RESENHA O CORPO DA ROUPA: A PESSOA TRANSGÊNERA ENTRE A TRANSGRESSÃO E A CONFORMIDADE COM AS NORMAS DE GÊNERO

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Transcrição:

RESENHA O CORPO DA ROUPA: A PESSOA TRANSGÊNERA ENTRE A TRANSGRESSÃO E A CONFORMIDADE COM AS NORMAS DE GÊNERO Morgana Zardo Von Mecheln * Samira de Moraes Maia Vigano ** LANZ, Letícia. O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão e a conformidade com as normas de gênero. Uma introdução aos estudos transgêneros. Curitiba: Transgente, 2015. 446 p. Nesta obra, a autora Letícia Lanz apresenta o resultado de sua pesquisa de mestrado em Sociologia (UFPR/2014), com imersão no campo dos Estudos Transgêneros, no contexto das vivências, demandas sociais e problemáticas acerca da busca de direitos das pessoas transgêneras. A partir da pesquisa, a autora desenvolve um livro (2015) fundamentado teoricamente a partir das questões de gênero, orientação sexual, sexo, sexualidade e identidades de gênero, inquietação da não conformidade ou da imposição das conformidades das normas de gênero. Além de todos esses enfoques, a obra busca desvelar a ocorrência de violências simbólicas que permeiam as pessoas de gêneros-divergentes. Desse modo, O corpo da roupa: a pessoa transgênera entre a transgressão * Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Educação na Universidade Federal de Santa Catarina, na linha de pesquisa Ensino e Formação de Educadores. Especialista em Gestão de Pessoas nas Organizações pela Universidade Federal de Santa Catarina. Tecnóloga em Gestão Comercial pelo SENAC. ** Doutoranda em Educação, pela UFSC - 2015/2019 e tutora presencial do curso de Especialização em Gênero e Diversidade na Escola - CFH/UFSC, vinculado ao Instituto de estudos de gênero (IEG). Pedagoga pela Universidade do Estado de Santa Catarina (2006), Mestra em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (2014) na Linha de Pesquisa Ensino e Formação de Educadores. 195

e a conformidade com as normas de gênero, apresenta como problemática central a não conformidade vivenciada pelas pessoas trans, por não se enquadrarem no estereótipo que sua roupa e seu corpo desejam, sentem ou se identificam. A autora, Letícia Lanz, tem 63 anos, é uma pessoa transgênera feminina, psicanalista, poeta, escritora e pensadora, mas também é marido, avô, pai e outras atribuições que são dadas para o sexo masculino e que ela desmistifica em seu livro. A mestra em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná UFPR e especialista em gênero e sexualidade pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro UERJ já está casada há 38 anos, tem três filhos e três netos. Além da obra resenhada, Lanz publicou diversos outros escritos entre os quais destacamos: Eu, Comigo, Aqui e Agora (8ª edição), Muito Prazer em Me Conhecer (6ª edição) e Os Segredos de Crescimento Pessoal Mais Bem Guardados do Mundo. Dentre suas várias atividades, ela participou da fundação da ABRAT Associação Brasileira de Transgêneros, tendo sido sua primeira presidenta, e fundou o Movimento Transgente 1, que congrega hoje uma parcela bastante representativa da população transgênera do país. Na obra base dessa escrita, Letícia Lanz nos contempla com uma imensidão de formas de quebrar com a naturalização que é dada aos corpos; escrevendo apoiada em Derrida, Buttler e Foucault, já na introdução do seu livro explica como se sente e se sentiu em relação aos padrões que lhes foram impostos; como os rótulos e os binarismos colocaram-na em um imenso conflito identitário. Seu objetivo é de contribuir para a desconstrução do discurso oficial sobre pessoas transgêneras, mediante um exame crítico do seu processo de exclusão e estigmatização pela sociedade cisgênera em função da sua transgressão de gênero (LANZ, 2015, p. 14). A obra apresenta temas fundamentais para a compreensão das questões de gênero, como corpo, roupa, gênero, transgressão de gênero, identidades gênero-divergentes, família, escola, armário, transição, passabilidade, orientação sexual, sexo, entre outros. Podemos dizer que esse livro é o primeiro manual sobre os Estudos Transgêneros que ressalta uma visão geral do que são identidades gênero-divergentes 1 Para saber mais sobre o Movimento Transgente busquem: Facebook Movimento Transgente. 196

