Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso

Documentos relacionados
Microscopia confocal in vivo nos depósitos corneanos por amiodarona

pupila Íris ESCLERA CORPO CILIAR COROIDE ÍRIS HUMOR VÍTREO LENTE RETINA CÓRNEA NERVO ÓPTICO

Mini ebook DOENÇAS OFTALMOLÓGICAS NA TERCEIRA IDADE ALERTAS E RECOMENDAÇÕES

VISÃO SISTEMA NERVOSO SENSORIAL. A visão é o processo pelo qual a luz refletida dos objetos no nosso meio é traduzida em uma imagem mental.

Pesquisa com células tronco para tratamento de doenças da retina

Projeto Olhar Brasil. Ministério da Saúde / Ministério da Educação

De forma geral, a visão é o sentido mais valorizado pelas pessoas. Em uma sociedade

SOCIEDADE informações sobre recomendações de incorporação de medicamentos e outras tecnologias no SUS RELATÓRIO PARA A

Mini ebook CUIDADOS COM A VISÃO ALERTAS E

TEMA: Cirurgia de catarata em paciente de dois anos com catarata congênita

Sobre a Esclerose Tuberosa e o Tumor Cerebral SEGA

Imagem da Semana: Fotografia

Síndrome Periódica Associada à Criopirina (CAPS)

Retinografia com angiofluoresceína anexo I

ESTUDO DE TOXICIDADE RETINIANA APÓS INJEÇÕES INTRAVÍTREAS SERIADAS DE INFLIXIMABE EM OLHOS DE COELHOS

Órgão da visão (olho e acessórios)

GLAUCOMA APÓS CIRURGIA DE CATARATA CONGÉNITA

PORFIRIA CUTÂNEA TARDA NO PACIENTE INFECTADO PELO VÍRUS DA IMUNODEFICIÊNCIA ADQUIRIDA

GENÉTICA E OFTALMOLOGIA JAIME ROIZENBLATT

CORPO HUMANO: UM TODO FORMADO POR MUITAS PARTES

OS ÓRGÃOS DOS SENTIDOS

DISTÚRBIOS DAS PÁLPEBRAS

DADOS PRELIMINARES DO ESTUDO MULTICENTRICO BRASILEIRO DE CISTINOSE NEFROPÁTICA

TÍTULO: RELATO DE CASO - OCT de segmento anterior na avaliação de edema de córnea

GLAUCOMA PRIMÁRIO DE ÂNGULO ABERTO (GPAA)


BIOMICROSCOPIA ÓPTICA

Síndrome Periódica Associada à Criopirina (CAPS)

Desempenho visual na correção de miopia com óculos e lentes de contato gelatinosas

Síndrome de Dispersão Pigmentar: Abordagens Diagnósticas e Terapêuticas

Autoria: Conselho Brasileiro de Oftalmologia, Associação Médica Brasileira e Associação Brasileira de Catarata e Cirurgia Refrativa (ABCCR).

PALAVRAS-CHAVE Acuidade visual. Crianças. Tabela de Snellen.

Imagem 1 Corpos de Lafora em biópsia axilar corados com Hematoxilina e Eosina (esquerda) e PAS (direita). Fonte: Gökdemir et al, 2012.

DEGENERAÇÃO MACULAR RELACIONADA A IDADE. A degeneração macular relacionada à idade (DMRI) é a doença

SABER MAIS SOBRE ASTIGMATISMO

Formação para Agentes de Desporto Novembro Ilda Maria Poças

6/18/2015 ANATOMIA DO OLHO ANATOMIA DO OLHO CÓRNEA CRISTALINO RETINA EPITÉLIO PIGMENTAR NERVO ÓPTICO

TRANSPLANTE DE CÓRNEA NO HOSPITAL DAS CLÍNICAS DA UNICAMP 1

Câmara Técnica de Medicina Baseada em Evidências. Avaliação de Tecnologias em Saúde

INSTITUI A "CAMPANHA MUNICIPAL DE PREVENÇÃO DO GLAUCOMA" E DÁ OUTRAS PROVIDÊNCIAS.

FACULDADE DE MEDICINA/UFC-SOBRAL MÓDULO SISTEMA NERVOSO NEUROANATOMIA FUNCIONAL. Síndromes Alternas. Acd. Mateus Tomaz. w w w. s c n s. c o m.

O descolamento de retina pode começar em uma pequena área, mas, quando não tratado, pode ocorrer descolamento de toda a retina.

