MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: ÚLTIMA ALTERNATIVA OU PRIMEIRA ESCOLHA? 1

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Transcrição:

MEDIDA SOCIOEDUCATIVA DE INTERNAÇÃO: ÚLTIMA ALTERNATIVA OU PRIMEIRA ESCOLHA? 1 Iris Menezes de Jesus (UFF) 2 O presente trabalho é fruto da pesquisa de mestrado em Educação em andamento que foi pensada a partir da monografia realizada no curso de graduação em Direito. Ambas visam refletir sobre as influências da medida socioeducativa de internação nas trajetórias dos adolescentes que as cumprem. Já estiveram em vigor no Brasil diversas legislações e/ou regulamentações voltadas para crianças e adolescentes, sendo as mais recentes, o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA, promulgado em 1990, com o objetivo de garantir a proteção integral de toda e qualquer criança e adolescente, e o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, o SINASE, criado em 2012, ainda bastante recente e, consequentemente, com menores possibilidades de se avaliar sua real efetividade. Esses dois ordenamentos jurídicos vieram com intuito de proteger e garantir direitos e deveres deste segmento populacional. A medida de internação é privativa de liberdade e resulta de um processo judicial, devendo ser aplicada quando do cometimento de ato infracional de grave ameaça ou violência à pessoa, ou quando houver reincidência no cometimento de infrações menos graves. Essa medida pauta-se nos princípios da brevidade 3 e da excepcionalidade. Ou seja, deve ser aplicada somente em último caso. Infelizmente, na prática, há dados que apontam que, ao contrário do previsto em lei, é a mais aplicada. De acordo com o levantamento do SINASE realizado em 2013, existe um aumento constante e regular de privação e restrição de liberdade desde 2010, com predominância para a aplicação da modalidade de internação (64%). 1 V ENADIR - GT 10 Justiça juvenil em conflito com a lei e instituições de internamento para jovens. 2 Iris Menezes de Jesus, Universidade Federal Fluminense. Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. E-mail: irismenezesrj@gmail.com. 3 A internação deve ser mantida pelo menor tempo possível, observando-se o prazo máximo de três anos, reavaliando-se no máximo a cada seis meses a pertinência da manutenção da medida ou a substituição desta por outra que se mostrar mais apropriada. 1

Para Foucault (1977), a instituição socioeducativa adquire uma função de normatizar estes adolescentes, atuando na ideia de um regime disciplinar que analise os indivíduos, os separe e classifique para treiná-los e docificar seus corpos. Logo, esse uso recorrente nos faz refletir sobre como esta medida pode influenciar no comportamento e nas trajetórias dos adolescentes, que se vêem dentro de uma unidade de internação e fora do convívio social. Levando em conta as diversas questões sobre vulnerabilidade e políticas de restrição e privação de liberdade no Brasil, esta pesquisa, através da aplicação de questionários realizado com adolescentes que cumprem medida de internação no Departamento Geral de Ações Socioeducativas do estado do Rio de Janeiro (DEGASE), visa refletir sobre quem são esses jovens e adolescentes, que espaços os excluem e quais são suas realidades e expectativas. As Medidas Socioeducativas e suas reais finalidades Fundamentados na doutrina da situação irregular 4 ao longo da história brasileira, diversos marcos legais e operacionais 5 regularam à implementação de políticas para crianças e adolescentes. Com o advento da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 é que se passou a garantir a proteção integral 6 de toda criança e adolescente, culminando, em 2012, com a aprovação da Lei SINASE, institui-se o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, regulamentando a execução das medidas socioeducativas destinadas aos adolescentes que praticam ato infracional. 4 Não se preocupa com os direitos humanos da população infanto-juvenil em sua integridade. Limita-se a assegurar a proteção para os carentes e abandonados e a vigilância para os inadaptados e infratores. Funcionando com base no binômio compaixão-repressão, a Justiça de Menores chamava à sua esfera de decisão tanto os casos pura-mente sociais, como aqueles que envolviam conflito de natureza jurídica. (Antônio Carlos Gomes da Costa, p.46,2006). 5 Pautados na doutrina de situação irregular, foram aprovados o Código de Menores de 1927-1949 e 1979. Em 1942 é criado o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM) com seus internatos e reformatórios permanecendo até 1964, quando foi substituído pela Fundação Nacional do Bem-estar do Menor (FUNABEM) e pela Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (FEBEM) em cada estado da Federação. 6 A partir da década de 1980 é adotada a doutrina da proteção integral, fruto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança. Substituindo a herança trágica do não-direito da Doutrina da Situação Irregular pela vigência plena do novo direito da infância e da juventude. Procedendo a uma nova divisão do trabalho socioeducativo entre a União, os estados e os municípios, bem como entre o Estado e a sociedade civil. (Antônio Carlos Gomes da Costa, p.81,2006). 2

