20 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná 1 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A AUTONOMIA DOS INDIVÍDUOS EM AMY GUTMANN AMY GUTMA

Documentos relacionados
Teoria da Democracia e Representação política

O MUNDO DAS MULHERES Alain Touraine

A Modernidade e o Direito

UM NOVO PARADIGMA Para compreender o mundo de hoje Autor: Alain Touraine

12/02/14. Tema: Participação Social Uma Aproximação Teórica e Conceitual. Objetivos da Aula. Conselhos Gestores

ESTÁGIO SUPERVISIONADO EM GESTÃO EDUCACIONAL: REFLEXÕES TEÓRICO PRÁTICAS

Escola de Formação Política Miguel Arraes

DECLARAÇÃO UNIVERSAL DA UNESCO SOBRE A DIVERSIDADE CULTURAL

Cooperação, cidadania e educação.

PROGRAMA DE CONTEÚDOS 2014

Direito Constitucional Comparado E - Folio B

CIDADANIA E POLÍTICA CIDADANIA

QUIZZES QUESTÕES DE VESTIBULAR HISTÓRIA

DIREITOS HUMANOS E DEMOCRACIA. Hannah Arendt

AS CONTRIBUIÇÕES DO CONSELHO ESCOLAR PARA UMA GESTÃO DEMOCRÁTICA

Proposta de Política de Comunicação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná

COLÉGIO ESTADUAL VISCONDE DE CAIRU PLANO DE CURSO Disciplina: Sociologia Série: 3ª Ano Letivo: 2009

ATORES SOCIAIS DA ESCOLA

A Revolução Federal. Republicanismo e pluralismo. (p.45-52) Apresentação de Victor Campos Silveira

Declaração de Princípios - Declaração de Princípios - Partido Socialista

Inovação substantiva na Administração Pública

SOCIOLOGIA 1ª SÉRIE 11-SOCIOLOGIA

ESTRATÉGIA PARA A DEMOCRATIZAÇÃO DAS OPORTUNIDADES EDUCACIONAIS. 1 José Leão M. Falcão Filho 2

Planejamento Estratégico

Estudos de Casos: Lições sobre Estratégia de Segurança Nacional para África

UEPB AUTONOMIA/FINANCIAMENTO, GESTÃO E PAPEL DO DESENVOLVIMENTO SOCIOECONÔMICO DA PARAÍBA O R G A N I Z A Ç Ã O A D U E P B

= MENSAGEM DE ANO NOVO =

ARTIGOS 1º AO 4º. A vigente Constituição Federal (de 5 de outubro de 1988) contém a

QUAL SOCIEDADE GLOBAL? UMA SOCIEDADE MAIS COLABORATIVA E INTEGRADA UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA, SUSTENTÁVEL E PACÍFICA

REDE NACIONAL PRIMEIRA INFÂNCIA CARTA DE PRINCÍPIOS. 10 de Dezembro 2013

Política de Comunicação da Universidade Tecnológica Federal do Paraná

Governo do Estado do Rio de Janeiro Secretaria de Estado de Educação. CURRÍCULO MÍNIMO 2013 EJA - Educação de Jovens e Adultos FILOSOFIA

Sociedade. O homem é, por natureza, um animal político Aristóteles.

ORGANIZANDO A POLÍTICA FILOSOFIA 8º ANO CAPÍTULO3

10/03/2014. Tema 7: A Dinâmica da Participação e a Avaliação Participativa de Planos. Onde encontrar no PLT. Objetivos da Aula

Tipos de Democracia. Sociologia Larissa Rocha 12 e Aula ao Vivo

GESTÃO ESCOLAR. Profª Sandra Santos Aula 1

Economia e Gestão do Setor Público. Profa Rachel

Democracia, cidadania e formação de professores

1ª CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE AMBIENTAL

Escola Municipal de Ensino Fundamental Madre Teresa Gestão Pedagógica e Espaços de Participação

DISCIPLINA DE CIÊNCIAS SOCIAIS (FILOSOFIA) OBJETIVOS: 1º Ano

DEMOCRACIA X DITADURA. Prof. Dieikson de Carvalho

FÓRUM CONSAD & CONSEPLAN. CANELA, RS 21 e 22 de novembro de 2013

Com as mudanças oriundas do desenvolvimento e da difusão das tecnologias

Ciência Política I. Soberania popular, legitimidade do poder, contratualização dos atos e validade dos atos em função da lei

