ESQUERDA E ESQUERDA ENTRE ASPAS: UM CASO DE POLÍTICA DO SILÊNCIO ( LEFT AND LEFT BETWEEN QUOTATION MARKS: A CASE OF THE POLICY OF SILENCE)

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Transcrição:

ESQUERDA E ESQUERDA ENTRE ASPAS: UM CASO DE POLÍTICA DO SILÊNCIO ( LEFT AND LEFT BETWEEN QUOTATION MARKS: A CASE OF THE POLICY OF SILENCE) Fabiana, MIQUELETTI (Unicamp) ABSTRACT: This works aims to investigate the means through which a discourse incoporates outside elements into its own ideological domain. Our analysis focuses on the policy on silencing the outsider. KEYWORDS: Discourse Analysis; interdiscourse; silence. 0. Introdução O discurso não é autônomo, ele remete sempre a outros discursos, suas possibilidades semânticas se realizam num espaço de trocas, jamais enquanto entidade fechada. O que propomos para este trabalho é um exercício de análise, à luz dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso, de fenômenos ligados à interdiscursividade e à política do silêncio (Orlandi, 1993). Partimos, assim, da concepção de que o discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do Outro (Authier-Revuz, apud Brandão, 1991:55). Após leitura atenta do corpus (ver Anexo), buscamos identificar no discurso marcas dessa heterogeneidade: as estratégias evocadas na incorporação do discurso do Outro e o sentido que é constituído pela relação interdiscursiva. Trataremos diretamente da construção do simulacro do Outro pelo Mesmo: do redimensionamento e do apagamento dos sentidos. 1. Perspectiva Teórica: Heterogeneidade Discursiva e Política do Silêncio Quando se fala de heterogeneidade do discurso, procura-se chamar a atenção para as formas de o discurso se relacionar com o seu exterior (Maingueneau, 1997). O discurso, segundo Maingueneau, já nasce de uma relação interdiscursiva; podemos pensar o discurso como efeito do interdiscurso. Trata-se de pensar no diálogo entre sujeitos ideológicos, cujos discursos são resultados do lugar social que ocupam, ou seja, seus discursos são produtos de uma determinada formação ideológica (FI), de uma posição dada numa conjuntura dada (Pêcheux), que se traduz, se materializa em uma determinada formação discursiva (FD), que determina o que pode/deve ser dito e o que não pode/não deve ser dito por esse sujeito nessa posição. Ao mesmo tempo, devemos ter em mente que a formação discursiva é inconsistente, aberta e instável, e não a

expressão estabilizada da visão de mundo de um grupo social (Maingueneau, 1997:113). Avançamos, assim, em direção à noção de interdiscurso e sua relação com uma FD: O interdiscurso consiste num processo de reconfiguração incessante no qual uma FD é levada (...) a incorporar elementos pré-construídos, produzidos fora dela, com eles provocando sua redefinição e redirecionamento, suscitando, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo a denegação de determinados elementos. (Maingueneau, op. cit.:113) A heterogeneidade do discurso pode se manifestar tanto de forma explícita ( heterogeneidade mostrada ) como de forma implícita ( heterogeneidade constitutiva ). A heterogeneidade mostrada é explicitada na superfície do discurso pelo próprio locutor, podendo ser recuperada a partir de uma diversidade de fontes de enunciação. O Outro é inscrito na seqüência do discurso. Já a heterogeneidade constitutiva não é marcada na superfície do discurso, mas pode ser definida pela AD, mediante a formulação de hipóteses sobre a constituição da FD analisada e de sua relação com outras FDs. Nesse caso, o discurso é produto de interdiscursos (Authier- Revuz, 1990). Segundo Maingueneau, mesmo na ausência de qualquer marca de heterogeneidade mostrada, toda unidade de sentido, qualquer que seja seu tipo, pode estar inscrita em uma relação essencial com uma outra, aquela do ou dos discursos em relação aos quais o discurso de que ela deriva define sua identidade (Ibidem:120). Assim, a relação com o Outro pode ser reconhecida independentemente de estar marcada na superfície do enunciado. Essa questão pode render ainda muito mais na medida em que se concebe esse Outro não como uma presença que se manifesta, quer explícita ou implicitamente, mas como uma ausência, como uma falta (Brandão, 1993:75), ou seja, delimitando o território do Outro que lhe é incompatível e relegandoo à zona do não-dizível de seu espaço discursivo, isto é, excluindo-o do seu dizer. Assim, a formação discursiva é pensada como heterogênea em relação a ela própria, uma vez que já evoca por si o outro sentido que ela não significa (Courtine, apud Orlandi, 1993:21). Devemos, em Análise do Discurso, estar atentos para o fato de o mesmo enunciado ter diferentes sentidos para os sujeitos inscritos em diferentes FDs: Se de um lado, toda formação discursiva é heterogênea em relação a ela mesma porque os limites do dizer, as diferentes regiões de sua constituição, refletem sua relação com sua exterioridade ( o outro sentido), por outro lado, o sentido é errático, podendo migrar de uma sua região para outra. Assim, faz parte das condições de produção do sentido a circulação possível pelas diferentes formações discursivas. (Orlandi, op. cit.:82)