Conforme o artigo 103 do ECA, o ato infracional é uma conduta que pode ser descrita como crime ou contravenção penal cometido por crianças ou adolescentes. Consiste em um ato condenável, de desrespeito às leis, à ordem pública, aos direitos dos cidadãos ou ao patrimônio. Em síntese, o ato infracional só se verifica se àquela conduta corresponder a uma condição legal que determine sanções ao seu autor. No caso de ato infracional cometido por criança até 12 anos de idade, aplicam-se as medidas de proteção. Nesse caso, o órgão responsável pelo atendimento é o Conselho Tutelar. Já o ato infracional cometido por adolescente a partir dos 12 anos de idade deve ser apurado pela Delegacia da Criança e do Adolescente, a quem cabe encaminhar o caso ao Promotor de Justiça, que poderá propor a aplicação de uma das medidas socioeducativas previstas no ECA. São seis as medidas socioeducativas aplicadas aos adolescentes: advertência 7 é a medida que consiste em uma repreensão verbal que será reduzida a termo, isto é, transformada em documento escrito e assinada. Em síntese, tem como propósito alertar o adolescente e seus genitores ou responsáveis para os riscos do envolvimento no ato infracional; obrigação de reparar o dano 8 é a medida socioeducativa que visa a restituição de algo. Ou seja, promover o ressarcimento ao dano ou compensar o prejuízo da vítima; prestação de serviços à comunidade é a realização de tarefas gratuitas de interesse geral, por período máximo de seis meses, junto a entidades assistenciais, escolas, hospitais, dentre outros; liberdade assistida, que tem o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente, visando a sua inserção ao convívio familiar e comunitário; semiliberdade, que pode ser realizada desde o início da apreensão ou como forma de transição para o meio aberto 9. Em linhas gerais, possibilita a realização de atividades externas e é obrigatória escolarização e profissionalização; a internação em estabelecimento socioeducativo 10 é a medida mais grave, pois constitui em privação de liberdade. O tempo máximo previsto de internação é de três anos. 7 É uma das medidas mais antigas, que já constava tanto no Código de Menores de 1927 quanto no de 1979. 8 O Parágrafo único do art. 116 diz que, se houver impossibilidade de seu cumprimento, poderá ser substituída por outra adequada. 9 Liberdade Assistida (LA) e Prestação de Serviço a Comunidade (PSC). 10 Como elenca o artigo 123 do ECA, a internação deve ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes, em local diferente daquele destinado ao abrigo, obedecendo a rígida separação por critérios de idade, compleição física e gravidade da infração. Além do que, durante o período de internação, inclusive provisória, serão obrigatórias atividades pedagógicas. O estatuto prevê ainda a medida de internação provisória, pelo prazo de até 45 dias, para apuração e julgamento de ato infracional atribuído a adolescente. 3

É importante ressaltar que as medidas socioeducativas compõem uma resposta estatal aplicada pela autoridade judiciária e implementada pelos poderes executivos ao adolescente que comete ato infracional. Apesar de possuir aspectos sancionatórios e coercitivos, a medida socioeducativa é eminentemente pedagógica com caráter educador. Para Volpi (2002), é necessário que os espaços de internação, façam com que o adolescente reflita o motivo que levou a cometer a infração, não apenas estar centrado no cometimento do ato infracional. A unidade deve propiciar ao adolescente espaço para que este se constitua como sujeito, tenha sua individualidade respeitada, assim como sua privacidade. E ainda deve haver o envolvimento da família e da comunidade, sendo estes elementos vitais para a quebra do isolamento, o que facilita o retorno à vida social. Ainda segundo Volpi (2002), a finalidade principal da privação da liberdade, como um processo educacional, é a formação para a cidadania, tendo cada estabelecimento um fim social. O trabalho educativo deve dispor da educação para o exercício da cidadania, trabalhando eventos que possam dar novos significados à vida dos adolescentes e proporcionar uma contribuição para a construção do projeto de vida de cada um. O Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo de 2013 aponta para um possível equívoco na aplicação da medida de internação, pois, paradoxalmente, o crescimento da restrição e privação de liberdade para os casos de pouca gravidade se assemelha mais à utilização da internação-sanção. Esse desvio exige uma intervenção conjunta do Sistema de Justiça e do Poder Executivo, uma vez que o seu uso indiscriminado é adverso às medidas de proteção previsto no ECA e no SINASE DEGASE: a visão da emancipação No estado do Rio de Janeiro, o órgão responsável e executor das medidas socioeducativas de internação, semiliberdade e pela medida cautelar de internação provisória, é o Departamento Geral de Ações Socioeducativas DEGASE. Em linhas gerais, atua de acordo com o previsto no art. 88 do ECA, que regulamenta e aponta as diretrizes das políticas de atendimento, direcionando e explicitando o papel dos órgãos responsáveis para a garantia e efetivação do sistema socioeducativo. 4