ou transgêneras (travestis, crossdressers, transexuais, andróginos, dragqueens, transformistas etc.). E, ainda, merece que destaquemos que, além de trazer à tona um tema polêmico e de pouco enfoque no Brasil, o livro traz também, ao final, um Dicionário transgênero. Muito mais que apenas contribuir para os estudos acadêmicos da temática, os Estudos Transgêneros abordam, dentre outros, temas como transgressão e conformidade de gênero; sexo, gênero e orientação sexual; assumir e transicionar; roupa como veículo de expressão de gênero; subjetivação; corpo e corporalidade; travestismo; passabilidade e visibilidade social das pessoas gênero divergente (LANZ, 2015, p. 36). A visão geral que Letícia Lanz nos apresenta nas 446 páginas de seu livro, que se dividiu como um menu, apresenta-se da seguinte forma: Entrada: Introdução; Prólogo: Viajando ao Território Transgênero; Nem Homem, Nem Mulher, Nem Outro Gênero Qualquer. Pratos Principais: Objeto e Campo dos Estudos Transgêneros; Sexo, Gênero e Orientação Sexual; Discussão Crítica sobre Sexo, Gênero e Orientação Sexual; Transgênero e Cisgênero; Um Breve Histórico de Transgênero; Desvio Social de Conduta; A Transgressão como Matriz da Transgeneridade. Especialidades da Casa: A Formação das Identidades Transgêneras; Corpo; Roupa; Identidade de Gênero e Sexualidade; Status Socioeconômico; Família e Socialização; Escola; Armário e Transição; Passabilidade; Visibilidade Social da Pessoa Transgênera. Complementos: Dialogando com os Estudos Existentes no Brasil; Estudos sobre a Identidade Travesti; Estudos sobre a Identidade Transexual; Estudos sobre a Identidade Crossdresser; Identidades? Para quê identidades? Sobremesas: (in) Conclusões; Epílogo: O Corpo da Roupa; Dicionário Transgênero; Bibliografia Geral; Notas. O livro ressalta que, para a autora, que transgênero é um termo que se pode chamar de guarda-chuva, pois busca aglutinar debaixo de si todas essas identidades gênero-divergentes; isso quer dizer que abarca todas as identidades que foram de encontro com o dispositivo binário 197

de gênero. A pessoa transgênera vive um conflito entre as tensões das normas de gênero e a busca do reconhecimento enquanto sujeito de direito, que não tem nenhuma patologia, mas que não se enquadra no sexo/gênero em que nasceu. Em geral, as pessoas de gêneros divergentes são reconhecidas como gays, lésbicas, viados ou sapatonas, e nem a própria pessoa que está nesse trânsito consegue compreender-se enquanto pessoa. Em todos os períodos da humanidade sempre existiram pessoas com identidades gênero-divergentes, porém, na maior parte dos casos, sempre na penumbra (recentemente, na Índia, as hijras foram reconhecidas oficialmente como uma terceira categoria de gênero). Hoje, há visibilidade conquistada com os estudos de gênero desenvolvidos pelo movimento feminista. No entanto, mesmo com a atual visibilidade na mídia e nos estudos acadêmicos, na prática pouca coisa tem mudado; as pessoas transgêneras continuam oprimidas e com os direitos violados. Lanz destaca que os objetivos do livro partem de sua ordem pessoal, ou seja, compreender a humanidade que existe embaixo de sua própria pele e, também, colaborar para a afirmação da disciplina de Estudos Transgêneros no Brasil. O relato da autora sobre seu próprio processo de busca pela expressão social de sua identidade de gênero, por cinco décadas resignadas, também compõe o início da obra, com destaque às suas memórias de infância, quando era repelida e censurada pela aproximação aos estereótipos do universo feminino. Uma das primeiras definições sobre termo pessoa transgênera aparece na página 19, quando a autora o caracteriza explicitamente como a pessoa que transgride as normas do dispositivo homem/mulher ou masculino/feminino, o dispositivo binário de gênero. Na página 70 Lanz aprimora o conceito quando escreve que transgênero não é uma categoria identitária de gênero, mas a condição sociopolítica-cultural do indivíduo que transgride o dispositivo binário de gênero, ou seja, que se desvia das normas oficiais de conduta de gênero homem/mulher ou masculino/feminino. Por transgressão entende-se o ato de romper, cruzar, transpor, ir além dos limites estabelecidos por uma norma, seja no campo moral, religioso, cultural, político etc., qualquer violação das normas de conduta. Logo, a normalidade é essencialmente conformida- 198

