Testamento vital e a possibilidade de sua inserção no ordenamento Jurídico Brasileiro

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Transcrição:

ISSN 1127-8579 Pubblicato dal 09/09/2013 All'indirizzo http://ww.diritto.it/docs/35384-testamento-vital-e-a-possibilidade-de-sua-insero-no-ordenamento-jur-dico-brasileiro Autore: Marina Matos Sillmann Testamento vital e a possibilidade de sua inserção no ordenamento Jurídico Brasileiro

TESTAMENTO VITAL E A POSSIBILIDADE DE SUA INSERÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Marina Carneiro Matos Sillmann RESUMO: Em virtude dos grandes avanços da medicina surge o testamento vital, documento com o qual a pessoa expressa os tratamentos que deseja se submeter caso venha a padecer de doença terminal e não puder expressar sua vontade. Tal documento tem força vinculante, não podendo médicos e familiares agirem de modo contrário. Também chamado de carta de disposição de vontades, pode ser considerado como expressão do princípio da dignidade humana, ao fazer prevalecer a vontade da pessoa em não se submeter a um tratamento. O presente trabalho tem como objetivo estudar a possibilidade de aplicação do instituto do testamento inter vivos no ordenamento jurídico brasileiro a partir da experiência estrangeira. Palavras Chave: Testamento Vital. Direito de morrer. Direito Comparado CONSIDERAÇÕES INICIAIS A atualidade convive com avanços tecnológicos na área da medicina, o que possibilita a cura de muitas doenças e em algumas circunstâncias ocorre apenas o prolongamento da vida, constituindo o controle da enfermidade à custa de muito sofrimento para o paciente e sua família. Neste contesto surge o Instituto do Testamento Vital, aplicado primeiramente nos Estados Unidos por um advogado de Chicago, ao defender o interesse de seu cliente de não se submeter a nenhum tratamento, caso viesse a sofrer de enfermidade terminal. O testamento vital ganha visibilidade com a Sra. Jackeline Kennedy, quando diagnosticada com linfoma, opta por não se submeter a nenhum tratamento, sendo sua vontade obedecida. Esta é uma circunstância que demonstra a importância deste instituto e leva diversos países à discutirem sobre a autonomia do paciente em escolher se vai aderir ou não ao tratamento.

Países como os Estados Unidos, Uruguai, Espanha, Portugal, Itália e Argentina, aderem ao instituto, permitindo ao paciente a possibilidade de escolha e a garantia que seu desejo será obedecido pelo médico. No Brasil a discussão ainda é recente, o que justifica o estudo do tema a partir da experiência estrangeira. A carta de disposições finais permite à pessoa estabelecer os limites de seu tratamento, caso venha a ter sua capacidade de expressão mitigada em face da doença. É a mais alta expressão da dignidade da pessoa humana, já que permite que a vontade da pessoa seja respeitada ainda que não possa ser expressa. O testamento vital não significa desistir da vida, mas sim de abraçar a morte. Os objetivos do presente trabalho resumem-se na análise do instituto do testamento vital a partir de uma abordagem internacional, valendo-se do direito comparado, leis e jurisprudências de países que consolidaram o instituto. Além disso, verifica-se possibilidade de aplicação da carta de disposições de vontade no âmbito brasileiro independente de alteração legislativa, utilizando-se as leis promulgadas em outros países. 1 TESTAMENTO VITAL: ORIGEM E CONCEITO Testamento vital, também conhecido como carta de disposições de vontade, pode ser definido como o documento de caráter vinculante que uma pessoa, em pleno gozo das faculdades mentais e dotada de capacidade civil, expressa quais são os tratamentos que deseja se submeter caso venha a padecer de doença terminal e não puder expressar seu desejo. Luciana Dadalto (2010, p.02), define o referido instituto: Assim, as diretivas antecipadas são gênero, do qual é espécie o testamento vital, documento pelo qual uma pessoa capaz pode deixar registrado a quais tratamentos e não tratamentos deseja ser submetida caso seja portadora de uma doença terminal e o mandato duradouro.

