Succinilcolina vs. rocurônio para indução em sequência rápida

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ARTIGO DE REVISÃO Succinilcolina vs. rocurônio para indução em sequência rápida Succinylcholine vs. rocuronium for rapid sequence induction Alysson Higino Gonçalves da Silva 1, Henrique Rodrigues Lemos Silva 2, Ivana Mares Trivellato 2, Joyce Romano 2, Marina Ferreira Guimarães 2 DOI: 10.5935/2238-3182.20160014 RESUMO 1 Médico Anestesiologista. Hospital Felício Rocho. Belo Horizonte, MG Brasil. 2 Médico Especializando em Anestesiologia. Centro de Ensino e Treinamento (CET) do Hospital Felício Rocho. Belo Horizonte, MG Brasil. No contexto da intubação em sequência rápida, o anestesiologista conta com duas opções de drogas para bloqueio neuromuscular: a succinilcolina e o rocurônio. Cada uma delas possui suas características farmacocinéticas e farmacodinâmicas que lhe conferem propriedades específicas. A succinilcolina, bloqueador neuromuscular despolarizante, mostra-se benéfica, uma vez que possui início de ação e latência ultracurtos, associado a bom relaxamento neuromuscular e boas condições para intubação. No entanto, essa droga apresenta desvantagens importantes e potencialmente catastróficas, como a reação alérgica e a hipercalemia. Já o rocurônio, bloqueador neuromuscular adespolarizante, tem baixa incidência de reações alérgicas, não gera distúrbios iônicos e também proporciona bom relaxamento neuromuscular com condições adequadas para intubação em curto tempo. Entretanto, sua latência é prolongada e, quando necessário, exige reversão neuromuscular. O sugammadex, droga que reverte a ação do rocurônio, exerce tal função com eficácia, porém é de alto custo, exige doses variáveis que dependem da profundidade do bloqueio e, ainda, demanda tempo para diluição e administração, o que pode acarretar intercorrências indesejáveis. Nesse cenário, cabe ao anestesiologista avaliar de maneira individualizada a melhor droga a ser utilizada nos diferentes pacientes e situações. Palavras-chave: Bloqueadores Neuromusculares; Fármacos Neuromusculares Despolarizantes; Succinilcolina; Intubação. ABSTRACT Instituição: Hospital Felicio Rocho Belo Horizonte, MG Brasil Autor correspondente: Joyce Romano E-mail: jrlamounier@yahoo.com.br In the context of rapid sequence intubation, the anesthesiologist has two drug options for neuromuscular blockade, succinylcholine and rocuronium. Each has its pharmacokinetic and pharmacodynamic characteristics, giving it specific properties. The succinylcholine, depolarizing neuromuscular blocker shown beneficial, since it has an onset of action and short ultra latency associated with good neuromuscular relaxation and good conditions for intubation. However, this drug has significant and potentially catastrophic disadvantages, such as allergic reaction and hyperkalemia. Already rocuronium, nondepolarizing neuromuscular blocker, has a lower incidence of allergic reactions, it does not generate ionic disorders and also provides good neuromuscular relaxation with adequate conditions for intubation in short time. However, latency is prolonged and, when necessary, requires neuromuscular reversal. The sugammadex, a drug that reverses the action of rocuronium, exercises that function effectively, but has a high cost, requires varying doses dependent on the blockade depth and also takes time to dilution and administration, which can lead to undesirable complications. In this scenario, it is up to the anesthesiologist to assess an individual way the best drug to be used in different patients and situations Key words: Neuromuscular Blocking Agents; Neuromuscular Depolarizing Agents; Succinylcholine; Intubation. 82 Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87