Glaucoma. O que é glaucoma? Como acontece?

Cromossômicas Monogênicas Poligênicas ou Multifatoriais Mitocondriais

DR. MÁRIO JUNQUEIRA NÓBREGA CRM Graduação em Medicina: Escola Paulista de Medicina ( )

RESPOSTA RÁPIDA 87/2014 VITALUX na Degeneração Macular Relacionada com a Idade (DMRI) forma atrófica

Cromossomos sexuais e suas anomalias

Trata-se de consulta encaminhada pelo Ministério Público Federal questionando o uso de tropicamida nos testes do olhinho realizado em recémnascidos.

TÍTULO: AVALIAÇÃO DA ACUIDADE VISUAL PELA ENFERMAGEM: UTILIZAÇÃO DA TABELA DE SNELLEN EM CRIANÇAS DO ENSINO FUNDAMENTAL I

Dr. Marcelo Palis Ventura. Coleção Glaucoma Coordenador: Dr. Carlos Akira Omi. Volume 1. Conceito e Diagnóstico. Volume 2. Exames complementares

APRESENTAÇÃO. A Clínica de Olhos Dr. Paulo Ferrara foi fundada no ano de 2006 no Complexo Médico

Saúde Ocular do Idoso

Biofísica. Apresentação MEDICINA VETERINÁRIA. Docente responsável: Profa. Dra. Elisabeth Criscuolo Urbinati

Relato de Caso de Síndrome de Smith- Lemli-Optiz em hospital de ensino

Imagem 1 Corpos de Lafora em biópsia axilar corados com Hematoxilina e Eosina (esquerda) e PAS (direita). Fonte: Gökdemir et al, 2012.

Imagem da Semana: Ressonância nuclear magnética

Introdução à Histologia e Técnicas Histológicas. Prof. Cristiane Oliveira

Caracterização visual numa amostra infantil em idade pré-escolar e escolar - o estado da arte num rastreio

A importância da visão

Disciplina de Oftalmologia

08:55-09:15 Debate - Tratamento do edema de macula - Anti-VEGF X Corticoide

- Descrito na década de 70, mas com aumento constante na incidência desde os anos 90

A tomografia de córnea e segmento anterior na propedêutica do exame complementar na avaliação de ectasia

Comissão de Ensino Conselho Brasileiro de Oftalmologia. Currículo Mínimo de Catarata e Implantes Intraoculares

SABER MAIS SOBRE HIPERMETROPIA

é um tipo de gráfico que representa a herança genética de determinada característica dos indivíduos representados...

CITOLOGIA. A área da Biologia que estuda a célula, no que diz respeito à sua estrutura e funcionamento. Kytos (célula) + Logos (estudo)

DR. PAOLA GRECHI ROMERO CASTRO CRM RQE 8487

DR. PAOLA GRECHI ROMERO CASTRO CRM 16594

PADRÃO DE HERANÇA LIGADA AO CROMOSSOMO X

Anatomia e Histologia do Limbo

COLÉGIO EQUIPE DE JUIZ DE FORA. Listão de Férias ano

REVISTA CIENTÍFICA ELETRÔNICA DE MEDICINA VETERINÁRIA ISSN: Ano IX Número 17 Julho de 2011 Periódicos Semestral

ÓRGÃOS DOS SENTIDOS. Prof. MSc. Cristiano Rosa de Moura Médico Veterinário

Sangramento retroperitoneal por ruptura de cisto renal após trombólise intra-arterial de membro inferior direito: Relato de Caso

10/6/2011. Histologia da Pele. Diagrama da Estrutura da Pele. Considerações Gerais. epiderme. derme

Tecido conjuntivo de preenchimento. Pele

FISIOLOGIA DA VISÃO PERCEPÇÃO VISUAL. Le2cia Veras Costa- Lotufo

08:00-10:30 CATARATA 1 - Cirurgia de catarata premium: de A a Z

Microcórnea, glaucoma e catarata: resultados de exames propedêuticos e da cirurgia de catarata por facoemulsificação

Protocolo de Vancocinemia

LENTES ANTI-REFLEXO. Por Luiz Alberto Perez Alves

Mini Glossário. B Blefarite Inflamação das pálpebras.


MAGNETISMO e ESPIRITISMO

DOENÇA DE GRAVES EM IDADE PEDIÁTRICA: AVALIAÇÃO DA EFICÁCIA DOS ANTITIROIDEUS

Prefácio Boa leitura!

