CENAS URBANAS E FOTOGRAFIAS: JACOBINA ENTRE AS DÉCADAS DE 1960 E 1980.



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Transcrição:

CENAS URBANAS E FOTOGRAFIAS: JACOBINA ENTRE AS DÉCADAS DE 1960 E 1980. Valter Gomes Santos de Oliveira valveira@bol.com.br História - UNEB Campus IV INTRODUÇÃO O ato de olhar de forma desmesurada para uma pessoa pode constituir um voyeurismo. Principalmente quando ela não sabe que está sendo observada. O voyeur é aquele que fita cenas íntimas de pessoas e por vezes registra tais cenas. Esse tipo de personagem é comum em cidades grandes. O cinema já abordou diversamente tais indivíduos. Em Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, um fotógrafo fica observando as cenas dos vizinhos da janela do seu apartamento. O voyeurismo também pode ser identificado nas cidades pequenas, principalmente entre as pessoas que ficam nas janelas ou nas portas de suas casas observando o passar dos indivíduos. E quando esse ato de observar é destinado a uma cidade? Ou seja, quando as atenções do observador são voltadas para a intimidade de uma urbe? Diversos fotógrafos reservaram seus olhares para as cidades onde viviam. Como verdadeiros voyeurs, eles perscrutaram canto a canto do cenário urbano e perenizaram tais cenas em registros fotográficos. Embora os casos sejam diferentes (a do voyeur e a do fotógrafo), eles guardam a mesma natureza do olhar. O olhar observador, comprometido e seduzido com o que vê. O propósito deste artigo é o de apresentar algumas cenas da cidade de Jacobina, entre as décadas de 1960 e 1980, observadas e registradas através de fotografias dos voyeurs urbanos Amado Nunes, Lindenício Ribeiro e Osmar Micucci. Nesse sentido, esta atividade consiste num pequeno exercício de leitura fotográfica, tendo como referências às cenas abordadas pelos fotógrafos e sua relação com o cenário urbano da época em questão. Estas fotografias fazem parte do acervo do futuro banco de imagens da cidade que será montado como parte do projeto, A memória fotográfica de Jacobina: investigações sobre os fotógrafos e suas obras na cidade, que ora começamos a desenvolver como atividade de pesquisa. FOTOGRAFIA E INFORMAÇÃO A fotografia carrega consigo um alto poder de informação. Podemos dizer que ela nos garante a certeza de que o fruto do seu conteúdo advém de uma realidade que ela registrou. O que não podemos assegurar é que tal realidade seja da forma como ela nos informa. Ela, por si,

não representa a realidade, mas nos indica aspectos dela. Como diz Roland Barthes, uma determinada foto não se distingue nunca do seu referente (daquilo que representa), ou, pelo menos, não se distingue dele imediatamente ou para toda a gente [...] Por natureza, a Fotografia [...] tem qualquer coisa de tautológico: nela, um cachimbo é sempre um cachimbo, infalivelmente.(barthes, 1980, p.18). No entanto, a informação contida na fotografia - numa atividade investigativa - necessita da interpretação dos seus indícios. Sem ela perdemos muito do seu conteúdo. Mas é preciso, em primeira instância, ter em vista que a imagem fotográfica já traduz uma primeira interpretação, a do fotógrafo, que é o produtor da informação. Depois, observar que nem sempre o fotógrafo tem total domínio sobre o resultado da sua foto. É de se convir que por mais que ele possa ter controle sobre diversos aspectos técnicos da sua produção, existem muitos outros que passam despercebidos no momento do clic, além do que, existe também o poder do acaso, manifestado em detalhes mínimos que fogem do controle consciente do autor 1. Seja o modelo do botão da camisa, a piscadela de olho no momento da foto em grupo, o olhar ligeiramente melancólico de outro ou o pequeno detalhe perdido no emaranhado de informações de uma fotografia de cena de rua da cidade. Detalhes insignificantes, que muitas vezes não constituem os temas principais das fotografias, mas que representam importantes pistas na tarefa investigativa. São exatamente a partir destes detalhes, ou podemos chamar de indícios, utilizando a terminologia empregada por Carlo Guinzburg no seu método de interpretação, que poderemos apreender aspectos elucidativos acerca de uma época, local ou até características de determinado fotógrafo. Segundo ele, pistas talvez infinitesimais permitem captar uma realidade mais profunda, de outra forma inatingível. (GUINZBURG, 1989, p.150). Será, portanto desta forma, atentando para os aspectos centrais dos temas das fotografias, mas percebendo também os detalhes das mesmas, que desenvolveremos essa atividade interpretativa das cenas urbanas da Jacobina, representadas pelas imagens dos fotógrafos Amado Nunes, Lindenício Ribeiro e Osmar Micucci, entre as décadas de 1960 e 1980. A CIDADE ENTRE MONUMENTO E DOCUMENTO A historia da fotografia por vezes se confunde com as histórias das cidades. A partir do século XIX momento em que surge o novo invento - vários fotógrafos destinaram suas atenções para as cidades onde viviam e imortalizam em suas imagens diversos detalhes da vida urbana ou de monumentos arquitetônicos, como podemos citar os exemplos de Militão Augusto 1 Walter Benjamin nos fala do que ele chama de inconsciente ótico ao qual a fotografia revela: A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. (BENJAMIN, 1985, p.94).

