O DIREITO À SAÚDE SOB A PROTEÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO

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Transcrição:

O DIREITO À SAÚDE SOB A PROTEÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO Edvaldo Pereira dos Santos 1 RESUMO O direito constitucional de acesso à saúde é um direito social e fundamental. É previsto pela Constituição da República de 1988 que a saúde é direito de todos e dever do Estado. Atribui-se, portanto, ao Estado o dever de implementar políticas sociais e econômicas com o fim de concretizar tal direito fundamental. O que acontece é que há uma negligência por parte da Administração Pública na implantação de políticas sociais, violando assim mandamentos constitucionais e consequentemente ferindo direitos fundamentais. Diante do exposto, discute-se neste trabalho a possibilidade de aplicação da teoria da reserva do possível em face do mínimo existencial e a possibilidade de, em casos excepcionais, o Judiciário intervir na esfera administrativa a fim de possibilitar o cumprimento dos mandamentos constitucionais. Esta intervenção é analisada à luz da máxima eficácia dos direitos fundamentais, o que, por conseguinte, não caracterizaria uma violação do princípio da separação dos poderes. PALAVRAS-CHAVE: Direitos fundamentais; Direito à saúde; Princípio da reserva do possível; Princípio da Separação dos Poderes. 1. INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por objetivo analisar, à luz dos princípios e direitos fundamentais, a possibilidade de intervenção do Judiciário na implementação de políticas públicas, especialmente no que diz respeito ao direito constitucional de acesso à saúde. Será de fundamental importância, para compreensão deste trabalho, a análise do princípio da reserva do possível aplicado à realidade socioeconômica do Brasil, bem como a análise do denominado princípio do mínimo existencial. Por derradeiro, será analisado o possível desrespeito ao princípio constitucional da separação dos poderes, quando relacionado às causas e intervenções supracitadas. 1 Funcionário público; Técnico em Segurança do Trabalho; Graduando em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas Professor Alberto Deodato.

2. DIREITO À SAÚDE A saúde é tratada dentro da Constituição da República de 1988 como sendo um direito social, direito este igualmente fundamental. Ao analisar a saúde sob a ótica dos direitos fundamentais, é preciso levar-se em consideração certas peculiaridades que estes apresentam. Os direitos fundamentais devem ser constantemente ampliados, não podendo seu exercício sofrer limitações arbitrárias por parte de quem quer que seja. Deve-se sempre ter em consideração, em qualquer conflito de interesse, a máxima observância dos direitos fundamentais envolvidos, conjugando-a com a sua mínima restrição (LENZA,2012,P.962). Em uma análise extensiva dos direitos supracitados é que a Organização Mundial de saúde (OMS) define o conceito de saúde como sendo um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades". Nesse sentido, pode-se entender que o direito à saúde constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, pois não é possível existir dignidade da pessoa humana sem acesso à saúde. A Constituição da República de 1988, entendendo a importância do tema, é bastante clara ao estabelecer em seus artigos a devida proteção ao direito à saúde, atribuindo ao Estado uma função positiva no que diz respeito à implementação do referido direito: Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (...) Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. No mesmo sentido é a chamada Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90), que regula as ações gerais de saúde: Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação. De acordo com os mencionados artigos, percebe-se que a postura adotada pelo ordenamento jurídico brasileiro, no que diz respeito à proteção do direito social à saúde, após o advento da Constituição da República de 1988, é uma postura garantidora deste direito aos cidadãos. Dessa forma, o Estado, além de abster-se de praticar ações que prejudiquem ou retardem de alguma forma a concretização dos direitos fundamentais, deve atuar positivamente para que os direitos fundamentais sejam concretizados e ampliados. Assim, pode-se dizer que o Estado deve se comportar ora de forma positiva, ora de forma negativa, para que tais direitos sejam verdadeiramente efetivados. No Brasil, como veiculado constantemente na mídia, quando o assunto é saúde o clima é de insatisfação geral; percebe-se, assim, que o Estado não vem conseguindo implementar de forma satisfatória os direitos mínimos de existência do ser humano, violando, assim, diversos princípios constitucionais. A não efetivação dos direitos fundamentais constitui uma afronta direta aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, tais como, o de construir uma sociedade justa e solidária, bem como o de reduzir as desigualdades sociais e regionais, principalmente pelo fato de que os mais prejudicados com tais ofensas são os menos favorecidos economicamente. Ao analisar a situação dos direitos sociais no Brasil e em especial o direito à saúde, percebe-se que a sociedade brasileira ainda está longe de alcançar o conceito de saúde definido pela Organização Mundial de Saúde (OMS): um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não somente ausência de afecções e enfermidades". Constante e crescente tem sido o número de ações judiciais em que o cidadão requer do Estado uma prestação positiva no sentido de concretizar seu direto de acesso à saúde. Os pedidos mais comuns se referem ao fornecimento de medicamentos e tratamentos de alto custo, o que é geralmente negado pela Administração, que alega a falta de recursos para prover tais direitos. A negligência da Administração Pública na formulação e execução de políticas econômicas que visam à implementação (concretização) do direito à saúde