FORMAS DE GESTÃO DAS ORGANIZAÇÕES DO TERCEIRO SETOR: GESTÃO PARTICIPATIVA E HETEROGESTÃO.

resultados concretos e justos, tanto individualmente como socialmente, ou seja, o desejo de uma ordem jurídica justa. Sob esta ótica está sendo

Civitas Revista de Ciências Sociais

AUT 559 METODOLOGIA DO PROCESSO PARTICIPATIVO DE PLANEJAMENTO

Kant e a Razão Crítica

MATERIAL DE DIVULGAÇÃO DA EDITORA MODERNA

1 Direito Constitucional Aula 01

NOTA TÉCNICA 02/2017

O poder e a política SOCIOLOGIA EM MOVIMENTO

8º Encontro Ibero-Americano de Cultura. Museu Nacional de Etnologia. 13 de Outubro Ângelo Oswaldo de Araújo Santos, Presidente do Ibermuseus,

EMENTAS DAS DISCIPLINAS CURSO DE GRADUAÇÃO DE PUBLICIDADE E PROPAGANGA

Filosofia e Política

Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes

MUNICÍPIO DE OURIQUE. Intervenção de Marcelo Guerreiro por ocasião da Tomada de Posse

A ESCOLA ATUAL, A GESTÃO DEMOCRÁTICA E O PROJETO POLÍTICO PEDAGÓGICO

INSTITUTO DE PESQUISA ENSINO E ESTUDOS DAS CULTURAS AMAZÔNICAS FACULDADE DE EDUCAÇÃO ACRIANA EUCLIDES DA CUNHA

A FILOSOFIA NA FORMAÇÃO DO EDUCADOR... PARA QUÊ? * Palavras-chave Filosofia da Educação ; Educação e emancipação ; Formação de professores

CARTA-COMPROMISSO FÓRUM INTERSETORIAL DE BARCARENA

Por ocasião das eleições municipais, o Ministério Fé e Política da RCCBRASIL preparou uma carta pra te ajudar ainda mais nessa escolha, confira:

ANEXO I - ORIENTAÇÃO PARA AS ESCOLAS SOBRE A IMPLANTAÇÃO/IMPLEMENTAÇÃO DOS GRÊMIOS ESTUDANTIS 2017

Política. Como o poder se realiza? Força (violência) Legitimação (consentimento) - carisma, tradição e racionalização.

CURSO: Controle Social e Gestão Participativa 06/3/13. O papel da legislação para o Controle Social e a Gestão Participativa.

O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, O MÍNIMO EXISTENCIAL E O ACESSO À JUSTIÇA 1

Organismos de Bacias: Representatividade e Poder de Decisão

Código de Conduta e/ou de Ética limita a criatividade?

CARGA HORÁRIA SEMANAL: 04 CARGA HORÁRIA SEMESTRAL: 60 CRÉDITO: 04 NOME DA DISCIPLINA: Ciência Política NOME DO CURSO: Ciências Econômicas.

A ética e a política em Kant e Rawls

GESTÃO PÚBLICA MODERNA ROBERTO PIMENTA

Discurso para a sessão solene sobre o manifesto em defesa do Supremo Tribunal Federal

A ESCOLA NA CIDADE QUE EDUCA. A Geografia Levada a Sério

CARTA DE LIBERDADE SINDICAL. Sindicato das/os Trabalhadoras/es do Serviço Público da Saúde do Estado do Paraná

INTRODUÇÃO O QUE É O CNP

PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO N o, DE 2017

DOCUMENTOS DE REFERÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO AMBIENTAL

Posicionamento: Centro de Referências em Educação Integral

É com a mente que pensamos: pensar é ter uma mente que funciona e o pensamento exprime, precisamente, o funcionamento total da mente.

I Jornadas do Património Santa Casa da Misericórdia de Lisboa

OBJETIVOS DO CADERNO

Apresentação da Proposta Político-Pedagógica do Curso e Grade de Disciplinas

Agrupamento de Escolas Dr. Vieira de Carvalho P L A N I F I C A Ç Ã O A N U A L D E E D U C A Ç Ã O P A R A A C I D A D A N I A

Teoria Realista das Relações Internacionais (I)

Professor Guilherme Paiva

Informação-Prova de Equivalência à Frequência

Gestão escolar democrática:

V ENCONTRO ESTADUAL DOS CONSELHOS DE EDUCAÇÃO DO PARÁ OUT /2016 O PAPEL DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE EDUCAÇÃO NOS SISTEMAS DE ENSINO

APROVADO EM ASSEMBLEIA A 9 DE MARÇO DE 2014 PARTIDO LIVRE

Origem na palavra Politéia, que se refere a tudo relacionado a Pólis grega e à vida em coletividade.