Glomerulonefrite pós infecciosa

SABER MAIS SOBRE QUERATOCONE - ANÉIS INTRACORNEANOS

LASIK X PRK após cirurgia de descolamento de retina

3. RESULTADOS DA REVISÃO DE LITERATURA

Vídeo didático LISOSSOMOS E DIGESTÃO CELULAR. Disponível em:

Procedimento Descrição Custo

ANÁLISE DAS CONDIÇÕES DE SAÚDE OCULAR DE CRIANÇAS ATENDIDAS NO CENTRO DE REFERÊNCIA EM OFTALMOLOGIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS

SERVIÇO DE OFTALMOLOGIA

DRA. PAOLA GRECHI CRM RQE 8487

A consulta foi analisada pela Câmara Técnica de Oftalmologia, que emitiu o seu parecer, o qual adoto em inteiro teor.

XVIII Reunião Clínico - Radiológica Dr. RosalinoDalazen.

Programa Analítico de Disciplina CBF120 Citologia e Histologia

Transcrição:

RELATOS DE CASOS Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso In vivo confocal microscopy in cystinosis - Case report Gustavo Victor 1 Paloma Juni Godinho Campos 2 Milton Ruiz Alves 3 Walton Nosé 4 RESUMO A cistinose é doença autossômica recessiva rara caracterizada pelo acúmulo do aminoácido cistina livre dentro dos lisossomos e geralmente é fatal na primeira década de vida na ausência de transplante renal. O presente estudo tem por objetivo relatar os achados da microscopia confocal in vivo em paciente adulto com cistinose infantil. O exame de microscopia confocal in vivo revelou que há diferenças quanto à intensidade de acometimento, tamanho e forma dos depósitos nas diversas camadas corneanas. Descritores: Microscopia confocal; Estroma corneal; Doenças da córnea; Cistinose; Relato de caso INTRODUÇÃO Eye Clinic Day Hospital - Av. República do Líbano, 1034 - São Paulo (SP) CEP 04502-001 1 Médico Oftalmologista da Eye Clinic Day Hospital. 2 Aluna do quarto ano do curso de medicina na Universidade Metropolitana de Santos UNIMES. 3 Professor Livre Docente da Universidade de São Paulo USP. 4 Médico Oftalmologista da Eye Clinic Day Hospital, Professor Livre Docente da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP e Professor Titular do Departamento de Oftalmologia da Universidade Metropolitana de Santos UNIMES. Endereço para correspondência: Dr. Gustavo Victor Av. República do Líbano, 1034 - São Paulo (SP) CEP 04502-001 E-mail: gustavo.victor@eyeclinic.com.br Recebido para publicação em 11.07.2003 Versão recebida em 27.02.2004 Aprovação em 18.03.2004 A cistinose é uma doença autossômica recessiva rara caracterizada pelo acúmulo do aminoácido cistina livre dentro dos lisossomos, resultando no aparecimento de cristais de cistina na medula óssea, leucócitos, linfonodos, rins, córnea, conjuntiva, íris, corpo ciliar, esclera, coróide, epitélio pigmentar da retina, músculos extra-oculares e nervo óptico. O defeito primário está no transporte ativo de cistina através da membrana lisossomal (1-9). Uma mutação genética tem sido mapeada no cromossomo 17p (5-6). Três formas fenotípicas são descritas (1,3-4,6,10) : A) Forma Infantil: é a mais comum e a mais devastadora. Também chamada de nefropática, leva ao desenvolvimento da síndrome de Fanconi. Esta forma pode conter 100 vezes mais cistina que o normal, cursa com retardo do crescimento e desenvolvimento e geralmente é fatal na primeira década de vida na ausência de transplante renal. Os sinais e sintomas oculares mais comuns são fotofobia, prurido, depósito de cistina na conjuntiva, córnea e retinopatia periférica. B) Forma Intermediária ou Adolescente: É caracterizada por nefropatia menos severa que a forma infantil, mas que compromete a expectativa da vida. As alterações evidenciadas na segunda ou terceira década de vida, apresentam-se ou não com falência renal e depósitos característicos na conjuntiva e córnea. A retinopatia não é observada. C) Forma Adulta: Esta forma benigna, que pode conter 30 vezes mais cistina que o normal, é assintomática, à exceção da fotofobia, que freqüentemente leva ao diagnóstico em exame oftalmológico de rotina. Esta forma se apresenta da adolescência à quinta década de vida. Estes pacientes têm expectativa de vida normal. Os heterozigotos têm nível de cistina 4 a 5 vezes maior que o normal, não apresentam anormalidades clínicas e têm expectativa de vida normal. A partir de 1990, a microscopia confocal permitiu estudar a histologia de toda córnea in vivo (11-12), ajudando a compreender, diagnosticar e tratar as alterações corneanas. O objetivo deste estudo é relatar os achados da microscopia confocal in vivo em uma paciente com cistinose infantil.