Essencial para elaboração do documento é o dever de esclarecimento pelo médico à pessoa sobre a patologia, os tratamentos existentes e a possibilidades de cura. Consequência do dever de esclarecimento é o consentimento informado, ou seja, para que a pessoa consinta ou negue determinado tratamento é essencial que saiba todos os riscos e consequências de sua escolha. Nas palavras de Luciana Dadalto (2010, p. 46), consentimento informado nas relações médico-paciente tem papel de princípio basilar, pois é informador deste contrato, juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana. Cumpre ressaltar que o dever de esclarecimento é previsto no Código de Ética Médica no art. 41: Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença. A carta de disposição de vontades tem origem nos Estados Unidos, quando um advogado de Chicago elabora um documento para um cliente expressando quais tratamentos mesmo gostaria de se submeter e quais não. No entanto, ganha fama mundial ao ser utilizado por Jackeline Kennedy, que ao padecer de linfoma, opta por não se tratar. Em relação à exatidão da origem do instituto, tem-se: De acordo com Cortés, historicamente o Testamento Vital nasceu nos Estados Unidos, em 1967, criado por Luis Kutner, um advogado de Chicago que redigiu um documento onde registrava expressamente o desejo de um cidadão de recusar tratamento, caso sobreviesse enfermidade terminal [...](PICCINI, et al, 2011, p.) Diversos países, como os Estados Unidos, a Espanha, a Itália e a Argentina já regulamentaram o instituto. Em Portugal encontra-se em fase de aprovação. No Brasil a discussão ainda é recente. 2 PRINCÍPIOS

Essencial para a análise da validade do testamento vital no Brasil é estudar três princípios correlacionados ao assunto: da autonomia privada, da dignidade da pessoa humana e da indisponibilidade do direito à vida. Pode-se definir o princípio da autonomia privada como sendo a prerrogativa da pessoa em poder expressar sua vontade, estabelecendo o conteúdo e a forma das relações jurídicas de que participa. Na definição apresentada por Luciana Dadalto (2010, p. 39), a autonomia privada [...] deve ser entendida como o poder de perseguir seu interesse individual, desde que este não se choque com a autonomia pública, ou seja, desde que conserve a coexistência de todos os projetos de vida dos cidadãos. Como exceção à autonomia privada, existem as normas cogentes ou de ordem pública que não podem ser modificadas pela vontade das partes, uma vez que apresentam forte interesse para a coletividade. O testamento vital é expressão da autonomia privada, pois determina o cumprimento da vontade de determinada pessoa em não se submeter a um tratamento com resultado não significativo. Não fere normas de ordem pública, pois interessa tão somente à esfera de intimidade do sujeito que vai praticar o ato e não adentra na esfera da coletividade nem viola o interesse público. Já o princípio da dignidade humana defende que o homem, como um ser que apresenta qualidades próprias à sua condição deve ser respeitado pelo Estado e pela Sociedade. Pertinente citar Ingo Sarlet (2010, p.70), ao analisar tal princípio à luz da Constituição Federal de 1988: [...]Assim sendo temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando neste sentido um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato

de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. O testamento vital pode ser considerado como máxima expressão do princípio da dignidade da pessoa humana, pois além de fazer sua vontade ser cumprida, lhe assegura uma morte digna, sem força-la à submeter a um tratamento considerado por ela degradante e dispensável. O terceiro princípio, ou seja, da indisponibilidade do direito à vida, preceitua que por ser a vida um bem jurídico de extrema importância não pode ser disposto de acordo com a vontade de seu titular. Embora neste caso a conduta seja juridicamente impossível de ser punida, ela ainda é reprovável. Raquel Dodge, (1999, p.2) apresenta algumas considerações sobre este princípio: a indisponibilidade do corpo humano deve considerar, sobretudo, que a vida é o bem jurídico de mais alto valor, inalienável e intransferível, que exige dever geral de abstenção, de não lesar e não perturbar, oponível a todos (é o chamado efeito erga omnes). Cumpre ressaltar que a carta de disposição de vontades não fere o princípio da indisponibilidade do direito à vida, pois não atenta contra bem de tamanha importância, apenas cuida para que a vontade da pessoa em não se submeter a tratamentos que não lhe garantam a sobrevivência, apenas prolongam a espera da morte. Em outras palavras, o testamento vital não antecipa a morte, apenas garante que esta siga seu curso natural, caso seja a vontade da pessoa. 3 EXPERIÊNCIA ESTRANGEIRA Essencial para a proposta levantada por este artigo, referente à possibilidade de aplicação do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro por meio de analogia, é estudar a experiência estrangeira, a fim de se saber como o referido instituto funciona em terras alienígenas.