INTRODUÇÃO A indução em sequência rápida (ISR) é a técnica para indução anestésica em pacientes com risco de aspiração pulmonar e visa à intubação traqueal no menor tempo possível após abolição dos reflexos protetores da via aérea, com respostas hemodinâmicas mínimas à laringoscopia. 1,2 Em 1946, Mendelson relacionou a alimentação à ocorrência de broncoaspiração durante o parto sob anestesia geral com máscara. Porém, foi somente após a introdução da succinilcolina na anestesia clínica, em 1952, por Foldes, e da primeira descrição feita por Sellick, em 1961, da pressão na cartilagem cricoide para prevenção da regurgitação, que surgiu o conceito de indução em sequência rápida. A técnica envolve a oferta de oxigênio suplementar por máscara facial sem ventilação com pressão positiva, rápida administração de uma sequência de medicamentos incluindo um hipnótico e um relaxante muscular, associado ou não a um narcótico, aplicação de pressão sobre a cartilagem cricoide, seguido de intubação endotraqueal em um minuto da administração do bloqueador neuromuscular. 1-4 As características ideais do bloqueador neuromuscular a ser utilizado na ISR compreendem um rápido início de ação, para minimizar o risco de aspiração, um tempo de ação curto e previsível, para facilitar o retorno da ventilação espontânea se houver falha de intubação, e mínimos efeitos hemodinâmicos ou sistêmicos. 4 Com características farmacológicas favoráveis como rápido início de ação, curta duração e relaxamento satisfatório, a succinilcolina ou suxametônio, um relaxante muscular despolarizante, é ainda a escolha dos anestesistas e intensivistas na abordagem de pacientes com estômago cheio ou com preditivos de via aérea difícil, mesmo após seis décadas de uso. 3 A succinilcolina consiste em duas moléculas de acetilcolina unidas. Essa semelhança estrutural possibilita a ligação a receptores nicotínicos, gerando um potencial de ação a partir da abertura de canais de sódio. A transmissão desse potencial de ação gera uma contração passageira das fibras musculares, a chamada fasciculação. Sem degradação pela aceticolinesterase, a concentração da succinilcolina se mantém elevada na fenda sináptica com despolarização prolongada da placa motora e consequente relaxamento. 5 A succinilcolina é rapidamente metabolizada pela pseudocolinesterase, mas condições como hipotermia, pseudocolinesterase geneticamente aberrante ou baixos níveis enzimáticos que acompanham gestação, doença hepática, jejum prolongado, insuficiência cardíaca ou renal e queimaduras podem retardar a degradação da droga. A administração concomitante a outras drogas, como, por exemplo, neostigmina, fenelzina, ciclofosfamida, metoclopramida, esmolol, pancurônio, contraceptivos orais, remifentanil e etomidato também pode resultar em redução da atividade da colinesterase plasmática. 5,6 O registro de complicações graves e as contraindicações associadas ao uso da succinilcolina levaram os pesquisadores a buscar um bloqueador neuromuscular adespolarizante como alternativa para indução em sequência rápida, com latência e duração semelhantes. Dois bloqueadores neuromusculares aminoesteroides foram, então, lançados no mercado o rapacurônio e o rocurônio. O primeiro deles, o rapacurônio, apresentava rápido início de ação e curta duração. Todavia, a frequência alta de complicações graves, como o broncoespasmo e a presença de metabólitos ativos em regime de infusão contínua, contribuíram para a suspensão de sua comercialização. 2 O rocurônio tem se apresentado como boa alternativa, por proporcionar condições de intubação similares às geradas pela succinilcolina, com rápida instalação do bloqueio das cordas vocais e estabilidade cardiovascular. É antagonista competitivo da acetilcolina no receptor nicotínico pós-sináptico e a ligação entre eles impede a despolarização da fibra muscular. O início do bloqueio neuromuscular ocorre quando 70-80% dos receptores estão ocupados e para que haja bloqueio completo é necessária a ocupação de mais de 90% dos receptores. Os relaxantes musculares adespolarizantes também atuam nos receptores pré-juncionais da junção neuromuscular e inibem a mobilização adicional de acetilcolina. 3,4 A metabolização do rocurônio a 17-deacetilrocurônio corresponde a pequena parte de sua eliminação. A maior parte da droga é excretada de forma inalterada pela urina, bile ou fezes. 2 Muito se tem discutido sobre a posologia adequada do rocurônio para intubação em sequência rápida. O aumento da dose da droga está associado a menos latência, mais relaxamento e melhores condições de intubação. Porém, as doses preconizadas entre 1,0 e 1,2 mg/kg relacionam-se a prolongamento de até duas horas do bloqueio neuromuscular, característica desfavorável em caso de falha de intubação, ou situações de não intubo, não ventilo (NINV). Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87 83