constitui uma violação do direito à vida, garantido no caput do artigo 5 da Constituição da República de 1988, dispositivo este que deve ser interpretado em seu sentido mais amplo, ou seja, deve-se entender o direito à vida como sendo não apenas o direito de estar vivo, mas também o de viver com dignidade. Dispõe o mencionado artigo: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. Diante do não cumprimento dos mandamentos constitucionais, e das constantes violações de direitos por parte da Administração Pública, pode-se considerar que a harmonia (presunção de que o Legislativo, Executivo e Judiciário estão cumprido corretamente os mandamentos constitucionais) da ordem jurídica acaba por ser quebrada, necessitando assim ser reestabelecida. Tal reestabelecimento se dará, muitas das vezes, com a intervenção do Poder Judiciário na esfera administrativa, com intuito de garantir o mínimo existencial e analisar, no caso concreto, a existência ou não de recursos por parte da Administração para a solução do conflito. Neste sentido, destaca-se o voto do Ministro do Superior Tribunal de Justiça, Humberto Martins, proferido no julgamento do Recurso Especial n 1.136.549 RS (2009/0076691-2) ao mencionar que não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa (MARTINS,2010,P.7).

3. RESERVA DO POSSÍVEL X MÍNIMO EXISTENCIAL Quando um cidadão desprovido de recursos econômicos procura os órgãos de saúde, necessitando de tratamentos especializados ou de medicamentos de alto custo, na quase totalidade das vezes não consegue ter sua pretensão acolhida sob o argumento de que a Administração não possui recursos para custeio de tal solicitação. Nestes casos, o cidadão não possui alternativa a não ser tentar, através do Judiciário, ter sua pretensão reconhecida. Como a Constituição da República de 1988 prevê a descentralização das ações e serviços públicos de saúde, podem a União, o Estado e o município em questão serem responsabilizadas pela não efetivação do direito à saúde, nos termos do artigo 198 da Carta Constitucional: Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: I - descentralização, com direção única em cada esfera de governo; II - atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III - participação da comunidade. 1º. O sistema único de saúde será financiado, nos termos do art. 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes. No mesmo sentido tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal, como alude o Ministro Joaquim Barbosa no Agravo de instrumento n 550.530 PR: Se uma pessoa necessita, para garantir o seu direito à saúde, de tratamento médico adequado, é dever solidário da União, do estado e do município providenciá-lo. Nesse sentido, AI 396.973 (rel. min. Celso de Mello, DJ 30.04.2003), RE 297.276 (rel. min. Cezar Peluso, DJ 17.11.2004) e AI 468.961(rel. min. Celso de Mello, DJ 05.05.2004). Sendo assim, qualquer dos entes da Federação pode ser compelido a prestar o tratamento pleiteado por pessoa que dele necessite e não possua condições de arcar com os custos a ele inerentes. (BARBOSA,2012,P.7,8). O Judiciário, a partir do momento em que é provocado para dirimir um conflito, não pode abster-se de se pronunciar. O magistrado, na análise do caso