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DO BARREIRO

O QUE É SER POLÍTICO???

RELIGIÃO, EDUCAÇÃO E A INFLUÊNCIA DA LEI /03

Unidade 1 Introdução à Elaboração de Planos Estaduais de Cultura

DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS

A CONSTITUIÇÃO PORTUGUESA

EIXO V GESTÃO DEMOCRÁTICA, PARTICIPAÇÃO POPULAR E CONTROLE SOCIAL DOCUMENTO REFERÊNCIA

Transcrição:

A IDÉIA DE AUTONOMIA DO INDIVÍDUO EM AMY GUTMANN E A IDÉIA DO SUJEITO EM ALAIN TOURAINE 1 Dora Maria Farias Lopes Mestre em Sociologia Política. SUMÁRIO: Introdução; 1 A Democracia Deliberativa e a Autonomia dos Indivíduos em Amy Gutmann; 2 A Concepção do Sujeito em Alain Touraine; 3 Considerações sobre a Autonomia do Indivíduo em Gutmann e Touraine; À Guisa de Conclusão; Referências Bibliográficas. INTRODUÇÃO A proposta deste trabalho é examinar se a idéia de autonomia do indivíduo de GUTMANN e a idéia do sujeito de TOURAINE são concepções semelhantes. Ambos os autores expressam a autodeterminação dos indivíduos como condição necessária da democracia, articulando, num espaço público institucional, atores, sujeitos de sua história e condutores de sua vida pública e privada. O sujeito de TOURAINE é a expressão sociológica do cidadão que experimenta autonomia?... Sempre que, pelo contrário, uma coletividade afirma o seu direito à autodeterminação e a capacidade de tomar nas mãos os seus próprios assuntos, o que supõe a existência de opções possíveis, a democracia está presente e se reforça. Não se trata aqui apenas de respeitar e proteger a liberdade negativa. A democracia necessita de vontade ativa de libertação e da confiança na capacidade coletiva de ação. Pois não se pode separar liberdade e responsabilidade. Não há democracia se os governantes não prestam contas ao povo e se não se submetem simultaneamente à decisão dos eleitores e ao julgamento da lei. (TOURAINE, 1998, p. 293) A democracia deliberativa propõe a resposta de que valorizamos a vontade popular e a liberdade pessoal na medida em que o exercício de uma e outra reflitam ou exprimam a autonomia das pessoas, entendendo-se autonomia como autodeterminação, isto é, a disposição e a capacidade de determinar os rumos da própria vida privada ou pública por meio da deliberação, da reflexão informada, do julgamento e da persuasão que alia a retórica à razão. (GUTMANN, 1995, p. 20) 1 Artigo de conclusão da disciplina Teoria Política Contemporânea Mestrado da Universidade Federal de Santa Catarina 1998/2000.