Em 2009, foi introduzido no mercado o sugammadex, uma gamaciclodextrina quimicamente modificada que atua como antagonista seletivo do rocurônio. Apresenta núcleo lipofílico revestido por camada hidrofílica periférica, com extensões que permitem a encapsulação da molécula de rocurônio, inativando a porção livre no plasma e favorecendo, assim, a liberação da porção ligada ao receptor nicotínico. Além do rocurônio, o sugammadex também tem afinidade por outros relaxantes musculares aminoesteroides, como o vecurônio e o pancurônio. Apesar da sua reduzida afinidade com o vecurônio, a reversão do bloqueio é eficiente. O bloqueio com pancurônio foi revertido com sucesso em estudos clínicos.7 A dose recomendada depende da profundidade do bloqueio neuromuscular. Na reversão, é recomendado o uso de 2 mg/kg para a reversão de bloqueio neuromuscular moderado e de 4 mg/kg para os bloqueios neuromusculares profundos. O tempo médio para a recuperação da relação T4/T1 para 0,9 é de aproximadamente três minutos. Se necessária a reversão imediata após dose de 1,2 mg/kg de rocurônio, a dose de sugammadex recomendada é de 16 mg/kg. O tempo médio para a recuperação da relação T4/ T1 para 0,9 é de aproximadamente 1,5 minuto. 1,4 Ao contrário dos inibidores da acetilcolinesterase, o sugammadex não requer algum grau de recuperação do bloqueio neuromuscular antes da sua administração, não gera instabilidade autonômica que faça necessária a administração de anticolinérgicos e promove rápida reversão do bloqueio após a administração. 4,7 Todas essas características transformaram o rocurônio-sugammadex em alternativa atrativa para uso em sequência rápida. Diversos estudos têm comparado o uso da succinilcolina e do rocurônio na indução em sequência rápida, porém com resultados conflitantes. O objetivo do presente trabalho é estabelecer um comparativo entre os dois fármacos a partir da revisão da literatura, primariamente sob os aspectos de segurança quanto à latência, condições de intubação, retorno à ventilação espontânea e efeitos adversos. MATERIAIS E MÉTODOS Foram revisados artigos científicos sobre o tema succinilcolina versus rocurônio utilizando as palavras- -chave succinilcolina, rocurônio, indução em sequência rápida e sugammadex, entre os anos de 2010 e 2015 nas bases de dados PUBMED e Cochrane, em inglês e português. O objetivo é realizar uma revisão de literatura com o intuito de definir a melhor droga a ser utilizada na indução anestésica em sequência rápida. DISCUSSÃO Desde sua criação, há mais de seis décadas, a succinilcolina tem sido utilizada para indução em sequência rápida para intubação traqueal em pacientes com risco aumentado para aspiração pulmonar ou com preditivos de via aérea difícil. Ela se difundiu devido ao seu perfil farmacológico favorável, apresentando rápido início de ação, entre 40 e 60 segundos, curto tempo de duração, em torno de 6 a 10 minutos, e mínimos efeitos hemodinâmicos ou provendo excelentes condições de intubação. 1,4 Exibe, no entanto, efeitos colaterais e contraindicações ao seu uso. A succinilcolina tem sido associada a hipercalemia potencialmente letal e arritmias, atribuído à liberação de potássio durante a despolarização induzida pela droga. Observa-se elevação média do potássio sérico em 0,5 meq/l, que embora insignificante em pacientes hígidos e normocalêmicos, é potencialmente letal nos pacientes com hipercalemia preexistente, vítimas de queimaduras ou traumas maciços. Em pacientes renais crônicos, o uso da succinilcolina é seguro, desde que tenham níveis normais de potássio. Grandes queimados têm risco maior entre o 9º e o 60º dia pós-queimadura. Nas primeiras 48 horas do evento, o uso da succinilcolina é considerado seguro. O risco de hipercalemia é também aumentado após lesões com desnervação, quando a isoforma imatura do receptor de ACh pode ser expressa dentro e fora da junção neuromuscular (up-regulation), levando à despolarização disseminada e à extensa liberação de potássio. O risco de hipercalemia parece ter pico em sete a 10 dias após a lesão. 