concreto, observando o devido processo legal, possibilitará que ambas as partes comprovem suas alegações. A parte autora da demanda deve provar sua real necessidade em face da Administração Pública. Por outro lado, incumbe à Administração comprovar sua alegação de que não possui recursos para assegurar a satisfação da pretensão do cidadão. Assim, surge para o Judiciário a importante tarefa de ponderar os interesses em questão, iniciando-se, então, a discussão entre a aplicação do princípio da reserva do possível ou a aplicação do princípio do mínimo existencial. 3.1 Princípio da Reserva do Possível A teoria da reserva do possível, pelo que se tem notícia, foi invocada pela primeira vez pelo Tribunal Constitucional alemão na decisão conhecida como Numerus Clausus (BverfGE n.º 33, S. 333). A ação foi proposta em face do Estado por estudantes que não haviam sido aceitos em instituições de cursos superiores, devido à política de limitação de vagas em cursos superiores imposta pela Alemanha em 1960. A pretensão foi fundamentada no artigo 12 da Lei Fundamental daquele Estado, segundo a qual todos os alemães têm direito a escolher livremente sua profissão, local de trabalho e seu centro de formação. 2 Na decisão ficou estabelecido que o direito à prestação positiva do Estado (no caso em questão seria o aumento do número de vagas no curso de medicina), estaria sujeito à reserva do possível. Desta forma, estabelece-se o entendimento de que o indivíduo somente pode exigir do Estado uma prestação que se encontre dentro do razoável, sendo que mesmo que o Estado possua condição de atendê-la, este não estará obrigado a satisfazê-la se a mesma estiver fora dos limites do razoável. Pode-se perceber, dentro de uma interpretação razoável, que originalmente o que se tenta proteger com a reserva do possível são aquelas prestações desprovidas de razoabilidade. Sendo assim, a teoria da reserva do possível, originária da Alemanha, ao ser utilizada no Brasil, deve-se pautar ao seu 2 BORGES,FER. TEORIA DA RESERVA DO POSSÍVEL: Direitos Fundamentais a Prestações e a Intervenção do Poder Judiciário na Implementação de Políticas Públicas. Advcom. Disponível em: < http://www.advcom.com.br/artigos/pdf/artigo_reserva_do_possivel_com_referencia_.pdf>. Acesso em: 04 Out. 2012

real significado e objetivo, sob pena de constituir-se em obstáculo para concretização dos direitos e garantias fundamentais. Com intuito de evitar abusos no uso da citada teoria é que adverte o Ministro do Superior Tribunal de Justiça Humberto Martins no Recurso Especial n 1.136.549 RS (2009/0076691-2): é preciso ter em mente que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada (MARTINS,2010,P.8).. 3.2 Princípio do Mínimo Existencial É comum e certo que os desejos humanos tendem ao infinito, de tal modo que alcançar uma satisfação plena dos desejos e necessidades humanas seria uma tarefa impossível, devido sobremaneira ao fato de serem os recursos escassos. Entretanto, dentro destes infinitos desejos e necessidades é que vem à tona a preservação do mínimo existencial. O mínimo existencial pode ser definido como sendo o conjunto de condições e recursos indispensáveis para que o ser humano possa ter uma vida digna. Como mencionado anteriormente, percebe-se que os direitos fundamentais previstos na Constituição da República de 1988, não só garantem a aplicação imediata dos direitos relacionados ao mínimo existencial, como também preveem que o seu rol deve ser ampliado. 3.3 Ponderação na Aplicação dos Princípios O que se pode perceber no Brasil é que os entes federativos, que são solidariamente responsáveis pela implementação de condições que permitam o pleno acesso à saúde, quando acionados pelo Judiciário, comumente se valem, de forma indiscriminada, do princípio da reserva do possível. Surge a partir daí a importante função do Judiciário de, observando o caso concreto, realizar a ponderação dos bens jurídicos em causa, determinando, se for o caso, a implementação de políticas que garantam a efetivação dos direitos violados. Desta forma, evita-se que o princípio da reserva do possível seja utilizado como empecilho à efetivação dos direitos fundamentais.