554 Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso RELATO DO CASO Paciente de 19 anos, feminina, natural de Santa Catarina, Brasil. Nascida de casamento consangüíneo (pais primos), cuja cistinose infantil foi diagnosticado na infância, sendo submetida a transplante renal (1 rim) aos 6 anos de idade. Apresentavase, à inspeção, com baixa estatura para a idade e queixava-se de intensa fotofobia e dor ocular discreta e intermitente. O exame oftalmológico revelou: acuidade visual sem correção (AVSC) 20/20 em ambos olhos (AO). Exame refratométrico mostrou emetropia em AO e motilidade ocular extrínseca normal. A biomicroscopia revelou depósito de cristais distribuído difusamente e por toda espessura do estroma corneano. Não foram observadas alterações no epitélio, endotélio, pálpebras, conjuntiva, íris e cristalino em AO. O exame fundoscópico foi normal em AO. A pressão intra-ocular foi 14 mmhg AO às 13:20 h. Os reflexos fotomotores apresentaram-se normais em AO. A microscopia confocal in vivo de ambos os olhos foi realizado por um dos autores (GV). O aparelho utilizado foi ConfoScan 2.0 (Fortune Technologies Italy). Microscopia confocal in vivo O ConfoScan 2.0 utilizado é equipado com a lente objetiva: Achroplan 40 / 0,75 W /0, que tem uma distância de trabalho de 1,98 mm (13). O seu manuseio e funcionamento já foram descritos anteriormente (11,13-16). Ao iniciar o exame explicou-se previamente o procedimento à paciente, então foi instilada uma gota de Cloridrato de Proximetacaína 0,5% (Anestalcon, Alcon, São Paulo, Brasil). Para a realização do exame, foi utilizada 1 gota do ácido poliacrílico a 0,002%, (Refresh Gel, Chauvin, Audenas, França e importado pela Allergan, São Paulo, Brasil), sobre a lente objetiva. Após o correto posicionamento do paciente e do aparelho, realizou-se o exame. O exame da região central das córneas revelou: ausência de depósitos no epitélio superficial e basal (Figura 1), depósitos no estroma anterior e médio que se caracterizaram de alta refletividade, de formas variadas, sendo mais comum formas retangulares e fusiformes, intracelulares com a manutenção da transparência (hiporrefletividade) do compartimento extracelular (Figura 2), permitindo uma boa refração da luz através da córnea. Em menor densidade, o estroma posterior foi acometido, sendo observado formas mais irregulares, fusiformes e Figura 1 - Epitélio superficial (à esquerda) e basal normais Figura 2 - Depósitos corneanos intracelulares (ceratócitos) observados no estroma anterior e médio. A 115 µm (à esquerda e acima), a 140 µm (à direita e acima) e a 150 µm (inferior) de profundidade. Nota-se que entre os depósitos intracelulares dos ceratócitos ainda há muitas áreas de hiporrefletividade retangulares menores que no estroma anterior (Figura 3). Não foi observado acometimento da maior parte do endotélio, mas algumas células denunciaram o acometimento endotelial (Figura 4). O endotélio apresentou-se com leve pleomorfismo e polimegatismo e densidade de 1.940 cel/mm 2 no olho direito e 1.935 cel/mm 2 no olho esquerdo. Não se observou nenhum nervo corneano durante o exame em ambos olhos e a paquimetria com o microscópio confocal foi 521 e 541 µm nos olhos direito e esquerdo respectivamente. DISCUSSÃO A microscopia confocal permite estudar histologicamente in vivo toda córnea, sendo portanto um exame ao mesmo tempo prático, eficiente e pouco invasivo. Seu emprego a partir de 1990 (11) contribuiu decisivamente para o diagnóstico, tratamento e compreensão de diversas afecções corneanas (17-21). No Brasil, os autores (14-16) realizaram os primeiros estudos com a microscopia confocal in vivo. No presente estudo, avalia-se a cistinose com seus depósitos corneanos característicos. Já foi demostrado (22), com a microscopia confocal in vivo, que a densidade de ceratócitos em córneas normais é maior no estroma anterior diminuindo em direção posterior, onde chega a ser 30% menor. A paciente deste estudo, com 19 anos, portadora da forma infantil de cistinose, apresentou, à biomicroscopia, depósitos difusos de cristais de cisteína (tanto na periferia como no centro da córnea), e em toda profundidade do estroma, poupando epitélio e endotélio. Com a microscopia confocal foi observada densidade maior de depósitos no estroma anterior que no posterior, não acometimento do epitélio e o discreto envolvimento do endotélio corneano. Em relação à forma dos depósitos, foram observadas mais as formas re-

Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso 555 tangulares e fusiformes no estroma anterior e formas mais irregulares e fusiformes menores no posterior. O estudo (3) de um botão corneano de uma paciente de 20 anos portadora de cistinose infantil com microscopia eletrônica também revelou que o epitélio e endotélio estavam pouco afetados e todo estroma acometido, principalmente o anterior. As diferentes taxas de metabolismo dos ceratócitos nas diferentes regiões da córnea foi considerada uma possível causa para a diferença na distribuição dos depósitos no estroma. Este mesmo estudo (3) também observou que as formas dos depósitos variavam com a profundidade do estroma estudado. No estroma anterior, observou formas retangulares grandes, e no posterior, formas irregulares, retangulares pequenas, ovais e mais esparsas, achados similares ao deste estudo. Outro autor (7) observou que os cristais corneanos retangulares na cistinose são formados de L-cistina e presume-se (3) que os Figura 3 - Depósitos corneanos intracelulares (ceratócitos) observados no estroma posterior. Acima à esquerda, a 380 µm de profundidade e ao lado, a 450 µm. Abaixo à esquerda, a 470 µm e ao lado, a 490 µm. Nota-se o formato menor e mais irregular dos depósitos fusiformes são compostos de cistina, mas este ainda não tem sido provado. Na cistinose, os característicos cristais corneanos, que se parecem com pontas de alfinete e fusiformes, não estão presentes ao nascimento (23), mas ocorrem ao redor de 1 ano de vida precedendo o início da insuficiência renal. Os cristais se depositam inicialmente na periferia e no estroma anterior corneano. Com o tempo, vão se direcionando centrípeta e posteriormente. Por volta dos 7 anos, os cristais podem ser achados em todo estroma e na maioria das vezes no endotélio. Os depósitos são simétricos, mais densos e maiores no estroma anterior (3). Os pacientes com cistinose desfrutam de boa acuidade visual pois as regiões entre os ceratócitos permitem a passagem da luz através da córnea como no estroma normal (Figura 5). O mesmo não acontece em outras alterações que também acometem estruturas corneanas extracelulares, como no "haze" (Figura 6), onde há bloqueio à passagem da luz através da córnea, diminuindo a acuidade visual. A expectativa de vida dos pacientes portadores de cistinose infantil tem aumentado com a realização de transplante e cuidados renais. A diminuição da função visual nestes pacientes geralmente ocorre como resultado de anormalidades da função retiniana, sinéquias posteriores, glaucoma (24) e retinopatia hemorrágica (2,25-26). Os pacientes com cistinose infantil têm a sensibilidade corneana significativamente diminuída, com inervação pupilar e condução dos nervos trigêmios normais (4). Este autor (4) sugere que a sensibilidade corneana reduz-se por alterações funcionais no plexo neural epitelial basal e nos nervos penetrantes do estroma anterior ou em suas terminações, localizações estas, com maior concentração de depósitos de cristais corneanos (3). Dor, nestes pacientes, tem sido correlacionada aos depósitos corneanos nestas camadas (6). No caso em estudo não foi medida a sensibilidade táctil corneana. Também não foram observados nervos corneanos durante o exame confocal das córneas, fato não habitual. Figura 4 - À esquerda, endotélio com leve pleomorfismo e polimegatismo. À direita algumas células endoteliais acometidas. Nota-se também os depósitos no estroma posterior Figura 5 - Estroma normal observado à microscopia confocal in vivo. As áreas brancas correspondem aos núcleos dos ceratócitos