Para atingir este objetivo o artigo se restringe à experiência norte americana e europeia, países mais avançados em pesquisa e aplicação do documento, ressaltando que a declaração prévia de vontade já é instituída em outros países como o Uruguai, a Colômbia e a Argentina. Conforme já mencionado, o testamento vital surge nos Estados Unidos, sendo elaborado um modelo em 1969. Porém, apenas em 1976 com o caso Karen Ann Quinlan, a hipótese é levada à Justiça (DADALTO, 2010, p. 79). O documento é positivado pela primeira vez no estado da Califórnia e, após a grande repercussão do caso Nancy Cruzan, é elaborada lei federal estabelecendo diretrizes de como o instituto deve ser aplicado para os estados norte americanos. O caso citado exemplifica a importância e necessidade do testamento vital. Nancy Cruzan, jovem de vinte e cinco anos sofre um acidente de carro e entra em coma. Aos vinte anos havia expressado o desejo de não receber medicamento caso viesse a perder a capacidade mental. A família vê negado o desejo de Nancy Cruzan pelos médicos e é obrigada a procurar tutela jurisdicional, obtendo decisão favorável sete anos após o acidente. Embora o caso se refira à eutanásia, possibilidade não abordada pelo testamento vital, ele demonstra a importância de se cumprir a vontade do indivíduo. A população, com medo de se ver em situação semelhante clama pela criação de garantia legal para que sua vontade seja cumprida. Surge em 1991 a primeira lei federal norte americana que visa reconhecer o direito de escolha do paciente anterior à situação terminal (DADALTO, 2010, p. 83). Na Europa a discussão sobre as diretivas antecipadas de vontade é consolidada em 1997 com a Convenção de Direitos Humanos e Biomedicina, assinada por trinta e cinco membros do Conselho da Europa e 23 ratificações (DADALTO, 2010, p. 84).

O artigo nono da referida Convenção estabelece que a vontade anteriormente à situação de incapacidade expressa pela pessoa deve ser considerada: Artigo 9.º A vontade anteriormente manifestada no tocante a uma intervenção médica por um paciente que, no momento da intervenção, não se encontre em condições de expressar a sua vontade, será tomada em conta. Dentre os países signatários da convenção pode-se citar o exemplo da Espanha que a ratifica e elabora legislação interna sobre a questão do testamento vital, da Itália que, embora não ratificando o tratado permite o instituto sem atribuir caráter vinculante e Portugal, que ratificou o tratado, mas há divergência interna sobre a validade da carta de disposição de vontades. 4 VALIDADE NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO Com relação à análise da validade do testamento vital no ordenamento jurídico brasileiro, o Código de Ética Médica em vigor desde 2009 estabelece que é dever do médico levar em consideração a vontade do paciente em se submeter a tratamento (arts. 46, 48 e 56). Tal norma demonstra a importância que deve se dar à vontade do paciente. A partir de interpretação sistemática das normas brasileiras não é encontrada nenhuma norma que veda o direito do paciente em decidir se vai se submeter ou não à determinado tratamento quando este não aumenta a chance de cura, sendo apenas prolongamento da situação terminal. Neste sentido tem-se o pensamento de Luciana Dadalto (2010, p. 129): Os princípios constitucionais da Dignidade da Pessoa Humana (art. 1º,III) e da Autonomia (princípio implícito no art. 5º), bem como a proibição de tratamento desumano (art. 5º,III) são arcabouços suficientes para a defesa da declaração prévia do paciente terminal, vez que o objetivo deste instrumento é possibilitar ao indivíduo dispor sobre a aceitação ou recusa de tratamento em caso de terminalidade da vida. Após estas constatações conclui-se pela possibilidade de existência do testamento vital no Brasil, permitindo inclusive o registro do documento em Cartório para atestar fé pública e publicidade.