Seria totalmente desproporcional que o principio da reserva do possível pudesse ser aplicado ao mínimo que se necessita a uma vida digna. Deve-se também ter em consideração, na aplicação do mencionado princípio, as condições socioeconômicas do Brasil e dos Países europeus, em especial a Alemanha, que é de onde surge a teoria da reserva do possível. Sabe-se que na Alemanha a efetivação dos direitos fundamentais anda em ritmo muito mais acelerado do que no Brasil, de forma que faz todo sentido restringir e impedir que o indivíduo busque em face do Estado prestações que sejam desprovidas de razoabilidade. No entanto, não se pode dizer que a pretensão de uma pessoa desprovida de recursos que busca um tratamento de saúde, que é fundamental para sua existência, seja desprovida de razoabilidade. No sentido de que se devem observar as condições socioeconômicas de cada País, e de que se deve preservar o mínimo existencial, é o posicionamento do ministro Humberto Martins do STJ no Recurso Especial n 1.136.549 RS (2009/0076691-2), quando alude que: (...) não se pode importar preceitos do direito comparado sem se atentar para as peculiaridades jurídicas e sociológicas de cada país. A Alemanha já conseguiu efetivar os direitos sociais de forma satisfatória, universalizou o acesso aos serviços públicos mais básicos, o que permitiu um elevado índice de desenvolvimento humano de sua população, realidade ainda não alcançada pelo Estado brasileiro. Na Alemanha, os cidadãos já dispõem de um mínimo de prestações materiais capazes de assegurar uma existência digna. Por esse motivo é que o indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Situação completamente diferente é a que se observa nos países periféricos, como é o caso do Brasil. Aqui ainda não foram asseguradas, para a maioria dos cidadãos, condições mínimas para uma vida digna. Neste caso, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem razão, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado brasileiro. É por isso que o princípio da reserva do possível não pode ser oposto a um outro princípio, conhecido como princípio do mínimo existencial. Desse modo, somente depois de atingido esse mínimo existencial é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em quais outros projetos se deve investir. Ou seja, não se nega que haja ausência de recursos suficientes para atender a todas as atribuições que a Constituição e a Lei impuseram ao estado. Todavia, se não se pode cumprir tudo, deve-se, ao menos, garantir aos cidadãos um mínimo de direitos que são essenciais a uma vida digna, entre os quais, sem a menor dúvida, podemos incluir o pleno acesso a um serviço de saúde de qualidade. Esse mínimo essencial não pode ser postergado e deve ser a prioridade

primeira do Poder Público. Somente depois de atendido o mínimo existencial é que se pode cogitar a efetivação de outros gastos(martins,2010,p.8,9). É função do Judiciário, na análise do caso concreto, verificar a razoabilidade da pretensão em face das condições econômicas do Estado, não permitindo que a Administração faça do princípio da reserva do possível uma constante estratégia de defesa e escudo que impossibilite a aplicação do mínimo existencial. Outro problema que se opera, quando da intervenção do Judiciário na determinação de implementação de politicas públicas que visem à garantia dos direitos fundamentais, no caso em questão do direito à saúde, é a legitimidade do Judiciário para tal. A dúvida que se coloca é que, seria legítimo, por parte do Judiciário, determinar a implantação de políticas públicas? Não estaria ele ferindo o princípio constitucional da separação dos poderes com tal atitude? As respostas a essas dúvidas serão analisadas a seguir, à luz da máxima eficácia dos direitos fundamentais. 4. PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES E A MAXIMA EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS De acordo com a doutrina, o primeiro a identificar a tripartição das funções do Estado foi Aristóteles. Identificou-o que o Estado possuía três funções distintas: uma de legislar, outra de executar e outra de julgar os litígios surgidos. No entanto, na teoria aristotélica, as três funções eram concentradas nas mãos de um único soberano. Mais tardiamente, Montesquieu desenvolveu a teoria da tripartição dos poderes, de forma que cada função seria correspondente a um órgão. Sendo assim, não era mais o soberano que legislava, administrava e julgava. A teoria de Montesquieu veio para confrontar o absolutismo, pois de acordo com tal teoria, era preciso criar um equilíbrio dentro do Estado, de forma que o poder não ficasse concentrado nas mãos de um único soberano. Na teoria criada inicialmente por Montesquieu, pode-se dizer que, devido ao grande receio do absolutismo que predominava na época, cada órgão deveria atuar estritamente dentro de sua função típica, criando-se assim um sistema de