de à obediência às normas, costumes e leis; ela reside nas convenções culturalmente aprovadas. Nesse sentido e nessa atual conjuntura social e cultural binária, ou a pessoa é cisgênera ou transgênera. Letícia nos esclarece que quando falamos de transgênero e cisgênero falamos necessariamente de gênero, conceito do qual essas duas palavras se originam e ao qual estão inextricavelmente associadas. A palavra transgênero (do latim trans = do lado oposto, além) conceitua e descreve o comportamento da pessoa gênero-divergente, isto é, aquela cuja identidade e/ou expressão de gênero apresenta algum tipo de divergência, conflito ou não conformidade com as normas socialmente aceitas e sancionadas para a categoria de gênero em que foi classificada ao nascer (LANZ, 2015, p.69). E cisgênero, provém do latim cis significa do mesmo lado, ou seja, alguém que está adequado ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento e que sua conduta psicossocial está inteiramente de acordo com o que a sociedade espera das pessoas do seu sexo biológico. Nas páginas 73 e 74 da obra, Lanz elenca os diversos privilégios das pessoas cisgêneras, questões corriqueiras que são dificultadas ou negadas às pessoas transgêneras, e que aqui destacamos alguns: a identidade de gênero pode ser facilmente deduzida a partir da aparência física; nunca ser barrado em lugar nenhum por causa do gênero; não precisar evitar banheiros públicos, nem se preocupar com os banheiros públicos separados por sexo; não ser indagado sobre os genitais; feminilidade/ masculinidade nunca posta em dúvida em função do corpo; liberdade para usar roupas do próprio gênero; encontrar facilmente parceiros que aceitem a identidade de gênero. Enfatizamos que uma coisa é a questão de identidade, outra coisa é a orientação sexual. Alguém pode ser trans, mas heterossexual, homossexual ou bissexual. Independente de como nos relacionamos com o nosso corpo, estamos sujeitos a sentir atração física por qualquer outra pessoa. Lanz traz isso como uma confusão, sendo que o fenômeno político e sociológico da transgeneridade continua repleto de imensos vazios conceituais e os que existem o relacionam ao território distinto da orientação sexual. 199

A compreensão do que é ser homem ou mulher é construída a partir do nosso nascimento, pelo órgão genital que carregamos; se nascemos com vagina, somos consideradas do sexo feminino, se nascemos com pênis, somos considerados do sexo masculino, e se nascemos com os dois órgãos genitais somos intersexo. Nesse viés, o sexo é entendido como biológico e natural - condicionante de atribuições de papéis que partem de nosso nascimento. E o gênero é um condicionante que se agrega a fatores sociais, não que o sexo não seja também um constructo social. Desse modo, de acordo com a nossa cultura, o que nos faz homens ou mulheres não é o fato de sentirmos atração pelo sexo oposto ao nosso e, sim, uma série de comportamentos que variam de cultura para cultura. Em outras palavras, nossos órgãos genitais não definem nossa personalidade, tampouco nossas preferências sexuais. A autora ilustra de modo bastante didático as diferenças entre sexo, gênero e orientação sexual, quais sejam: entre as pernas há o sexo, de natureza biológica (genital, fisiológico, anatômico, genético), tendo como representação física o pênis e a vagina; nas categorias há macho, fêmea, intersexuado, nulo; entre as orelhas se estabelece o gênero, de natureza jurídica (social, político, histórico, cultural, religioso), tendo como representação física o nome civil, a certidão de nascimento, vestuário, atitudes; as categorias são homem e mulher, que se dividem em cisgênero e transgênero; entre os braços encontra-se a orientação sexual, de natureza erótico/afetivo (físico, emocional), nas categorias homossexual, heterossexual, bissexual, assexual, pansexual. Até o fim da Segunda Guerra Mundial imperava a distinção inequívoca de gênero, homens e mulheres com estereótipos próprios e únicos, com a superioridade do macho frente à natureza fragilizada da fêmea. Hoje, tudo é mais nebuloso e as diferenças entre homem e mulher não são tão evidentes, desde que as lutas do Movimento Feminista conquistaram visibilidade e as questões de gênero passaram a ser estudadas e difundidas, tanto na academia quando na sociedade de modo geral. Para Lanz, o Movimento e os Estudos Transgêneros já nasceram como grandes beneficiários do Feminismo, que tinha estratégia bem sucedida para abordar politicamente a questão das desigualdades entre homens e mulheres, a qual também se aplica integralmente na compreensão e 200