556 Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso nestas regiões da córnea. O endotélio é acometido em menor intensidade que o estroma, e o epitélio não foi acometido. ABSTRACT Cystinosis is a rare recessive autosomic disease characterized by the accumulation of the cystine amino acid inside the lysosomes, and it is generally fatal in the first decade of life in the absence of renal transplant. This study has the purpose to describe the in vivo confocal microscopy findings in a patient with infantile cystinosis. The in vivo confocal microscopy examination showed differences in intensity, size and shapes of the corneal deposits in the several corneal layers. Figura 6 - "Haze" observado à microscopia confocal in vivo. Com áreas grandes de alta refletividade e poucas áreas de hiporrefletividade ou sem refletividade (escuras), a acuidade visual, em geral, diminui. Também há o acometimento do espaço extracelular A paciente apresentava espessura corneana normal em AO e contagem endotelial abaixo do normal para idade. Entretanto, há autores (5) que referem que um aumento na espessura corneana nos pacientes com esta forma de cistinose já no começo da doença, pode ser interpretada como uma disfunção subclínica do endotélio corneano. No caso em estudo pode-se observar que o endotélio de ambas as córneas apresentou algumas áreas de depósitos, polimegatismo e pleomorfismo, sugerindo acometimento endotelial. Foi prescrito colírio de cisteamine (tiol livre) a 0,55% a cada 1h e 30 minutos (± 10 vezes ao dia) e futuramente deverá ser avaliada sua eficácia nesta paciente. Há controvérsia quanto à eficácia desta medicação. Para alguns autores (6,27-28) seu uso reduz a densidade dos depósitos cristalinos, dor e erosões corneanas. Para outros autores, não ocorrem diferenças significativas quando usadas em baixas concentrações (6). Parece que o colírio de cisteamine reage com a cistina no interior dos lisossomos formando a cisteína-cisteamine dissulfido, que parece estruturalmente com a lisina, e é transportada através do lisossomo pelo sistema de transporte da lisina, que está normal (1,6). Com o aumento da expectativa de vida dos pacientes com cistinose infantil após transplante renal, tem-se a oportunidade de observar in vivo as alterações corneanas mais tardias desta doença. CONCLUSÃO A microscopia confocal empregada na avaliação deste caso mostrou-se uma importante ferramenta para o estudo in vivo dos depósitos corneanos de cisteína. A cistinose infantil acomete mais o estroma anterior que o posterior e há diferenças na forma e tamanho dos depósitos Keywords: Microscopy, confocal; Corneal stroma; Corneal diseases; Cystinosis; Case report REFERÊNCIAS 1. Rosenberg LE. Doenças de armazenamento dos aminoácidos. In: Wilson JD, Braunwald E, Isselbacher KJ, Petersdorf RG, Martin JB, Fauci AS, Root RK, editors. Harrison Medicina Interna, 12 a ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 1992. p.227-8. 2. Kaiser-Kupfer MI, Caruso RC, Minkler DS, Gahl WA. Long-term ocular manifestations of nephropathic cystinosis. Arch Ophthalmol 1986;104:706-11. 3. Melles RB, Schneider JA, Rao NA, Katz B. Spatial and temporal sequence of corneal crystal deposition in nephropathic cystinosis. Am J Ophthalmol 1987;104:598-604. 4. Katz B, Melles RB, Schneider JA. Corneal sensitivity in nephropathic cystinosis. Am J Ophthalmol 1987;104:413-6. 5. Katz B, Melles RB, Schneider JA, Rao N. Corneal thickness in nephropathic cystinosis. Br J Ophthalmol 1989;73:665-8. 6. Bridges WZ, Palay DA. Corneal deposits. In: Krachmer JH, Mannis MJ, Holland EJ, editors. Cornea. St Louis: Mosby; 1997. p.417-28. 7. Frazier PD, Wong VG. Cystinosis. Histologic and crystallographic examination of crystals in eye tissues. Arch Ophthalmol 1968;80:87-91. 8. Sanderson PO, Kuwabara T, Stark W, Wong VG, Collins EM. Cystinosis. A clinical, histopathologic and ultrastructural study. Arch Ophthalmol 1974;91:270-4. 9. François J, Hanssens M, Coppieters R, Evens L. Cystinosis. A clinical and histopathologic study. Am J Ophthalmol 1972;73:643-50. 10. Kaiser-Kupfer MI, Datiles MB, Gahl WA. Corneal transplant in a twelve-yearold boy with nephropathic cystinosis. Lancet 1987;1:331. 11. Cavanagh HD, Jester JV, Essepian J, Shields W, Lemp MA. Confocal microscopy of the living eye. CLAO J 1990;16:65-73. 12. Grupcheva CN, Craig JP, Sherwin T, McGhee CN. Differential diagnosis of corneal oedema assisted by in vivo confocal microscopy. Clin Experiment Ophthalmol 2001;29:133-7. 13. Confoscan 2.0. Full computerized confocal microscope, specifications and operating manual. Greensboro NC: Fortune Technologies. 14. Victor G, Nosé W. Microscopia confocal in vivo em ceratocone: relato de caso. Rev Bras Oftalmol 2001;60:853-8. 15. Victor G, Alberti GN, Nosé W. Microscopia confocal in vivo na epitelização da interface após LASIK. Rev Bras Oftalmol 2002;61:284-9. 16. Victor G, Alves MR, Nosé W. Avaliação in vivo da histologia corneana após ceratotomia radial com a microscopia confocal. Rev Bras Oftalmol 2003;62:641-51. 17. Li HF, Petroll WM, Moller-Pedersen T, Maurer JK, Cavanagh HD, Jester JV. Epithelial and corneal thickness measurements by in vivo confocal microscopy through focusing (CMTF). Curr Eyes Res 1997;16:214-21. 18. Prydal JL, Franc F, Dilly PN, Kerr Muir MG, Corbett MC, Marshall J. Keratocyte density and size in conscious humans by digital image analysis of confocal images. Eye 1998;12(Pt 3A):337-42. 19. Tomii S, Kinoshita S. Observations of human corneal epithelium by tandem scanning confocal microscope. Scanning 1994;16:305-6. 20. Cavanagh HD, Petroll WM, Alizadeh H, He YG, McCulley JP, Jester JV.