Esse departamento foi fundado durante o governo Leonel Brizola em substituição à Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência (FCBIA), fundação pública federal responsável pela execução das medidas socioeducativas da época. Com o passar do tempo o Rio de Janeiro se tornou a última Unidade da Federação que ainda mantinha a estrutura federal para execução dessas medidas, pertencendo à Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) tal atribuição. Devido à implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, a FUNABEM foi extinta, dando lugar a FCBIA, que, com a estadualização da execução de medidas socioeducativas, foi substituída pelo DEGASE. O DEGASE foi criado pelo Decreto nº 1843 de 26/01/1993 e, segundo o seu Projeto Político Institucional, é um órgão ligado à Secretaria de Estado de Educação 11 : Tendo a responsabilidade de promover a socioeducação no estado, permitindo a formação de pessoas autônomas, cidadãos solidários e profissionais competentes, possibilitando a construção de projetos de vida e a convivência familiar e comunitária. 12 Essa Instituição, assim como as diversas políticas que tivemos no Rio de Janeiro e no Brasil ao longo de sua história, tem intento e objetivos admiráveis, porém, por diversas vezes, as práticas se diferenciam bastante de suas idéias e designo, por inúmeros motivos que vai desde a falta de verba até o preparo de seus agentes. Isso nos leva a refletir sobre os motivos que tornam essas políticas tão fragilizadas, ao passo que possuem uma ideologia que deveria ser seguida e respeitada, para que os adolescentes que lá se encontram pudessem reconhecer o valor da instituição e acima de tudo se reconhecerem enquanto cidadãos passíveis de mudança. Caminhando na direção de mudança de postura na política de atendimento, o DEGASE, com fim de responder as diretrizes nacionais de atendimento socioeducativo, aprovou documentos que consolidam a perspectiva pedagógica em seu atendimento, produzindo as mudanças previstas na política implementada nos últimos anos. 11 É o único estado da federação em que o seu sistema socioeducativo está sob a gestão da Secretaria de Estado de Educação. Segundo o levantamento SINASE 2013, nos outros estados a gestão estadual do atendimento socioeducativo encontra-se nos seguintes órgãos: Assistência Social e Cidadania (AP, AM, PA, TO, AL, BA, MA, PB, PI, SE, MG, SP, PR), Justiça e Segurança Pública (AC, RO, MS, MT, ES, SC, RS), Trabalho (RR, CE, RN, GO) e Criança e Adolescente (PE e DF). 12 Disponível em www.degase.rj.gov.br. (Acesso em 04/05/2017). 5

O Plano de Atendimento Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro PASE/ RJ, aprovado em 2010 pelo Conselho Estadual da Criança e Adolescente (CEDCA), com vigência decenal, define as linhas de ações da instituição. Surge como resposta à normatização do Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo. Este documento representa uma proposta de política pública que expande, unifica e melhora os serviços prestados nas unidades socioeducativas e no atendimento dos adolescentes autores de ato infracional que cumprem medida de semiliberdade e internação. Desta forma, a política estadual deve se responsabilizar para que o atendimento aos adolescentes em medida de privação de liberdade seja realizado por uma política com recursos humanos adequados, eliminando o modelo de atendimento praticado até a promulgação do ECA. Aquele modelo do Código de Menores 13 não atende aos fins sociais que o Estatuto prevê. Quem são os adolescentes que cumprem medida socioeducativa Ao pensar nesses adolescentes, autores de atos infracionais submetido a medidas socioeducativas, é necessário compreender o universo que estão inseridos e suas realidades. Segundo o levantamento realizado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (2013), 66% dos adolescentes que estão em cumprimento de medida socioeducativa vivem em famílias extremamente pobres, 60% são negros e 51% não frequentavam escola na época do delito. Os dados obtidos com a pesquisa de campo de mestrado atualmente realizada mostram que esses adolescentes permanecem apresentando um perfil semelhante, visto que, 18,9% vivem em famílias que ganham até 1 salário mínimo, sendo que, 30% residem com 6 ou mais pessoas, 30,3% se declaram da cor preta e 45,9% parda e 74% diziam não frequentar a escola. Em suma, podemos afirmar que o perfil dos adolescentes em conflito com a lei, que cumprem medida de privação de liberdade no Brasil, na maioria, são negros, pobres, com ensino fundamental incompleto. 13 Elaborado por um Juiz de menor. O código voltava-se especificamente para as classes populares, visando a punição e tentativa de correção de menores infratores através do trabalho, assim como a sua inclusão no mercado de trabalho em parceria com empresas privadas. 6