5 As fasciculações acometem grandes grupos musculares, como os peitorais e os abdominais, e tem alta prevalência 60 a 90% após rápida injeção da succinilcolina, especialmente em adultos. O suxametônio está relacionado também ao aumento da pressão intracraniana e intraocular, limitando seu uso em pacientes que podem ter quadro neurológico agravado por esses efeitos. É descrita redução da frequência cardíaca após administração de doses subsequentes de succinilcolina e até falência cardíaca. Isso se deve à ação da droga em receptores muscarínicos, pela 84 Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87

95% de sucesso na intubação endotraqueal em 45 segundos, porém doses mais altas estão associadas à maior duração do bloqueio neuromuscular. 14 Estudo conduzido por Marsch et al. 15 comparou os dois fármacos em pacientes críticos que exigiam intubação de urgência em unidades de terapia intensiva. Foi demonstrado não haver vantagens no uso de doses maiores de rocurônio para intubação, já que são observadas características semelhantes à succinilcolina mesmo em doses habituais. Além da dose aumentada, outros fatores têm sido atribuídos à diminuição da latência do rocurônio para uso em emergência. Metanálise de Dong et al. evidenciou que o uso de pequenas doses de rocurônio antes dos outros fármacos da indução, infusão prévia de efedrina ou sulfato de magnésio são eficazes para acelerar o início do bloqueio neuromuscular pelo rocurônio. 9 Os estudos que comparam os dois bloqueadores quanto às condições de intubação em sequência rápida obtiveram resultados divergentes, em parte relacionados às doses do rocurônio utilizadas para indução de sequência rápida. A revisão de Cochrane sugere que o rocurônio tem sido associado a condições menos favoráveis de intubação quando comparado à succinilcolina. 1 No entanto, 30 dos 37 estudos inclusos registraram o uso do rocurônio na dose de 0,6 a 0,7 mg/kg. Já é bem estabelecido o efeito dose- -dependente da droga, e o uso de doses mais altas (> 0,9 mg/kg) exibe resultados diferentes, com menos latência e melhores condições de intubação. 15 Marsch et al. 15 compararam a incidência de hipoxemia após uso de rocurônio em pacientes críticos que exigiam intubação por sequência rápida, e não mostraram diferenças quanto à qualidade da intubação, sucesso de intubação ou dessaturação severa quando comparado ao uso da succinilcolina. Nesse grupo de pacientes, não houve benefícios de doses maiores do rocurônio. Grande inconveniente tem sido atribuído ao uso do rocurônio, primariamente quanto ao tempo de recuperação do bloqueio neuromuscular. O tempo de ação prolongado é desfavorável quando se prevê dificuldade para intubação e pode ser trágico na condição não intubo, não ventilo (NINV). Essa preocupação manteve a succinilcolina na predileção para indução de casos de possível via aérea difícil. A necessidade de administração de altas doses de rocurônio contribui para longa duração do fármaco. Kirkegaard-Nielsen et al. 14 mostraram que o aumento da dose do rocurônio para 1 a 1,2 mg/kg atrasa o temsua semelhança estrutural com acetilcolina. Hipertermia maligna e reações anafiláticas são observadas com o uso do fármaco em indivíduos predispostos. A incidência de reações anafiláticas é estimada entre 1:5.000 e 1:10.000. 5 Além disso, é frequente a queixa de mialgia nos primeiros dias após o uso da droga. 4,8,9 Descrita em até 89% dos pacientes, é mais comum em jovens, pacientes ambulatoriais e mulheres saudáveis, e a intensidade da dor pouco se relaciona à intensidade das fasciculações. 