de Azevedo, em São Paulo, ou Marc Ferrez, registrando cenas em diversas cidades do Brasil, ambos no século XIX. Em muitos aspectos, eram eles contratados pelos administradores municipais para registrar obras públicas ou as transformações por que passavam as cidades, como fez o prefeito Pereira Passos ao contratar o fotógrafo Augusto Malta na época da grande reforma urbana empreendida por ele na cidade do Rio de Janeiro do início do século XX. Ao perenizar as cidades através dos seus documentos visuais, os fotógrafos vêem-nas como monumentos. Como é próprio da natureza do monumento - desempenhar uma função de memória ele expressa, conforme nos diz Le Goff, um poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, no qual a sociedade pretende impor ao futuro uma imagem de si 2 (LE GOFF, 1996, p.536). Nesse sentido, ao monumentalizar a cidade na fotografia, o fotógrafo acaba também, voluntária ou involuntariamente, perpassando uma imagem sua da cidade. Entre as décadas de 1960 e 1980 a cidade de Jacobina viveu importantes transformações no seu cenário urbano. Obras públicas e privadas foram construídas e outras mais destruídas, ruas surgiram ou foram pavimentadas, foi construída a BR 324, ligando a cidade à capital e aumentando o fluxo de automóveis na cidade, enfim, a cidade sofre algumas mudanças que provocam uma alteração na sua vida urbana. Em diversos desses momentos, os fotógrafos, Amado Nunes, Lindenício Ribeiro e Osmar Micucci, que lá estavam como exímios espectadores da cidade, registraram em suas imagens detalhes desse cenário em mutação. Cenas urbanas e fotografias Numa narrativa visual feita por Amado Nunes, na década de 1960, visualizamos a via leste de entrada e saída da cidade, denunciando a presença da ação do tempo e dos homens sobre ela. As cenas de mudanças são percebidas com a construção da BR 324, ligando a cidade à capital do estado. Com a construção do asfalto durante o período da administração de Ângelo Brandão (1962-1966) - a cidade perde mais tarde a sua estrada de ferro. Hoje ela existe apenas na memória dos antigos habitantes ou em documentos como estes. Pela estrutura da narrativa do autor, ela nos indica, quem sabe, uma preocupação em reter essa memória numa tentativa de nos fazer pensar em torno dessas mudanças. Observemos como o autor - numa atitude de voyeur - fez várias fotos do mesmo ângulo em momentos diferenciados. Nas primeiras imagens, numa visão quase romântica, focaliza a presença do trem de ferro saindo da cidade e cortando a paisagem serrana, enquanto algumas pessoas o aguardam próximo aos trilhos, e nas últimas, já 2 Os materiais da memória coletiva são construções humanas. Le Goff diz que a memória coletiva é pautada em dois tipos de materiais: os documentos e os monumentos. Segundo ele, o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos (...) historiadores. Assim sendo, convém dizer que nessa tarefa de construção da memória coletiva da cidade a atividade dos fotógrafos e seus registros visuais ocupam um lugar relevante.