Os jovens que cumprem medida socioeducativa de internação, segundo a pesquisa de mestrado em andamento, ainda são majoritariamente do sexo masculino 97,4%, 31,6% possuem a presença materna e paterna em suas casas, desmitificando que esses jovens não têm família ou vivem em abrigos. 44% nunca tiveram casos de prisões na família, o que não justifica o discurso de que a prática do ato infracional se propaga pelas gerações, 26,4% tem apenas 1 passagem pelo DEGASE e 64,8% relatam já ter sofrido violência por algum profissional das instituições pela qual passou. O que revela o caráter violento das instituições que deveriam amparar e assegurar direitos a esses jovens. Em relação ao tipo do ato praticado temos as seguintes informações; segundo o Instituto de Pesquisa Econômica IPEA, em 2002, os principais delitos praticados por adolescentes eram roubo (29,9%), latrocínio (5,5%), tráfico (7,5%) de drogas, furto (14,8%), lesão corporal (3,3%), homicídio (14,9%), estupro (3,3%) e 15,6% outros. Já em 2013, no levantamento nacional do SINASE, os números dos atos infracionais cometidos por adolescentes privados de liberdade mudaram: roubo (42,03%); tráfico (24,81%); homicídio (9,23%); furto (3,58%); latrocínio (2,03%); lesão corporal (0,99%), estupro (1,20 %), e outros 14. Como se pode evidenciar, o roubo ainda se apresenta como o ato infracional mais cometido no Brasil. No Rio de Janeiro, de acordo com o Plano Decenal Socioeducativo (2015), os atos infracionais estão assim distribuídos: tráfico (44%), roubo (19%), furto (10%), homicídio (2%), lesão corporal (1%) e outros 15. Comparando as informações apresentadas, ainda que se relativizem as possíveis diferenças metodológicas, é notória a alteração quanto à redução de atos graves e o aumento da participação dos adolescentes no tráfico. Uma das hipóteses que emerge na discussão é a possível necessidade deste adolescente em se inserir em uma sociedade capitalista visando a obtenção de bens de consumo. Os dados da pesquisa atual apontam na mesma direção. É possível notar que o ato infracional mais cometido pelos adolescentes é o roubo, com 26,4% seguido do tráfico com 23,6%. E ainda 46,3% informaram que não houve emprego de violência no cometimento do ato infracional. Desta forma, pode-se observar que os atos mais 14 Tentativa de homicídio (312%), tentativa de roubo (1,76%) e porte de arma de fogo (2,39%). Sem informação (5,09%). 15 Lei de armas (6%), receptação (2%), ameaça (1%), dano (1%), Mandado de Busca e Apreensão (7%) e sem informação (7%). 7

cometidos são os mesmos nas diferentes pesquisas, e que não necessariamente justificam a medida em meio fechado. Nota-se, que os dados contrariam as informações divulgadas pela mídia que aclama por redução da maioridade penal, afirmando que há um aumento da gravidade dos crimes. Ao contrário, os crimes contra a vida ainda são menores que os crimes contra o patrimônio. Conforme o previsto no ECA, os dados mostram que a gravidade dos atos deveria dirigir para a maior aplicação da medida de meio aberto e não de internação como vem sendo implementada corriqueiramente, não justificando a grande quantidade de adolescentes internados. Ao refletir sobre a realidade brasileira, observa-se que além de uso banal de medida de internação, entre os anos de 2010 a 2013, tal aplicação vem aumentando, contrariando o previsto no SINASE que prioriza as medidas em meio aberto em detrimento da privação de liberdade. Como se pode verificar nos dados abaixo, a medida de internação representa mais que o dobro da internação provisória e semiliberdade. As três medidas juntas somam mais de 20.000, adolescentes privados de liberdade. E ainda, em 3 anos nota-se o constante aumento dessas medidas, resultando em um número cada vez maior de adolescentes em espaços de privação de liberdade. Retirando desse adolescente a oportunidade de convívio social e familiar e contrariando os princípios e direitos previstos para esse seguimento populacional. 8