O locutor pode anular a heterogeneidade do discurso, forjando sua homogeneidade, por meio de manobras discursivas como, por exemplo, a estratégia do apagamento ou silêncio. Segundo Orlandi (1993:55), o sentido é sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo outros sentidos [produzidos a partir de outras posições]. Dizer e silenciar andam juntos. Segundo Orlandi (1989:39), a noção de SILÊNCIO não coincide com a noção de NÃO-DITO, definido pela sua oposição ao DITO. O silêncio tal como o concebe Orlandi, não remete ao dito, ele permanece silêncio e significa como tal. Quando se trata de silêncio, a autora afirma que não temos marcas formais, mas pistas, traços (Ibidem:48). Para Orlandi, o silenciamento (política do silêncio) é a prática de processos de significação pelos quais ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada (Ibidem:75). Em outras palavras, o silenciamento não constitui uma forma de calar, mas sim de dizer uma coisa para não deixar dizer outras (Ibidem:55); é aquilo que é apagado, colocado de lado, excluído. Em resumo, a relação do silêncio é com outro(s) discurso(s) inscrito(s) nas palavras (Ibidem:181). 2. Análise do Corpus: a palavra entre aspas e as estratégias de apagamento Para tratarmos da questão do interdiscurso, vamos partir de um caso de heterogeneidade mostrada a palavra entre aspas mas ao longo de nosso percurso analítico chamaremos à cena, inevitavelmente, da heterogeneidade constitutiva. As aspas são empregadas, entre outras coisas, para marcar os enunciados relatados em discurso direto, evidenciado, dessa forma, uma ruptura entre o discurso citado e o discurso que cita. Já no caso da palavra que aprece entre aspas, essa ruptura não se verifica, uma vez que a expressão que vem entre aspas é usada e mencionada ao mesmo tempo. Contrariamente ao caso do discurso relatado direto, o fragmento designado como um outro é inscrito na continuidade sintática do discurso ao mesmo tempo que pelas marcas é remetido ao exterior do discurso (Authier-Revuz, 1990:30). O emprego de palavras entre aspas no corpo discursivo, atribuídas a um outro espaço enunciativo, pode significar a não responsabilidade do locutor por aquilo que diz. Ao empregar a palavra esquerda entre aspas, o sujeito-locutor procura estabelecer, segundo Maingueneau (1997:90), uma linha de demarcação entre uma FD e seu exterior, ou seja, outras FDs: um discurso efetivamente só pode manter à distância aquilo que ele coloca fora de seu próprio espaço. Efetua-se, assim, uma operação de distanciamento. Para Maingueneau, colocar entre aspas não significa dizer explicitamente que certos termos são mantidos à distância, é mantê-los à distância e, realizando esse ato, simular que é legítimo fazê-lo (Ibidem:90). As aspas, nesse caso, estão relacionadas à formação discursiva na qual a enunciação se insere. Sabemos que discursos distintos, ao veicularem os mesmos elementos sêmicos, os investem de um significado. Um determinado termo terá um sentido dependendo do número de discursos que veicularem