sem o trem, o autor nos mostra o asfalto de concreto - sinal dos novos tempos - e duas pessoas vestidas elegantemente estacionadas na beira da estrada posando junto a um fusca, símbolo da era do desenvolvimentismo da indústria automobilística empreendida por JK no final dos anos cinqüenta. Notemos a presença de um adulto e uma criança caminhando no sentido contrário ao lado da já esquecida estrada de ferro (imagens 1, 2, 3 e 4). Imagens 1, 2, 3 e 4 - Da estrada de ferro à rodovia: alterações no sistema de transporte (Fotos: Amado Nunes) Para o professor Ângelo Fonseca, Sem dúvida nenhuma, a década de 70 foi frustrante para a região de Jacobina (FONSECA, 1995, p. 148). Segundo estudo desenvolvido por ele, nessa época a cidade sofre um processo de estagnação econômica, provocado, em grande parte pela construção da BR 407, ligando a região de Juazeiro e Petrolina ao centro do país, e com a BA 052, a estrada do feijão, ligando Irecê à capital do Estado. Esses fatos ocasionaram um isolamento do município de Jacobina, uma vez que a cidade não funcionou como via de passagem para o centro do país através da BR 324 como era o projeto inicial - terminando sua obra na cidade. Nesse sentido, o que era para ser uma estrada que ligaria a região de Jacobina aos

outros estados passou a ser apenas para as cidades na direção de Salvador. Em duas fotografias dessa época - uma de Lindenício Ribeiro e outra de Amado Nunes - visualizamos cenas que continuam a ser constantes até os dias atuais desde a construção dessa rodovia. Com as novas estradas, ligando Jacobina tanto à capital do Estado como aos outros municípios, as duas vias de entrada e saída da cidade passaram a ser pontos de parada de diversos automóveis que transportavam pessoas para as cidades vizinhas e distritos do município. A cidade funcionava como principal centro de escoamento dos produtos agropecuários das pequenas localidades circunvizinhas, como também centro de transações bancárias, serviços diversos e de comércio. Na primeira foto, diferentes modelos de automóveis estão estacionados ou prontos para viagem, com seus passageiros nas carrocerias ou nos bancos internos (imagem 5). Na segunda, vê-se no primeiro plano, carros parados e algumas pessoas próximas a um posto de combustíveis. Esta é a Praça Dois de Julho, local de embarque e desembarque das pessoas dos municípios e distritos do lado oeste que freqüentam a cidade. No segundo plano observa-se a praça e o Hospital Antônio Teixeira Sobrinho, o mais antigo dos dois existentes na cidade (imagem 6). Imagens 5 e 6 - As duas vias de entrada e saída da cidade funcionavam como ponto de movimentação de pessoas e automóveis. (Fotos: Lindenício Ribeiro e Amado Nunes). No centro da cidade, com a desativação total do transporte ferroviário, em 1976, ocorre uma mudança de hábito. Os seus habitantes já não escutavam mais o barulho do apito do trem, anunciando a chegada com seus passageiros e cargas. Ainda assim, por mais alguns anos, a velha estação e os trilhos ainda lembravam à população, da mais antiga a mais nova, as marcas de outros tempos. Na rua onde se localizava a estação do trem funcionava também como ponto de armazéns de cereais. Na foto de Lindenício Ribeiro, vê-se uma velha estação com suas vidraças quebradas, denotando um aspecto de abandono. Notamos a presença de pessoas que transitam, outras duas conversando em frente a uma porta, e, ao lado, três pessoas: um garoto, vestido de branco, parece observar o fotógrafo no momento do clic ; uma mulher logo atrás e ao fundo,

