utilizador. O uso da força e do poder de que essa força é manifestação é uma questão de dignidade, sobretudo de dignidade de quem detém o poder e a força, que é quem tem a posse do arbítrio que pode decidir acerca do modo como a sua acção vai ser posta em acto. De facto, todo o poder está do lado do sujeito da acção. O objecto da acção, neste caso, seres humanos, não detém poder algum. Esta relação faz ressaltar a fragilidade objectual de tais pessoas. Ora, perante a possibilidade de Goeth vir a matar um dos seus escravos, que servia como um dos seus servidores pessoais, por causa de uma qualquer eventual falha, Schindler tenta convencer o comandante de que o grande poder reside na capacidade de perdoar, pois tal demonstra que esse que perdoa é capaz de se elevar acima da reactividade imposta pelas acções de tipo «lei de Talião», é capaz de ser superior à lógica mecânica de crime e castigo, seja o que for que se entenda por «crime». 2
O misericordioso usa de um poder que, podendo ser de morte, é de vida. Pode matar, mas não mata. Pode sempre matar, mas não mata. E não mata não porque algo o obrigue a tal, mas porque não quer. Que poder pode ser superior a este? Repare-se que este é precisamente o poder que Deus detém relativamente cada uma das suas criaturas: pode, sempre, destruí-las, mas não o faz e não o faz porque não quer e não quer porque é absolutamente bom. Ser absolutamente bom é saber toda a possibilidade do mal e nunca a exercer. Este é o sentido mais alto, excelso mesmo, para o bem ético. Bem que é um bem ontológico. Deus, ontologicamente bom, nunca desce aos domínios da ética, pois a sua escolha de bem é eterna. Não escolhe fazer o bem: é bom. É bom sem tempo e sem movimento. É este sentido ontológico de um bem absoluto que a nada deve obediência senão a si próprio que levará, mais tarde, a que Schildler gaste toda a sua fortuna a comprar judeus a fim de os salvar. Nada se compara ao absoluto ontológico do bem. Nada se compara a Deus e ao que tal bem implica, assim que se entra em relação com ele. É precisamente nesta relação que Shindler quer introduzir Goeth, procurando que ele intua o absoluto do bem que reside no acto do misericordioso perdão. Sem que perceba isto o que salvou Schindler da inicial bestialidade com que foi armado para Cracóvia, não há mutação de sentido possível para o cruel comandante. E o comandante foi incapaz de aceder a este nível de compreensão. Matou o rapaz. Note-se que a «razão», o «motivo» ou o «pretexto» não interessam. Poderiam ser uns quaisquer, pois o que estava em causa não era a acção do objecto da acção, mas a grandeza intuitiva, humanamente 3
intuitiva e, portanto, humanamente constituinte, do sujeito, do detentor do poder, de Goeth. A misericórdia é sempre uma questão posta nas mãos do seu sujeito possível. Nunca diz respeito propriamente ao objecto. Este pode ser o que se quiser, pode fazer o que se quiser, pois nada disto interessa perante o poder absoluto que o possível sujeito de misericórdia tem. O que é, então, a misericórdia? A misericórdia, é, antes de mais, graça. Este sentido fundamental aplica-se não apenas ao exemplo sobre o qual estamos a reflectir, não apenas ao sentido universal que é o do amor de Deus em sentido cristão, como, também, a todos os actos em que o bem é posto. É neste sentido que a criação é o acto de misericórdia por excelência e que todo o acto de misericórdia é um acto de criação. A misericórdia põe sempre possibilidade onde, sem ela, nunca haveria possibilidade alguma, logo, o ser seria impossível como actualidade. A misericórdia de Deus revela-se sempre como o absoluto de possibilidade da criatura, para a criatura. Assim os dias da criação, sobretudo o sétimo, em que a graça rebrilha ao recatar-se a fim de que a liberdade possa seguir o seu caminho. A graça, a antiga «kharis», é um dom, mas não é um dom qualquer, antes é um dom absolutamente sem qualquer outra razão ou moção que não seja aquela que constituo o puro acto de dar. Dar por dar, não de forma caprichosa, mas porque quem dá sabe que está a dar isso que é um, de outro modo impossível, bem. A graça é um dar pelo bem de dar. Por isso, este dar sem espera de troca, a este dar não-comercial, se chama «dar gratuitamente» ou «de graça». 4
A misericórdia é, então, uma absoluta gratuidade. E não há verdadeiro acto de misericórdia que não seja um acto de gratuidade absoluta. Por tal, não é fácil, no mundo da manifestação, encontrar actos destes. Não é o mesmo que dizer que os não há: é dizer que os que existem, por causa da sua gratuidade, que, muitas vezes, implica uma não-manifestação, são, assim, desconhecidos. Por vezes pelo próprio sujeito, tão habituado está à dinâmica e cinética de um mundo tuti-mercantil que, quando exerce misericórdia nem nota: se o que habitualmente tem significado é o comércio dos actos, então, um acto sem-comércio, pode bem passar despercebido. O que não passa é sem ter efeito objectivo. E efeito objectivo tão poderoso quanto o efeito negativo de seu possível acto contraditório teria, não ocorrera este. Exemplo claro disso é o do caso de Goeth e do seu pequeno escravo. A misericórdia, para nada tendo em conta, enquanto tal, o seu objecto, tem, no entanto, importância objectiva total para ele. Exemplo claro é o da criação do mundo por Deus, como relatada na narrativa do Génesis, em que os objectos de tal acto não foram propriamente ouvidos, mas em que, objectivamente, toda a diferença é feita pela actualização de tal misericórdia que foi a passagem absoluta de tais seres do nada relativo deles próprios ao seu tudo ontológico por acção de Deus. E este é o protótipo da misericórdia: um acto de absoluto bem ofertado apenas pelo bem efectivo a realizar e por causa da vontade de quem assim age, seja Deus seja Goeth, com as evidentes diferenças. Américo Pereira 2016 5