Microscopia confocal in vivo na cistinose - Relato de caso 557 Clinical and diagnostic use of in vivo confocal microscopy in patients with corneal diseases. Ophthalmology 1993;100:1444-54. 21. Cogan DG, Kuwabara T. Ocular pathology of cystinosis. Arch Ophthalmol 1960;63:51-7. 22. Trauner DA, Chase C, Scheler J, Katz B, Schneider JA. Neurologic and cognitive deficits in children with cystinosis. J Pediatr 1988;112:912-4. 23. Mustonen RK, McDonald MB, Srivannaboon S, Tan AL, Doubrava MW, Kim CK. Normal human corneal cell populations evaluated by in vivo scanning slit confocal microscopy. Cornea 1998;17:485-92. 24. Goldsmith LA. Cutaneous changes in errors of amino acid metabolism: alkaptonuria. In: Fitzpatrick TB, Eisen AZ, Wolff K, editors. Dermatology in general medicine. 3rd ed. New York: McGraw-Hill; 1987. p.1642-6. 25. Katz B, Melles RB, Schneider JA. Recurrent crystal deposition after keratoplasty in nephropathic cystinosis. Am J Ophthalmol 1987;104:190-1. 26. Gahl WA, Reed GF, Thoene JG, Schulman JD, Rizzo WB, Jonas AJ, et al. Cysteamine therapy for children with nephropathic cystinosis. N Engl J Med 1987;316:971-7. 27. Gahl WA, Kuehl EM, Iwata F, Lindblad A, Kaiser-Kupfer MI. Corneal crystals in nephropathic cystinosis: natural history and treatment with cysteamine eyedrops. Mol Genet Metab 2000;71:100-20. 28. Iwata F, Kuehl EM, Reed GF, McCain LM, Gahl WA, Kaiser-Kupfer MI. A randomized clinical trial of topical cysteamine disulfide (cystamine) versus free thiol (cysteamine) in the treatment of corneal cystine crystals in cystinosis. Mol Genet Metab 1998;64:237-42. XXX Congresso Internacional de Oftalmologia XXVI Congresso Pan-Americano de Oftalmologia XVII Congresso Brasileiro de Prevenção da Cegueira e Reabilitação Visual 19 a 24 de fevereiro de 2006 Transamérica Expo-Center SÃO PAULO - SP INFORMAÇÕES: Meeting Eventos Fone: (11) 3849-8263 - Fax: (11) 3849-0379 E-mail: info@ophthalmology2006.com.br Home-page: www.ophthalmology2006.com.br