um velho sentado com uma bengala em meio ao tom sombrio que domina essa parte da fotografia, como se fosse uma referência ao abandono do brilho dos velhos tempos (imagem 7). Os espaços coletivos do lazer esportivo em Jacobina, no final da década de setenta, na administração de Flávio Antônio de Mesquita Marques (1977-1983), ficaram restritos a dois clubes privados: O Leader Esporte Clube e Associação Atlética Banco do Brasil. O antigo Estádio Municipal José Rocha, iniciado na administração de José Prado Alves (1966-1972) teve seus portões fechados, ficando a cidade sem esse espaço de lazer por quase uma década. Lindenício Ribeiro registrou uma cena dessa época de desamparo do esporte futebolístico na cidade. Percebamos como a fotografia transmite uma idéia de abandono. O tema central é o Estádio, isolado numa rua deserta e seca. Ele se encontra com seus portões fechados. As hastes onde se erguem as bandeiras estão vazias. Não existe uma viva alma ali presente. Notemos também no primeiro plano da imagem os velhos trilhos de trem abandonados. No geral, o que predomina nesta fotografia é o tom de solidão (imagem 8). Imagens 7 e 8 Cenas de abandono: A velha estação de trem e o Estádio Municipal José Rocha. (Fotos: Lindenício Ribeiro) Dentre os temas abordados pelos fotógrafos em Jacobina, as vistas panorâmicas são as que mais foram exploradas pelos autores, principalmente na obra de Amado Nunes, a exemplo do que fez Marc Ferrez no Rio de Janeiro no século XIX. Subindo e descendo morros, Amado Nunes apresentou a cidade de Jacobina sob vários ângulos. Certamente, a tarefa não foi das mais fáceis, uma vez que o acesso aos morros é um tanto íngreme, principalmente durante o período em que ele as fez, e ainda mais se fosse subido com equipamento fotográfico. A primeira fotografia é a imagem de uma vista parcial da cidade. O plano central é a praça da cidade com a sua Igreja Matriz, construída em 1705. Pela estrutura da sua arquitetura com uma torre e uma nave - constatamos que o fotógrafo fez essa imagem antes de 1967, época da segunda reforma parcial, quando se constrói uma segunda torre. Nas ruas, nota-se detalhes das fachadas dos velhos casarões do período imperial. Acima do plano central, vê-se uma paisagem

serrana e uma estrada que liga a cidade em direção à capital do Estado. Na extremidade inferior, do lado esquerdo, detalhes da serra de onde o fotógrafo fez o registro e alguns animais, certamente dos moradores daquela redondeza (imagem 9). Na segunda imagem, se vê mais uma visão parcial da cidade, tendo ao fundo um descampado plano. Essa é uma das possíveis referências à origem do nome da cidade, advindo do tupi, que significa campo aberto ou espaço limpo. O Rio Itapicurú-Mirim, visualizado na extremidade direita, divide as partes norte e sul da cidade. A velha cidade teve sua origem na parte norte do rio. O bairro visualizado no primeiro plano da foto, na extremidade sul, teve o seu desenvolvimento no século XX, enquanto a outra parte da cidade remonta ao século XVII. Dá para identificar, um pouco acima da parte central da foto, o Estádio Municipal José Rocha, totalmente murado, o que denuncia que tal registro seja posterior a segunda metade da década de sessenta, época em que foi feito tal beneficiamento (imagem 10). A partir dessa narrativa visual percebemos uma mutação no desenho urbanístico da cidade. De um lado, um centro histórico, que remota às origens da cidade, e que ainda sofre alterações, e do outro, uma região nova em povoamento e em plena expansão. Imagens 9 e 10 Vistas panorâmicas de uma cidade em expansão. (Fotos: Amado Nunes). Outro tema bastante explorado nas fotografias urbanas de Jacobina é a feira-livre. Conforme Fernand Braudel: Freqüentada em dias fixos, a feira é um centro natural da vida social. É nela que as pessoas se encontram, conversam, se insultam, passam das ameaças às vias de fato, é nela que nascem alguns incidentes, depois processos reveladores de cumplicidades, é nela que ocorrem as pouco freqüentes intervenções da ronda, espetaculares, é certo, mas também prudentes, é nela que circulam as novidades políticas e as outras. (BRAUDEL, 1996, p. 16). A feira-livre existe como um espaço de realização dos instrumentos de troca. Por lá se circulam diversos tipos de mercadorias, encontrando desde os produtos primários aos industrializados. A feira-livre representa também um privilegiado espaço de circulação de