20 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná 1 A DEMOCRACIA DELIBERATIVA E A AUTONOMIA DOS INDIVÍDUOS EM AMY GUTMANN AMY GUTMANN examina o ideal de democracia, tentando reconciliar as oposições entre a democracia populista e o liberalismo. A democracia populista tem seu centro na exigência de liberdades de expressão, de imprensa, de associação, no direito de não sofrer prisão arbitrária, no direito de formação de partidos e no direito ao voto, em eleições. Acresce-se a isso que o ideal da democracia populista é a valorização da vontade da maioria, expressa nas eleições. O liberalismo, por sua vez, tem como valor dominante, enquanto doutrina, a garantia das condições que são necessárias ao exercício da liberdade pessoal. O liberalismo é protetor da liberdade, aquela liberdade de não sofrer interferências na vida pessoal (liberdade negativa). A democracia deliberativa oferece uma proposta que une a importância da tomada de decisões pela maioria e a importância da liberdade pessoal. Conforme o parágrafo citado na introdução deste trabalho, o núcleo da democracia deliberativa está no valor primordial de encorajar a deliberação e expressão das pessoas sobre as várias dimensões de sua vida. A liberdade pessoal será potencializada na medida em que se constituir em autonomia para refletir, julgar e decidir, coletivamente, questões que sejam de interesse particular ou comum à comunidade. Nesse ponto GUTMANN acrescenta a importância da argumentação persuasiva, que é a forma mais defensável de poder político porque é a mais consistente com respeito a autonomia das pessoas, à capacidade que elas tem de autodeterminação (GUTMANN, 1995, p. 21). O desenvolvimento da autonomia requer instituições e práticas políticas que a garantam e encorajem os indivíduos à participação. Aqui a questão não se refere à autonomia individualista e sim a sua dimensão de natureza política, ou seja, exige que as autoridades que tomam decisões que influenciam e restringem as escolhas dos cidadãos prestem contas a nós (GUTMANN, 1995, p. 23). Para GUTMANN a chave da democracia deliberativa não está centrada na participação direta, mas na necessidade das autoridades (representantes) prestarem contas de seus atos (accountability). Se a autonomia tem como pressuposto a deliberação, a democracia desse tipo exige uma contínua prestação de contas daqueles que tomam decisões. Para isso, não se pode prescindir de instituições que garantam esse processo e possibilitem a participação e a discussão dos indivíduos sobre as questões públicas. Do contrário, os membros de uma sociedade não são politicamente livres, e a falta de liberdade política diminui sua liberdade pessoal de uma forma direta e palpável (GUTMANN, 1995, p. 30).

A Idéia de Autonomia do Indivíduo em Amy Gutmann e a Idéia do Sujeito em... 21 A democracia deliberativa, como teoria política e moral substantiva, não pressupõe que sempre haverá convergência de opiniões e soluções únicas para problemas políticos que se coloquem. O mais importante é o indivíduo ter espaço no processo de deliberação, que a autonomia não seja violada pelo fato de outros decidirem entre valores conflitantes, em nome da comunidade, sem a contrapartida da prestação de contas pública.... A democracia deliberativa procura maximizar o escopo da autodeterminação para indivíduos interdependentes e sustentar os processos políticos que ampliam a capacidade dos indivíduos de tomar decisões informadas sobre suas vidas. Autonomia qualifica o valor tanto da liberdade pessoal quanto do governo da maioria para torná-los compatíveis entre si, tendo essa acomodação o objetivo de capacitar as pessoas a governar suas vidas de forma deliberativa, e não de acordo com algum plano superior ou segundo o julgamento de um intelecto filosófico superior ou da autoridade política. (GUTMANN, 1995, p. 34) 2 A CONCEPÇÃO DO SUJEITO DE ALAIN TOURAINE TOURAINE, na apresentação de seu livro O que é a democracia, expressa a busca da rearticulação entre a racionalização e a subjetivação. A racionalização do mundo moderno está reduzindo os indivíduos a meros consumidores, tanto de produtos econômicos como políticos, e a subjetivação, como afirmação da identidade e da liberdade individual transforma-se em nacionalismos intolerantes e irracionais. Para recompor este mundo dividido, TOURAINE se apóia na idéia do sujeito: Tal reconstrução deve ser feita, primeiramente, no âmbito do ator social concreto, indivíduo ou grupo, pela combinação entre razão instrumental, indispensável em um mundo de técnicas e permutas, e a memória ou imaginação criadora, sem as quais não existem atores para produzirem a história, mas somente agentes produtores de uma ordem fechada sobre si mesma. Optei por definir o sujeito como o esforço de integração dessas duas faces da ação social. (TOURAINE, 1996, p. 11) A modernização não pode continuar a lutar contra o sujeito, que é parte intrínseca de si mesma, não pode reduzir o sujeito à própria razão. TOURAINE afirma que: O mundo moderno é, ao contrário, cada vez mais ocupado pela referência a um Sujeito que está libertado, isto é, que coloca como princípio do bem o controle que o indivíduo exerce sobre suas ações e sua situação e que lhe permite conceber e sentir seus comportamentos como componentes da sua história pessoal de vida, conceber a si mesmo como ator. O Sujeito é a vontade de um indivíduo de agir e de ser reconhecido como ator. (Touraine, 1994, p. 219)