no combate das desigualdades entre pessoas transgêneras e cisgêneras. O feminismo é dividido em momentos chamados ondas, com relação a sexo e gênero: primeira onda Abordagem Essencialista tanto sexo quanto gênero têm origem biológica; as diferenças entre homens e mulheres são resultantes de fatores naturais, negando a interação social como fator de formação da identidade. Segunda onda Abordagem Construtivista separação entre gênero como social e sexo como biológico, gênero como uma dimensão social, política e histórica, ou seja, não natural. No entanto, nessa abordagem, a pessoa deve aceitar integralmente sua reinserção no gênero que foi enquadrada ao nascer. Terceira onda Abordagem Pós-Estruturalista defende que sexo e gênero não têm qualquer base biológica, sendo conceitos construídos política e culturalmente nos discursos normativos, sustentando o dispositivo binário de gênero. Desse modo, sexo, corpo, biologia não existem fora dos significados culturais, porém, acabou aceitando-se a ideia de que deve haver uma base biológica para que as diferenças de gênero apareçam. Tanto há essa concepção da necessidade de uma base biológica que sustente o gênero, que muitas pessoas buscam desesperadamente, por meio da cirurgia de transgenitalização, a adequação ao dispositivo binário de gênero, mantendo o status quo da sociedade, com a ordem feminina ou masculina vigente. É necessário enfatizar que a transgressão desaparece quando da não mais vigência do dispositivo binário de gênero. As pessoas trans são classificadas por possuírem um corpo identificado como corpo errado, como se existisse um corpo certo, e esse corpo seria o de uma cis. E um dos dados mais relevantes para percebermos o quanto há de violência em nossa sociedade tem relação com as altas taxas de suicídio, mutilação e assassinatos. O suicídio ocorre pela falta de aceitação e apoio da família, escola e demais instituições sociais, e até mesmo pela própria não aceitação do seu corpo, e se ver como uma aberração, algo que está fora das normas padrões. O que para uma pessoa cisgênera pode ser um simples ato de alugar um imóvel, para uma pessoa transgênera esses contratos de empréstimo ou locação de imóveis são negados com muita frequência por conta da sua identidade 201

de gênero, e também o mercado de trabalho associa sua identidade à marginalidade, ao crime e, portanto, é difícil encontrar um emprego. A partir da página 135 do livro, Letícia Lanz descreve e examina os nove principais fatores pessoais e sócio-político-culturais na configuração do surgimento da pessoa transgênera, que seguem: 1. Corpo: não existe a priori, vai ser formado com o tempo, ajustando o organismo biológico aos modelos socioculturais de corpos masculinos e corpos femininos, que são estabelecidos em épocas e lugares da sociedade. Cada pessoa acaba por se projetar nos modelos culturais de identidade oferecidos pela sociedade da época, criando a noção da pré-existência de masculino e feminino. No entanto, essa identidade de gênero não é de maneira nenhuma dependente do corpo físico, mas da repetição dos atos atribuídos às identidades sociais. 2. Roupa: resultado de inúmeros fatores e condicionantes sociopolíticos, econômicos e culturais, desenvolvidos ao longo da história da humanidade. São os códigos de vestuário que transformam o corpo em um objeto perfeitamente reconhecível de uma cultura, comunicando simbolicamente a nossa própria identidade de gênero. Porém, não é a pessoa que usa a roupa, mas é a roupa que usa a pessoa, cobrindo-a de códigos e normas impostas socialmente. Daí parte muito da violência, intolerância e discriminação àqueles que se travestem, ou seja, aqueles que se vestem com roupas designadas ao sexo oposto, pois isso é entendido como um confronto, uma ação subversiva da ordem. 3. Identidade de Gênero e Sexualidade: identificação com os estereótipos relativos ao gênero; nesse sentido, a pessoa transgênera identifica-se com estereótipos, símbolos e códigos de conduta relativos ao sexo oposto àquele designado a ela no nascimento. O processo que desenvolve a identidade de gênero é inteiramente individual e subjetivo, mas requer as trocas sociais com o outro. 4. Status Socioeconômico: transgressão de gênero está em toda a pirâmide social, em ambos os sexos, todos os tipos de orienta- 202