pessoas e culturas. Normalmente esse é um local oportuno para as pessoas do campo encontrarem os habitantes da cidade e vice-versa, assim como para as próprias pessoas do campo e da cidade se encontrarem também. Diríamos que a feira-livre constitui um verdadeiro cenário de socialização. Jacobina tinha uma importante produção agro-pastoril no período da década de setenta. Essa característica se refletia na dimensão da sua feira-livre. Grande e diversificada. No espaço da cidade, ela ocupava grande parte da Avenida Orlando Oliveira Pires, a Rua Caixeiro Viajante, parte da Rua Senador Pedro Lagos (locais de comércio) chegando até a Praça Getúlio Vargas (onde foi construído o mercado). Em uma imagem de Lindenício Ribeiro, vista da Avenida Orlando Oliveira Pires, verifica-se a extensão da área em que a feira-livre ocupava, pela perspectiva das árvores, postes e prédios. Em outra, bem mais recuado, o mesmo autor visualiza a feira a partir da Praça Getúlio Vargas, onde se avista o Mercado Municipal. Por essa indicação constatamos que se trata de uma fotografia feita a partir da segunda metade da década de sessenta, pelo fato do referido mercado ter sido inaugurado em 1964. Nas duas imagens, nota-se multidões de pessoas e diversas barracas de mercadorias, insinuando que a feira era bastante movimentada (Imagens 11 e 12). Imagens 11 e 12 Cenas da feira-livre e sua ocupação na cidade (Fotos: Lindenício Ribeiro) Osmar Micucci também visualizou a feira-livre na cidade. Em suas imagens, datadas dos anos oitenta, verificamos um típico olhar de voyeur. Nota-se isso no flagrante do garoto que desce, ou sobe, uma parte quebrada do cais do Rio do Ouro, área próximo das barracas, ao lado do Mercado Municipal. Percebe-se que esse flagrante é o assunto principal da fotografia, mas o autor nos deixa ver o funcionamento da feira com suas barracas, ao tempo que denuncia para o perigo da área acidentada do cais, onde os vendedores ficam sentados (conforme demonstrado também na imagem 12). Esse mesmo olhar é visto em uma imagem de um vendedor e um comprador numa barraca, apesar de que, a proximidade da cena e sua teatralidade sugerem que

tal foto tenha sido encomendada. Não sabemos. Mas a imagem chama a atenção, pela sua plasticidade, para os detalhes dos personagens sociais no cenário da feira-livre (Imagens 13 e 14) Imagens 13 e 14 Flagrantes sociais no universo da feira-livre. (Fotos de Osmar Micucci) CONSIDERAÇÕES FINAIS Podemos pensar que a cidade visualizada como monumento-documento por esses cronistas visuais, através de suas fotografias, hoje se confunde com a da memória dos cidadãos e com as referências que se tem do contexto das décadas de 1960 a 1980. A força que essas imagens possuem na compreensão dessa época já nos indica inferir que elas também fazem parte dos monumentos-documentos da história de Jacobina. Daí porque pensar que as fotografias urbanas desses autores constituem um importante portal de entrada para elucidar aspectos dos hábitos sociais da cidade. Seguindo as indicações dos fotógrafos e analisando as pistas deixadas pelos seus registros visuais, pudemos construir uma imagem possível de Jacobina entre as décadas de 1960 e 1980. Esse foi um período importante na história da cidade. Através das cenas presentes nas fotografias verificamos que ela vivia o dilema entre o impacto das mudanças e a força da tradição. Foram observando esses aspectos no seu dia-a-dia que diversos cronistas visuais, a exemplo de Amado Nunes, Lindenício Ribeiro e Osmar Micucci, deixaram gravados na memória fotográfica da cidade cenas que certamente somente poderiam existir na mente dos moradores que vivenciaram tal período. Mais do que isso, somente na mente dos fotógrafos que registraram tais cenas, uma vez que na atitude de voyeur, eles visualizaram momentos que por certo poderiam passar despercebidos pela grande maioria dos observadores comuns.

REFERENCIAS BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Lisboa: Edições 70, 1981. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 1985. BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. Tradução Telma Costa. São Paulo: Martins Fontes, 1996. FONSECA, Antônio Ângelo Martins da. Poder, crise regional e novas estratégias de desenvolvimento: o caso de Jacobina-Bahia. Salvador, 1995 (dissertação de mestrado). GINZBURG, Carlo. Emblemas, Sinais e Mitos: Morfologia e História. São Paulo: Cia das Letras, 1989. LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução Bernardo Leitão...[et. al.]. 4 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1996. LEMOS, Doracy Araújo. Jacobina, sua História e Sua Gente. Jacobina, 1995.