equilíbrio denominado freios e contrapesos. Essa teoria de Montesquieu foi responsável por grandes lutas contra o absolutismo. Pode-se considerar que grande parte dos Estados hoje no mundo adota a teoria da separação dos poderes (funções); dentre estes, pode-se incluir o Brasil, como se percebe pela leitura do artigo 2 da Constituição da República de 1988, ao mencionar que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. O princípio da separação dos poderes, como se percebe pela leitura e interpretação do artigo 2 da Carta Maior, presa a harmonia entre o Legislativo, Executivo e Judiciário. Essa harmonia tem por finalidade possibilitar o cumprimento dos demais mandamentos constitucionais, protegendo assim os direitos fundamentais dos cidadãos, direitos estes que eram, no período do absolutismo, constantemente violados por parte do Estado. Considerando que o princípio da separação dos poderes foi criado inicialmente com o objetivo de resguardar o cidadão dos abusos cometidos por parte do Estado, é que se pode afirmar que o mencionado princípio deve ser interpretado à luz dos direitos fundamentais consagrados na Constituição, sob pena de desvirtuar sua real finalidade. Dessa forma, não seria adequado utilizar o princípio da separação dos poderes com o objetivo de impedir que, em casos excepcionais, o Judiciário atue para implementar politicas públicas, objetivando a concretização dos direitos fundamentais diante da omissão administrativa. No mesmo sentido, foi a decisão do Supremo Tribunal Federal, citada pelo Ministro Humberto Martins (Superior Tribunal de Justiça), no Recurso Especial n 1.136.549 RS: "É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário e nas desta Suprema Corte em especial a atribuição de formular e implementar políticas públicas, pois nesse domínio, o encargo reside, primeiramente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal incumbência no entanto, embora em bases excepcionas, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e integridade de direitos individuai e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático." (STF. ADPF 45 MC/DF. Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 29.4.2004, DJ 4.5.2004.)

Pelo entendimento da Suprema Corte, percebe-se que o princípio da separação dos poderes deve ser ponderado, de forma a levar-se em consideração os demais princípios constitucionais. Dessa forma, pode-se considerar que não é cabível uma interpretação isolada de um determinado princípio, sem levar em consideração os demais princípios igualmente constitucionais. Relembrando o princípio da unidade da Constituição, Pedro Lenza cita Canotilho, que menciona que o princípio da unidade obriga o interprete a considerar a Constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tesão(...) existentes entre as normas constitucionais a concretizar 3. É preciso observar, ainda, que não existe hierarquia entre os princípios constitucionais. Dessa forma, em um aparente conflito de princípios, deve o intérprete, observando o caso concreto e exercendo o juízo de ponderação, estabelecer qual dos princípios, aparentemente conflitantes, deve prevalecer no caso concreto, sem, contudo, excluir o outro. No caso proposto neste artigo, no qual é levantado o questionamento da interferência do Judiciário nas funções do executivo, objetivando a concretização de direitos fundamentais - direito à saúde, o aparente conflito que existe é entre o princípio da separação dos poderes e o princípio da máxima efetividade dos direitos fundamentais. No caso do aparente conflito supracitado, pelo que foi visto anteriormente, não há que se falar em violação do princípio da separação dos poderes, pois se o princípio da separação dos poderes foi criado para possibilitar que os direitos fundamentais não fossem violados, seria contraditório alegá-lo com intuito de impedir a concretização de tais direitos. Nesse sentido é o pensamento do Ministro do STJ Humberto Martins, quando afirma que: Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais (MARTINS, 2010, P.7). Desta forma, dada a máxima efetividade que os direitos fundamentais constitucionais devem alcançar, a alegação da suposta violação ao princípio da 3 LENZA,Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16.ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 1312p.