22 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná É importante ressaltar que a efetivação do Sujeito não se realiza individualmente mas nas relações que desenvolve com outros indivíduos... o sujeito se constrói simultaneamente, pela luta contra os aparelhos e pelo respeito do outro como sujeito (TOURAINE, 1994, p.302). Nesse momento TOURAINE alinha Sujeito e participação social Não existe sujeito sem engajamento social, pois é nela que o indivíduo vai opor resistência à lógica dominadora dos sistemas, reafirmando seus particularismos e seu desejo de liberdade. Para TOURAINE é a democracia que deve fornecer as condições e garantias para a ação do sujeito e, por isso, não pode ser resumida a uma concepção de procedimentos institucionais, deve ajudar os indivíduos a serem sujeitos e conseguirem em si mesmos, através de suas práticas como de suas representações, a integração não só de sua racionalidade, isto é, sua capacidade de manipular técnicas e linguagem, mas também de sua identidade que se apóia em uma cultura e tradição, reinterpretada constantemente por eles em função das transformações do meio técnico (TOURAINE, 1996, p. 175). Portanto, a democracia é a organização que vai possibilitar a integração entre racionalidade e identidade e vai mediar o Estado e a sociedade civil. TOURAINE vê a necessidade de reconstrução da democracia baseada em um sistema político que se afasta do Estado e que caminha para reforçar as associações e os movimentos culturais, forçando o restabelecimento do processo de encaminhamento das reivindicações sociais ao campo político. A ação democrática se efetuará de baixo para cima, dos atores para o sistema político. A democracia se desloca para a base: da relação entre o estado e o sistema político ela se desloca para a relação do sistema político e dos atores sociais. Ela havia criado a cidadania acima de uma sociedade civil fragmentada e hierarquizada. Hoje, defende a diversidade dos atores, das culturas, das associações, das minorias e, de maneira mais central, a liberdade que repousa numa sociedade plural e mutável, no reconhecimento do outro como sujeito. (TOURAINE, 1999, p. 289) Retomando o parágrafo citado na introdução deste trabalho, a democracia hoje está presente, quando os indivíduos passam a ser sujeitos e quando a sociedade está assentada nos movimentos sociais, nas associações e na opinião pública. A democracia passa pela liberdade, indissociável da responsabilidade dos atores sociais, confiantes na capacidade de suas ações. 3 CONSIDERAÇÕES SOBRE A AUTONOMIA DO INDIVÍDUO EM GUTMANN E TOURAINE A princípio, é importante salientar que, embora os dois autores tratem da questão da autonomia dos indivíduos, GUTMANN expõem uma teoria política que ressalta a

A Idéia de Autonomia do Indivíduo em Amy Gutmann e a Idéia do Sujeito em... 23 importância do sistema: democracia deliberativa como modo de ser do processo político. Seu olhar tem como ponto de partida as transformações que são necessárias no campo político para que o sistema responda melhor às divergências que se apresentam no relacionamento da democracia populista, que dá importância primordial à tomada de decisões da maioria, e o liberalismo que tem como núcleo fundamental a maior liberdade possível dos cidadãos. TOURAINE, ao contrário, aborda a autonomia dos indivíduos com um olhar sociológico, buscando no Sujeito vontade de um indivíduo de agir e ser reconhecido como ator, a rearticulação, na sociedade, dos elementos que foram divididos pela modernidade, a racionalidade e a individualidade. É no ator, individual ou coletivo, que TOURAINE diz se operar a combinação entre o universal e o particular, e é no campo institucional que estão as condições indispensáveis para a ação do sujeito. Esta se dá nas relações que os indivíduos desenvolvem com outros sujeitos, na luta contra a lógica dominadora dos sistemas. Assim, para ambos os autores, a democracia deve fornecer as condições, procedimentos institucionais, que garantam a autonomia dos indivíduos, a autodeterminação para conduzir suas vidas públicas ou privadas. Entretanto, os autores também afirmam que a democracia não é somente um conjunto de garantias institucionais, não pode ser resumida a instrumentalidade, mas garantir efetivamente a autonomia dos cidadãos em GUTMANN e garantir a ação dos sujeitos em TOURAINE. TOURAINE afirma que a democracia é o regime político que permite aos atores sociais formar-se e agir livremente (TOURAINE, 1994, p. 345). Para tanto, três princípios devem estar presentes na ordem das instituições políticas: 1. O reconhecimento dos direitos fundamentais que limitam o poder do Estado liberdades negativas; 2. A representatividade social dos dirigentes e de sua política, que expressam a pluralidade dos interesses dos indivíduos; e 3. A consciência da cidadania desejo de pertença a uma sociedade política e sentir-se responsável pelo funcionamento das instituições. Princípios paralelos estão no pensamento de AMY GUTMANN quando faz a crítica da democracia populista e do liberalismo, para recompor, ao final, sob o termo democracia deliberativa, uma acomodação entre os valores essenciais das liberdades pessoais (princípio primeiro de TOURAINE) e a necessidade de representantes que efetivamente expressem o interesse dos atores sociais (princípio segundo de TOURAINE). Nesse ponto, GUTMANN ressalta que a garantia do reconhecimento público do status político dos cidadãos está na relação que mantém com os representantes, na prestação de contas (accountability), que é exigida daqueles que representam a comunidade.