6 São descritas alternativas para minimizar os efeitos adversos da succinilcolina. O uso do sulfato de magnésio tem sido associado a baixa incidência de fasciculações e mialgia, além de minimizar as repercussões hemodinâmicas secundárias à intubação. Nam Kim et al. 10 demonstraram que a administração de baixas doses de rocurônio (0,4 mg/kg) 3 minutos antes da indução em sequência rápida com succinilcolina pode minimizar as repercussões das fasciculações, apesar de prolongar a latência da succinilcolina. O vecurônio, mivacúrio, galamina e atracúrio também podem ser usados para esse fim. 11 O uso de anti-inflamatórios não esteroidais pode diminuir a intensidade das dores musculares associadas ao uso do suxametônio. 5 A observação dos efeitos deletérios da succinilcolina e suas contraindicações impulsionou a busca por alternativas. Entre os bloqueadores neuromusculares, o rocurônio é o bloqueador não despolarizante que exibe menos tempo de início de ação e sua única contraindicação é o raro relato de alergia à droga, sendo, assim, alternativa atrativa para sua utilização em sequência rápida. É necessário cautela no uso do rocurônio em pacientes com diagnóstico de miastenia gravis, síndrome miastênica, doença hepática, neuromuscular, carcinomatose ou caquexia, pois nessas situações a duração da droga pode ser prolongada. 1,2 Muito se tem discutido a respeito das características dos dois fármacos, primariamente sob os aspectos de segurança quanto à latência, condições de intubação, retorno à ventilação espontânea e efeitos adversos. Quanto ao tempo de início de ação, a succinilcolina foi relacionada à maior velocidade de instalação do bloqueio neuromuscular, em média 45 segundos, quando comparada ao rocurônio em doses habituais, de 0,6 mg/kg (2 DE 95), que promove relaxamento ótimo com latência de 60 segundos. Porém, estudos com doses aumentadas, 0,9-1,2mg/kg, encurtou esse tempo, equiparando à latência da succinilcolina. 1,13 Kirkegaard-Nielsen et al. relataram que 1,04 mg/kg de rocurônio é necessário para a probabilidade de Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87 85

po de recuperação da ventilação espontânea (TOF 0,9) em aproximadamente 2 horas, período extremamente longo em caso de falha de intubação. Em 2009 foi apresentado o sugammadex como rápido reversor específico do bloqueio neuromuscular desencadeado pelo rocurônio. A partir disso, o uso desse bloqueador adespolarizante tem sido ainda mais promissor. Foi comprovado que o sugammadex a 2 mg/kg promoveu reversão do bloqueio em 2 a 3 minutos e doses aumentadas de 4 a 16 mg/kg aproximadamente 3 minutos após administração do rocurônio produzem efeito ainda mais ágil, de 1 a 2 minutos, independentemente do tempo decorrido desde a administração do bloqueador. 16 Esses dados sugerem que a administração de altas doses (1 a 1,3mg/kg) de rocurônio com uso precoce de sugammadex (4-16mg/ kg) pode ser mais eficaz do que a recuperação espontânea da ventilação após o uso da succinilcolina. Sorensen et al. ressaltaram que o tempo de recuperação do bloqueio da succinilcolina em 90% dos casos era de 518 segundos e 168 segundos após rocurônio e sugammadex. 17 Bisschops et al. 18, no entanto, comentam sobre os obstáculos logísticos ao uso do reversor. Segundo o estudo, são necessários 6,7 minutos para preparar e administrar dose necessária de sugammadex. 18 É necessário fácil acesso ao induzir uma provável via aérea difícil com rocurônio, além de treinamento da equipe anestésica e demonstração clara das variações de doses relativas a cada paciente. 4 Cabe ainda avaliação do alto custo do reversor e disponibilidade do mesmo ao optar pelo uso do rocurônio. Por outro lado, é preciso ponderar os custos das complicações caso o sugammadex não esteja disponível para uso, primariamente em situações de emergência, como NINV. Dispositivos de via aérea cirúrgica e os desfechos de hipóxia prolongada podem onerar ainda mais o atendimento ao paciente de via aérea difícil. Questionamentos éticos devem ser avaliados ao induzir intubação em sequência rápida com rocurônio, caso o sugammadex seja indisponível ou de difícil acesso no contexto da intubação. Em contrapartida, o uso da succinilcolina pode surpreender quanto à duração do bloqueio. A deficiência da butirilcolinesterase pode atrasar a degradação do fármaco, alargando seu período de ação. Existe então variabilidade no tempo de metabolismo da