separação dos poderes não deverá prevalecer, quando da trata da garantia do mínimo existencial para uma vida digna. 5. CONCLUSÃO Com base nos valores consagrados na Constituição da República de 1988, pode-se assegurar que a saúde constitui um direito fundamental por excelência. E devido à impossibilidade de se pensar em dignidade da pessoa humana sem saúde, é correto dizer que esta constitui um dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Percebe-se que, no Brasil, não são raras as vezes em que o cidadão, devido à constante negligência por parte da Administração, tem seus direitos fundamentais violados pelo próprio Estado. Violação esta que muitas vezes não ocorre por ação, mas sim através do não cumprimento de prestações positivas impostas pela Carta Maior. Diante das omissões administrativas na implantação de políticas públicas que visem a assegurar o cumprimento dos mandamentos constitucionais, foi visto que o cidadão, muitas vezes, não possui outra alternativa que não seja recorrer ao Judiciário, para que seus direitos sejam reconhecidos em face do próprio Estado. Na análise de tais questões, verifica-se que é constante a alegação, por parte da Administração, da teoria da reserva do possível em face dos direitos fundamentais. No entanto, fica claro, como demonstrado pelos julgamentos dos Tribunais Superiores, que o princípio da reserva do possível não pode ser utilizado de forma indiscriminada, como forma de impedir a concretização dos direitos fundamentais. Fica evidenciado, desta forma, que o princípio da reserva do possível não é oponível ao mínimo existencial. Distorcida, também, seria a interpretação de que a intervenção extraordinária do Judiciário na esfera administrativa, com objetivo de assegurar o cumprimento de direitos fundamentais, caracterizaria violação do princípio da separação dos poderes. Isto porque tal princípio foi criado, originalmente, com o escopo de garantir a não violação de tais direitos, tão essenciais à existência humana.

Por derradeiro, pode-se concluir que, em um Estado Democrático de Direito, igualmente social, onde o Estado está obrigado a prestações positivas e negativas para com o cidadão, mais do que permitido, torna-se necessário que o Judiciário, em determinados casos, atue para assegurar que a negligência da Administração não torne inviável o exercício dos direitos fundamentais. REFERÊNCIAS BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1.136.549 RS. 2ª Turma. Relator: Ministro Humberto Martins. Brasília, 08 de junho de 2010. Disponível em <http:// www.stj.jus.br.> Acesso em 02 out. 2012. BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Agravo de instrumento n 550.530 PARANÁ. 2ª Turma. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Brasília, 26 de jun de 2012. Disponível em<http://www.jusbrasil.com.br/filedown/dev6/files/jus2/stf/it/ai_550530_pr_134 5561976368.pdf>. Acesso em 03 out. 2012. LENZA,Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 16ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. 1312p. MONTESQUIEU. O Espírito das Leis. 3ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 851p. PENNA, Saulo Versiani. Controle e Implementação Processual de Políticas Públicas no Brasil. 1. Ed. Belo Horizonte: Fórum, 2011. 345p. SANTOS, Flavio José. A atuação do Judiciário na efetivação do direito à saúde e a reserva do possível: colisão com direitos. Jus, revista.2010. Disponível em <http://jus.com.br/revista/texto/18627/a-atuacao-do-judiciario-na-efetivacao-dodireito-a-saude-e-a-reserva-do-possivel-colisao-com-direitos> Acesso em 05 out. 2012.