24 Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná TOURAINE expressa essa idéia quando diz que não há democracia se os governantes não prestam contas ao povo e não se submetem simultaneamente à decisão dos eleitores e ao julgamento da lei (TOURAINE, 1998, p. 293). Com relação ao terceiro princípio, a cidadania, TOURAINE vai além daquele sentido restrito do direito de voz e voto, ampliando-o com a inclusão da consciência de pertença a uma coletividade política, como responsabilidade de cada um na organização da vida social. Quando GUTMANN identifica a autonomia com a autodeterminação, como exigência de práticas deliberativas, isto é, envolvimento nas decisões políticas, expressa a idéia de cidadania de TOURAINE, em que a participação é fundamental para a democracia. TOURAINE afirma que o reconhecimento da existência de conflitos de valores em uma sociedade é base para a existência de uma democracia e o funcionamento de seu processo político. É esse que deve salvaguardar a diversidade através da organização de um espaço de debates que possibilite deliberações políticas. Atualmente a democracia é o meio político de salvaguardar essa diversidade, fazer viver um conjunto de indivíduos e grupos cada vez mais diferentes uns dos outros, em uma sociedade que também deve funcionar como uma unidade (TOURAINE, 1996, p. 165). GUTMANN também se refere à existência de valores conflitantes em uma sociedade e que é impossível à democracia encontrar soluções indisputadas. O que é necessário é que as pessoas aprendam a respeitar uns aos outros como seres, não somente voluntariosos ou egoístas, mas também deliberantes (GUTMANN, 1995, p. 28). À GUISA DE CONCLUSÃO O Sujeito de TOURAINE, aquele que expressa vontade de agir e ser reconhecido como ator, se forma no seu envolvimento nos processos sociais, na relação com outros indivíduos contra aquela democracia que reduz o sistema político a um mercado político. O autor define democracia como uma determinada forma de organização que deve permitir a expressão do indivíduo ou grupo e o debate político institucionalmente aberto. Esse sujeito de TOURAINE pode ser identificado com o cidadão que experimenta autonomia, conforme conceito de AMY GUTMANN, na medida em que a autora, ao criticar a democracia norte-americana, que evita a reflexão dos cidadãos sobre questões públicas, propõe que se valorize a vontade popular e a liberdade pessoal, através do exercício da autonomia, da autodeterminação para refletir e decidir, coletivamente, questões de interesse comum à comunidade. Todavia, parece importante lembrar que TOURAINE, quando define democracia, estende seu conceito para além das instituições e modos de funcionamento do sistema, incluindo O respeito pelos projetos individuais e coletivos, que combinam a afirmação de uma liberdade pessoal com o direito de identificação com uma coletividade social,

A Idéia de Autonomia do Indivíduo em Amy Gutmann e a Idéia do Sujeito em... 25 nacional ou religiosa particular. A democracia não se apóia somente nas leis, mas sobretudo em uma cultura política (TOURAINE, 1994, p. 26). TOURAINE está preocupado com uma cultura política democrática que combine unidade e diversidade, que combine o cidadão e o respeito às diferenças individuais. Nesse sentido, o conceito de sujeito de TOURAINE se insere numa perspectiva teórica maior do que a abrangida pelo conceito correspondente de GUTMANN. Isso, entretanto, ultrapassa a ambição deste trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUTMANN, Amy. A desarmonia da democracia. In: Lua Nova, n. 36, 1995, p. 05-47. TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.. O que é a democracia. Petrópolis: Vozes, 1996.. Poderemos viver juntos? Iguais e diferentes. Petrópolis: Vozes, 1999.