droga, e o prolongamento deste pode ser prejudicial em condições de NINV. Nesses casos, a inexistência de um reversor pode agravar as condições do paciente. CONCLUSÃO Diante dos aspectos descritos, deve-se ressaltar a necessidade de avaliação cuidadosa e individualizada do paciente para definição do melhor bloqueador neuromuscular a ser utilizado. Anamnese detalhada e avaliação pré-anestésica das condições clínicas podem identificar fatores que desfavorecem o uso da succinilcolina devido às potenciais repercussões adversas. Critérios na avaliação da via aérea podem prever dificuldade de intubação e ventilação. O longo tempo de bloqueio neuromuscular do rocurônio pode piorar o prognóstico em situações de NINV, principalmente na indisponibilidade do sugammadex. O conhecimento das características farmacológicas das drogas e o estudo clínico do paciente são os preditores mais favoráveis para a melhor escolha dos fármacos e melhor desfecho da abordagem do paciente com risco aumentado de aspiração. REFERÊNCIAS 1. Perry JJ, Lee JS, Sillberg VAH, Wells GA. Rocuronium versus succinylcholine for rapid sequence induction intubation (Review). The Cochrane Library. 2009, Issue 1. 2. Moro ET, Módolo NSP. Indução anestésica com a técnica de Sequência Rápida. Rev Bras Anestesiol. 2004; 54:4:595-606. 3. Baraka A. Succinylcholine The Gold Standard for Rapid-sequence Induction of Anesthesia [Editorial]. M E J Anesth. 2011; 21(3):323-4. 4. Fuchs-Buder T, Schmartz D. The never ending story or the search for a nondepolarising alternative to succinylcholine. Eur J Anaesthesiol. 2013; 30:583-4. 5. Barash, PG, Cullen, BF, Stoelting, RK, Cahalan, MK, Stock, MC. Clinical Anesthesia. 6 th ed. Philadelphia: Wolter Kluwer, 2009. 6. Morgan, GE, Mikhail, MS, Murray, MJ. Anestesiologia clínica. 4 th ed. Rio de Janeiro: Revinter; 2010. 7. Barbosa FT, Cunha RM. Reversão do bloqueio muscular profundo com sugammadex após falha de intubação traqueal em sequência rápida: relato de caso. Rev Bras Anestesiol. 2012; 62:2:281-4. 8. Miller R. Will succinylcholine ever disappear? Anesth Analog. 2004. 98:1674-5. 9. Dong J, Gao L, Lu W, Zheng J. Pharmacological interventions for acceleration of the onset time of rocuronium: a meta-analysis. PLoS One. 2014 Dec 2; 9(12):e114231. doi: 10.1371/journal. pone.0114231. 10. Kim KN, Kim KS, Choi HI, Jeong JS, JongLee H. Optimal precurarizing dose of rocuronium to decrease fasciculation and myalgia following succinylcholine administration. Korean J Anesthesiol. 2014; 66(6):451-6. 86 Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87

11. Schreiber JU, Lysakowski C, Fuchs-Buder T, Tramer MR. Prevention of succinylcholine-induced fasciculation and myalgia: a meta-analysis of randomized trials. Anesthesiology. 2005; 103:877-84. 12. Magorian T, Flannery KB, Miller RD. Comparison of rocuronium, succinylcholine and vecuronium for rapid-sequence induction of anestesia in adult patients. Anesthesiology. 1993; 79:913-8. 13. Kwon MA, Song J, Kim JR. Tracheal intubation with rocuronium using a modified timing principle. Korean J Anesthesiol. 2013; 64(3): 218-22. 14. Kirkegaard-Nielsen H, Caldwell J, Berry P. Rapid tracheal intubation with rocuronium: a probability approach to determining dose. Anesthesiology. 1999; 91:31-6. 15. Marsch SC, Steiner L, Bucher E, Pargger H, Schumann M, Aebi T et al. Succinycholine versus rocuronium for rapid sequence intubation in intensive care: a prospective, randomized controlled trial. Crit Care. 2011; 15:R199. 16. Blobner M, Eriksson LI, Schols J. Reversal of rocuronium-induced neuromuscular blockade by sugammadex compared with neostigmine during sevoflurane anaesthesia: results of a randomised, controlled trial. Eur J Anaesthesiol. 2010; 27:874-81. 17. Sorensen MK, Bretlau C, Gatke MR. Rapid sequence induction and intubation with rocuronium-sugammadex compared with succinylcholine: a randomised trial. Br J Anaesth. 2012; 108:682-9. 18. Bisschops MMA, Holleman C, Huitink JM. Can sugammadex save a patient in a simulated cannot intubate, cannot ventilate situation? Anesthesia 2010; 65:936-41. Rev Med Minas Gerais 2016; 26 (Supl 1): S82-S87 87