ção sexual. No entanto, geralmente a transição gera graves perdas financeiras, já que muitas pessoas perdem o emprego, são excluídas do círculo social, são expulsas de casa, dentre outras pressões sociais que expressam o repúdio à transgressão de gênero e impedem que a pessoa até mesmo possa sobreviver. 5. Família e Socialização: a família, na figura dos pais, é um dos fatores decisivos na formação da pessoa, influindo na repressão da identidade de gênero dos filhos, caso esses não correspondam aos padrões aceitos socialmente. A saída comum para a maioria das pessoas transgêneras é acabar reprimindo as percepções que têm de si mesmas, sufocando a própria identidade. 6. Escola: junto com a família e a Igreja, agrega as instituições mais coercitivas da sociedade. A escola, em sua maioria, desconhece as questões transgêneras e, quando as conhece, apresenta o cruel descaso com as especificidades dos alunos e professores transgêneros que compõem o sistema de ensino. Não é reconhecida nem legitimada a identidade de gênero expressa pela pessoa; há proibição do uso de roupa compatível com a identidade de gênero assumida, é dificultado ou proibido o uso do nome social, dentre outros problemas enfrentados. 7. Armário e Transição: armário é sinônimo de exclusão, opressão, intolerância, medo e, ao mesmo tempo, classificado como um equipamento de proteção individual, que resguarda a pessoa da violência social. Evidentemente é apenas uma metáfora que designa a adesão a um estilo de vida baseado no segredo de sua identidade transgênera. Do ponto de vista principalmente psicológico, sair do armário é uma ação libertadora, de empoderamento da pessoa diante do mundo, afirmando sua identidade. 8. Passabilidade: ser reconhecido pela sociedade como alguém em conformidade com as normas de gênero, sendo assim, quanto mais passável a pessoa é, mais aceita pela sociedade. A ideia implícita é que a expressão pública da identidade de gênero precisa ser permanentemente ratificada pelo olhar do outro, que é quem declara a conformidade ou a transgressão de gênero. Por isso, pela tentativa de enquadrar-se, a pessoa 203

transgênera acaba por servir obsessivamente aos estereótipos binários de gênero. 9. Visibilidade Social da Pessoa Transgênera: há dificuldade em definir o tamanho da população transgênera, sendo estimada entre 2% a 5% da população em geral. A visibilidade é contraditória, pois ao mesmo tempo em que se deseja o reconhecimento, há a implicação de uma exposição direta ao olhar do outro. Somente por meio do combate ao binarismo de gênero e aos estereótipos de feminino e masculino, será possível garantir maior visibilidade social para as pessoas transgêneras. Letícia Lanz também destaca autores que fundamentam os Estudos Transgêneros e que servem de base para trabalhos acadêmicos e científicos na área, além da apropriação histórica dos termos e conceitos, dentre eles: Estudos sobre a Identidade Travesti: Hélio Silva, Marcos Benedetti, Don Kulick, Miriam Adelman, Larissa Pelúcio, Tiago Duque. Estudos sobre a Identidade Transexual: Harry Benjamin, John Money, Robert Stoller, J. Michael Bailey, Jorge Leite Junior, Fátima Lima, Miriam Ventura. Estudos sobre a Identidade Crossdresser: Eliane Kogut, Anna Paula Vencato, Marcos Roberto Vieira Garcia. Todos esses autores e suas pesquisas fomentam a área dos Estudos Transgêneros como campo de pesquisa, afirmando as pessoas transgêneras como sujeitos de diretos. Aliás, a luta do Movimento Transgênero e da autora Letícia Lanz é por direitos e jamais por supremacia dessa ou daquela identidade. A sociedade brasileira necessita de educação e esclarecimento a respeito da condição transgênera e esse debate passa pela visibilidade dos estudos acadêmicos e pela validação de direitos, os quais são pleiteados e reivindicados: direito a um nome civil; direito ao acolhimento, respeito e proteção pela família; direito ao respeito e proteção no ambiente escolar; direito ao trabalho, emprego e ao exercício pleno de uma profissão e/ou função; abolição total e criminalização de práticas pseudoterapêuticas; educação e apoio às famílias de pessoas transgêneras; preparação de profissionais das diversas áreas de especialidade; monitoramento permanente da mídia; campanhas sistemáticas de informação ao grande público; direito à proteção do aparelho do 204

Estado e leis de proteção específicas de combate à transfobia. Letícia Lanz, encerrando sua obra, enfatiza que não há corpos errados, mas sim, sociedades que veem identidades como erradas. São essas sociedades que precisam ser modificadas ou erradicadas, e não os corpos (LANZ, 2015). 205