A grande questão que resta sobre o tema é a força vinculante do testamento vital. Como já ressaltado, nada impede que a pessoa elabore documento, porém não há garantia de que sua vontade, caso perca a capacidade ou consciência, será cumprida. A partir disso são analisadas algumas soluções. A primeira possibilidade é elaborar o documento no Brasil, efetuar o registro em cartório, com o fim de atestar sua veracidade para apresentação ao médico. Caso este se recuse a cumprir a vontade, a família ou o autor do documento deve procurar resposta judicial. Neste caso, juiz tem o papel de analisar a legalidade e autenticidade do documento e pode inclusive determinar dilação probatória. Além disso, verifica se os termos da vontade do doente terminal não ferem a ordem jurídica brasileira. Se o testamento vital em juízo for compatível com a lei, a moral e os bons costumes, a sentença determina o cumprimento de seus termos pelo médico. Outra solução é criar o documento em país cuja legislação permita o testamento vital. Com esta situação surge um ato jurídico capaz de produzir efeitos no território brasileiro, desde que com observância dos preceitos do art. 17 da lei de introdução às normas do direito brasileiro, o qual determina que as leis, atos e sentenças de outro país, bem como quaisquer declarações de vontade, não terão eficácia no Brasil, quando ofenderem a soberania nacional, a ordem pública e os bons costumes. Ao autor do testamento vital basta a comprovação de que seu ato jurídico não ofende a soberania nacional, a ordem pública nem os bons costumes. Dessa forma o ato praticado em território estrangeiro adquire eficácia e garante a desejada força vinculante. Nesta hipótese, da mesma maneira que na primeira, cabe a ressalva de que caso o médico se recusa a cumprir o estabelecido pelo ato é possível o reconhecimento judicial, conforme explicado. Em virtude disso, a primeira solução se mostra mais prática.

Cumpre alertar que caso o documento estabeleça a prática de eutanásia, este perde a validade naquilo que se refere a este instituto. A eutanásia consiste na prática de ação ou omissão para antecipar a morte de uma pessoa em estado terminal e é tipificada como crime pelo art. 121 do Código Penal. Por sua vez o testamento vital demonstra a vontade da pessoa em não se tratar, quando o tratamento cabível não tiver previsão de cura, mas sim de apenas prolongamento da vida. O documento não antecipa a morte, como a eutanásia, mas permite que a vida acabe no tempo natural, ou seja, sem adiar o fim por meio de ação humana. Dessa forma, a distanásia, medida prevista pela carta de antecipação de vontades, não encontra vedação legal. CONSIDERAÇÕES FINAIS O testamento vital é um documento no qual a pessoa deixa por escrito quais tratamentos não deseja se submeter caso padeça de doença terminal e tenha sua capacidade para os atos da vida civil cessada. Instituto de fundamental importância eleva o princípio da dignidade da pessoa humana à sua máxima efetividade, pois assegura que a vontade da pessoa em não se tratar seja cumprida. Diante de uma doença terminal a angústia é dupla, pela falta de resposta ao tratamento e pela incerteza de cura praticamente absoluta. Prolongar este sofrimento apenas pela obstinação terapêutica e contra a vontade da pessoa não significa defender a vida, mas tão somente o sofrimento. Já aprovado em diversos países, ainda é um tema recente no Brasil, por isso seu estudo deve ser estimulado. Defende-se a validade do instituto da carta de disposição de vontade no Brasil a partir da experiência estrangeira.

Para tanto, apresenta como soluções o reconhecimento judicial, caso o documento feito em território brasileiro seja recusado pelo médico, ou elaboração em território estrangeiro, podendo também ser feito seu reconhecimento judicial. Ressalta-se que, se morrer é o último ato da pessoa, deve ser o mesmo feito da forma mais digna possível, de acordo com o desejo do ser humano. O testamento vital comprova a grande diferença entre vida e viver. REFERÊNCIAS DADALTO, Luciana. Testamento vital. 1.ed., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. DODGE, Raquel Elias Ferreira. Eutanásia Aspectos Jurídicos. Revista Bioética, v.7, nº1. 1999. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewfile/299/438 >. Acesso em: 18 de abril de 2012. DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: parte geral. 7.ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2003. NUNES, Rui. Estudo nºe/17/apb/10- Testamento vital. Disponível em: <http.www.apbioetica.org>. Acesso em 1º de abril de 2012. PICCINI, Cleiton Francisco. et alt. Testamento vital na perspectiva de médicos, advogados e estudantes. Disponível em: < http://www.saocamilosp.br/pdf/bioethikos/89/a4.pdf> publicado em 2011. Acesso em 1º de abril de 2012. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição federal de 1988. 8. ed.rev.atual e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

STOLZ, Camila. et alt. Manifestação das vontades antecipadas do paciente como fator inibidor da distanásia. Disponível em: <http://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/viewarticle/679> Publicado em 2011. Acesso em 1º de abril de 2012. STRENGER, Irineu. Direito internacional privado. 5, ed. São Paulo: LTr, 2003