Gráfico 1: Adolescentes em cumprindo de medida em meio fechado (Brasil) Fonte: Levantamento SINASE, 2013. O atendimento ao público infanto-juvenil no Brasil, ao longo da sua história, passa por diversos momentos, principalmente esbarrando em questões de violência e vulnerabilidade 16. Crianças e adolescentes pobres brasileiros estiveram e ainda estão suscetíveis a todo tipo de adversidade, caracterizando-se a sua política por um histórico de desamparo social. Considerações Parciais Ao pensar nesses adolescentes, autores de atos infracionais submetido a medidas socioeducativas, é necessário compreender o universo que estão inseridos e suas realidades. Por isso, tal pesquisa se mostra importante, já que através das respostas dos adolescentes intenta compreender suas perspectivas não só enquanto adolescente que cumpre medida socioeducativa, mas também enquanto cidadão munido de direitos e deveres pertencente a uma sociedade que por muitas vezes o exclui. Para Costa (2006), nessa longa jornada dos direitos, a principal dificuldade do ECA, e da sua efetiva implementação, é o atendimento ao adolescente em conflito com a lei, em razão do cometimento de ato infracional. Costa acredita que a responsabilização e o atendimento adequado do adolescente autor de ato infracional, 16 Por vulnerabilidade entende-se o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores, sejam eles indivíduos ou grupos, e o acesso à estrutura de oportunidades sociais, econômicas, culturais que provêm do Estado, do mercado e da sociedade. Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidades sociais dos atores. (ABRAMOVAY et al., 2002) 9

com destaque na execução das medidas socioeducativas, permanece como o maior desafio para a construção do novo direito da infância e da juventude no Brasil. Para ele, existe uma onda social que vem provocando indignação e exigência de punição consistente, onde se fala em pena de morte e redução da maioridade penal. Ao alimentarem o delito juvenil, a mídia, normalmente, coloca como causa do aumento das ocorrências o fato de menores de 18 anos serem inimputáveis criminalmente. E é nesse exato momento que, parte da sociedade se manifesta a favor da redução da maioridade penal. Mediante o cenário legal atual, é notória a fragilidade da implementação destas políticas que, como visto anteriormente, rompe com paradigmas historicamente construídos e que se encontram enraizados e naturalizados no meio social, através de sentimentos de ódio e repúdio da sociedade em discutir sobre a questão da adolescência infratora de maneira positiva, tendo em vista que este seguimento populacional, apesar da condição transitória de privação de liberdade, é um sujeito em situação peculiar de desenvolvimento e que logo retornará ao convívio social (Oliveira, 2015). Cabe então aos estudiosos e pesquisadores da área quebrar paradigmas construídos em cima de afirmações falsas e facilmente confirmados em dados que apontam exatamente o contrário em relação à população em conflito com lei. Demonstrando que não há falta de rigor nas legislações atuais, mas sim axiomas equivocados da sociedade que insiste em se iludir com a mídia, virando massa de manobra das grandes redes de comunicação. O sentimento de insegurança, produzido pela ideia de um sistema socioeducativo deficiente, apenas acaba por criminalizar a pobreza. 10

Referências Bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (1988). São Paulo: Saraiva, 2005.. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8069. Congresso Federal, 1990. IBGE.. Lei Federal nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012 SINASE.. Plano Nacional de Atendimento Socioeducativo: Diretrizes e Eixos Operativos para o SINASE, Brasília, 2013. COSTA, A. C. G. da. Pedagogia da Presença. Belo Horizonte: Modus Faciendi, 2001.. Socioeducação: Estrutura e Funcionamento da Comunidade Educativa. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2006 FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Petrópolis, Ed. Vozes, 2014. Socioeducação: Legislação, Normativas e Diretrizes Nacionais e Internacionais - Departamento Geral de Ações Socioeducativas. V.2. Rio de Janeiro: Novo DEGASE, 2013. OLIVEIRA, Vivian de. Sistema Socioeducativo: Uma análise sobre as concepções dos Operadores do Sistema de Garantias de Direitos do Rio de Janeiro. Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal Fluminense. Niterói: 2015 VOLPI, Mário (org). O Adolescente e o Ato Infracional. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2002. 11