esse termo. Assim, haverá tantos sentidos para esquerda quantas forem as FDs que fizerem uso da palavra esquerda. Fernando Henrique define o que é esquerda dizendo o que não é esquerda: uma esquerda que é contra reformar. Que não tem pensamento de transformação. Então não é esquerda. Ao final conclui: É patético!. É um paradoxo! Esquerda sou eu, que me alinho a um pensamento de mudança e de reforma. Ao recorrer a definição historicamente dizível de esquerda, a qual todos reconhecemos, e mostrar que a esquerda, entre aspas, não quer promover mudanças, não quer promover reformas, mas que FHC sim propõe mudanças, ele bloqueia uma série de interpretações sobre a natureza dessa transformação, das reformas que defende. Funciona mais ou menos assim: para dizer que sou de esquerda é preciso não dizer a que ideologia se filiam as minhas reformas (política do silêncio, segundo Orlandi, 1993). Ao silenciar a natureza de suas reformas, que como vimos nos textos acima, não é privilégio da esquerda, mas também serve ao neoliberalismo, apaga-se a possibilidade de discussão de outros modelos políticos, ou de outras formas de reformas. Em outras palavras, apaga-se o que poderia ser um desacordo entre situação e oposição: é dito que esta esquerda é contra reformar, silencia-se que esta esquerda apenas pode não concordar com as reformas que são propostas pela situação. Esta estratégia de apagamento, de certa forma, generalizante pode ser, por um lado, própria de uma formação discursiva, condicionada, nesse caso, pela ideologia neoliberal, e sintomática de que o locutor não é fonte de seu discurso, mas que enuncia de uma posição. O sujeito-locutor, mesmo falando em reformas, em mudança, em transformação, fala de uma posição neoliberal e não de esquerda. O que vai definir se me alinho ao discurso da esquerda ou ao do neoliberalismo não é ser partidário de reformas, mas ser partidário de quais reformas. O sujeito-locutor pode silenciar a natureza das reformas para controlar os efeitos de sentido de seu discurso. Não é difícil enxergar, até parece bastante óbvio, que esta esquerda tem alternativas, tem opções, também baseada em reformas, mas de natureza, de sentido diferente das de FHC. Ser contra as reformas do atual governo é ser, no discurso de Fernando Henrique, neoliberal e não de esquerda: Eles são neoliberais. Eu sou um combatente contra o neoliberalismo prático. Se há um neoliberalismo prático, parece bastante razoável existir também uma espécie de neoliberalismo teórico. Aqui poderíamos falar em implícito: FHC dá a entender que esta esquerda é contra o neoliberalismo apenas na teoria, pois ao ser contra as reformas, esta esquerda é favor da morte do Estado e, consequentemente, a favor do deus-mercado e, por sua vez, a favor do neoliberalismo. Há, portanto, por parte do sujeito-locutor, o reconhecimento da ideologia neoliberal tal como é veiculada pelo discurso da oposição. Com essa estratégia de implícito, opera-se uma desqualificação do discurso da esquerda que, na teoria, diz uma coisa, mas, na prática, no que conta, no frigir dos ovos, garante as condições para a existência futura do neoliberalismo. 3. Conclusão

Ambas as formações discursivas valem-se dos mesmos elementos sêmicos, reformas, reformar, transformação, mudança, fato que possibilitou essa estratégia de inversão, levando FHC a se posicionar como esquerda e não como neoliberal para, em seguida, desqualificar esta esquerda, não partidária de reformas. Sustentamos, nesse posto, o apagamento do(s) sentido(s) dessas palavras para uma e para outra FD como uma forma de silenciamento, talvez um pouco torta, se comparada ao exemplo citado em Maingueneau: François Miterrand, buscando defender a política de rigor de seu primeiro Ministro, Laruent-Fabius, lembra a necessidade de um crescimento sadio, isto é, um crescimento sem inflação e ancorado sobre modernizado e fortalecido de produção... (Maingueneau, 1997:96) Ao explicar o que significa sadio, para essa FD, apagou-se os outros possíveis sentidos de sadio para uma outra FD, que poderia ser, por exemplo, isto é sem desemprego, isto é, com crescimento. Em nosso caso, não houve um comentário sobre o que significa reformar para uma e outra FD; existem diferentes formas de reformas, diferentes interpretações, segundo uma ou outra FD. Houve, assim, uma tentativa de homogeneizar o discurso via o silenciamento de outros sentidos para os elementos sêmicos que pertencem a ambos os espaços discursivos. Tanto a palavra esquerda quanto a palavra reforma, entre outras que figuram nos textos citados, recebem seus sentidos da formação discursiva a qual pertencem. Como nos lembra Fiorin (1994:33), as mesmas palavras podem estar presentes nos dois [discursos], mas com as mesmas palavras, eles não falam das mesmas coisas." Assim, chegar ao sentido é chegar aos sentidos bloqueados pelo discurso, ao que ele não-diz, ao que ele apaga: Atrás da aparente estabilidade dos signos, há uma incompatibilidade dos sistemas aos quais é preciso fazer referências para interpretar cada signo. Se cada um dos dois pólos da troca polêmica compreende os enunciados do outro, ele não o faz senão traduzindo-os em sua própria grelha semântica. (Maingueneau, apud Fiorin, op. cit.:35) RESUMO: Nosso trabalho busca caracterizar as formas de o discurso se relacionar com o seu exterior, de incorporar o Outro ao seu espaço discursivo. Nossa análise destaca a política do silêncio como uma das manobras discursivas de inscrição do Outro. PALAVRAS-CHAVE: Análise do Discurso; interdiscurso; política do silêncio; ANEXO Outro dia, uma pessoa me falou de um cartaz que dizia assim: Reforma, só agrária. O cartaz estava assinado pela CUT. Veja só: uma esquerda que é contra reformar. Que não tem o pensamento da transformação. Então, não é esquerda. Esquerda sou eu. Eles, os que se autoproclamam esquerda, esquerda entre aspas, estão amarrados ao Estado e não querem que esse Estado seja reformado (...) Esta esquerda não pensa. Está

mordendo a própria cauda. Não deixa o estado se libertar. E diz que é contra o neoliberalismo. Na verdade, ela está garantindo as condições para a existência futura do neoliberalismo, porque o Estado vai quebrar e o que vai sobrar é o mercado. Na prática, então, são neoliberais. É patético! É um paradoxo! Esquerda sou eu, que me alinho a um pensamento de mudança e de reforma. Eles são neoliberais. Eu sou um combatente contra o neoliberalismo prático. (Trecho de uma entrevista concedida pelo presidente Fernando Henrique Cardoso à revista Veja em 10 de setembro de 1997.) REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cad. Est. Ling., Campinas, n.19, p. 25-42, 1990. BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1991. MAINGUENEAU, D. Novas Tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes, 1997. ORLANDI, E. P. Silêncio e Implícito (produzindo a monofonia). In: História e sentido na linguagem. Campinas: Pontes, 1989. p. 39-45.. As Formas do Silêncio (no movimento dos sentidos). Campinas: Editora da Unicamp, 1993. POSSENTI, S. A Heterogeneidade e a Noção de Interdiscurso. s.l.: s.n., s.d.