História da psicanálise de crianças: contribuições para a constituição de novos sujeitos Maria Eugênia Pesaro* Existem muitas possibilidades de leitura da história da psicanálise de crianças. Elas são possíveis porque há diversas maneiras de recortar e organizar os acontecimentos históricos numa tentativa de se estabelecer uma série com sentido. Neste texto será proposta uma leitura da história da psicanálise de crianças a partir dos entraves teóricos e clínicos que ainda estão presentes na clínica com as crianças, especialmente na clínica com as crianças que apresentam graves falhas na sua estruturação psíquica. A proposta é a de destacar esses principais pontos teóricos e clínicos para, a partir deles, sustentar alguns eixos de leitura que podem orientar as práticas clínicas com crianças na atualidade. Optou-se por utilizar a leitura de Silvia Fendrik, no seu livro a Ficção das origens: contribuição à história da psicanálise de crianças (1991), como eixo central que articula * Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo IPUSP; Coordenadora de projetos do Centro de Refere ncia do Instituto da Criança/ Hospital das Clínicas e membro da equipe do Lugar de Vida Centro de Educação Terape utica.
40 Maria Euge nia Pesaro a história aos entraves teóricos e clínicos que podem ser lidos, por sua vez, como sintomas que se presentificam na história da psicanálise com crianças. Propõe-se neste texto, trabalhar destacar esses sintomas como uma forma de avançar no fazer clínico com as crianças. Nesse livro, Fendrik (1991) desvenda o mito de origem dessa história e os sintomas que decorrem das tentativas das fundadoras da psicanálise de crianças em responder a essa origem. Neste desvendamento, a autora também acaba por destacar outras questões que estão constantemente presentes: a série origem, causa, sinais, prevenção, profilaxia; a dicotomia Infância e infantil; as pole micas sobre a analisabilidade das crianças, demanda de análise e transfere ncia nas crianças; e as questões do lugar dos pais e o que é um pai. Origens da psicanalise de crianças Segundo Fendrik, o marco inaugural da psicanálise com crianças é o caso do Pequeno Hans (Freud, 1909), em que o pai da criança, sob orientação e sustentação de Freud, ocupou o lugar de pai-analista. Esta junção e a convicção de Freud de que a conflue ncia da autoridade médica e da paterna numa única pessoa foi o que possibilitou a análise do menino, tornou-se, segundo a autora, o ponto nevrálgico e sombrio da clínica psicanalítica com crianças. Este é o primeiro entrave desta história que retorna de uma maneira sintomática no antagonismo Anna Freud e Melanie Klein. Na publicação do caso do Pequeno Hans, Freud também levanta a questão da analisabilidade das crianças: há análise antes da castração e do recalque? E ainda se indaga sobre os efeitos, no adulto, de uma análise quando criança. Em Novas Confere ncias (1933) Freud também escreve sobre a psicanálise infantil, sua aplicação e relação com a educação e propõe que a técnica e o método com os adultos deve ser modificado para o tratamento de crianças, com especial atenção à associação livre que seria inoperante na criança porque esta não possui o superego e à transfere ncia
História da psicanálise de crianças... 41 que, no caso do tratamento com crianças, deveria incluir os pais reais. Outro ponto importante destacado por Fendrik é que o começo da análise de crianças coincide com o intenso debate acerca da formação do analista e com as primeiras tentativas de institucionalizar esta formação. Freud defendia cada vez mais a não vinculação da formação do analista à formação médica e, com isso, visava preservar para a psicanálise um lugar diferente da medicina. Neste caminho, uma resolução tomada em 1927 pela Comissão Internacional de Ensino dispensou os psicanalistas de criança da formação médica que era exige ncia de algumas sociedades psicanalíticas quando se tratava de analistas de adulto. Fendrik destaca que, diferentemente da psicanálise de adultos, a psicanálise de crianças nasce profana e herdará a dificuldade de definir, no interior do campo psicanalítico, o que é um psicanalista (Fendrik, 1991, p.11). Não se sabe porque mas, de 1909 a 1922 não há, ou não se tem acesso, escritos de testemunhos de análise de crianças. Esse fato é estranho uma vez que as primeiras descobertas da psicanálise freudiana já situavam na infância as causas das neuroses. Então, Fendrik pergunta: por que a indicação de analisar as crianças não foi um caminho seguido no início da história da psicanálise? Seguindo a história da psicanálise com crianças, Fendrik aponta que o antagonismo Anna Freud e Melanie Klein, que surge após a morte de Hermine Von Hug-Hellmuth, são versões para responder a questão da afirmativa freudiana da união de pai e terapeuta como única possibilidade do tratamento analítico de uma criança: Melanie Klein foi uma mãe que analisou seu filho e Anna Freud, uma filha analisada pelo seu pai. Para compreender essas afirmações, segue-se um breve resumo destas tre s primeiras analistas de crianças. Hermine Von Hug-Hellmuth (1871-1924) era alemã e pedagoga. Produziu uma série de artigos publicados na revista Imago com o titulo sobre a verdadeira natureza da alma infantil a respeito dos cuidados e da educação de seu sobrinho de 9 anos (filho de seu irmão que faleceu), Rudolf. Mas, a maior parte dos seus artigos nunca foi traduzida
42 Maria Euge nia Pesaro do alemão, com exceção do Diário psicanalítico de uma menina (Journal d une petite fille, Paris, Denol, 1987). Ela dirigiu até a sua morte, o serviço psicanalítico de ajuda à educação de Viena, cuja função era tornar conhecida a psicanálise para pais, mestres e educadores. Segundo Camarotti (2010), Hermine Von Hug-Hellmuth propunha que o analista de criança não precisava explicitar os impulsos inconscientes, bastando que esses se expressassem em atos simbólicos, sem necessidade de passar pela linguagem falada. O analista deveria ser ao mesmo tempo terapeuta e educador que cura. Essa pedagogia curativa se assemelha ao que foi defendido por Oskar Pfister e que marcou a obra de Anna Freud. Hermine Von Hug-Hellmuth foi morta pelo seu sobrinho, quando este tinha 18 anos de idade e ela 53, em 1924. A história de Anna Freud (1895-1982) confunde-se com seu percurso teórico e clínico na psicanálise com crianças. Anna Freud era a terceira filha de Freud. No ano de 1920, morre Sophie, filha do meio de Freud e se consolida a atividade mais intensa de Anna com a psicanálise e com o pai. Em 1922, morre o filho de Sophie, neto preferido de Freud e descobre-se o câncer de Freud. Nesse ano, Anna é admitida na sociedade psicanalítica de Viena. Em 1923, ela abre seu consultório contínuo ao do pai. Em 1926, Anna Freud publica o seu livro sobre a psicanálise da criança e, neste período se torna a enfermeira de Freud. Em 1927, a Sociedade Britânica de Psicanálise organiza um debate sobre os problemas da análise de crianças e, em 1952 Anna Freud funda a Hampstead Child Therapy Clinic. Destaca-se ainda que Anna Freud fez sua análise didática com Freud, seu pai. E, nos meios psicanalíticos, Anna Freud nunca foi reconhecida como legítima herdeira do pensamento freudiano. Anna Freud interroga-se sobre a possibilidade de transfere ncia na criança argumentando que a criança não pode fazer uma neurose de transfere ncia porque seus objetos originários, seus pais, são uma permanente fonte de gozo para ela e interroga-se sobre a possibilidade da substituição fundadora da operação analítica em crianças aquela que substitui a pessoa do analista pelo lugar de objeto que deve ocupar na cura uma vez que a criança que ainda tem
História da psicanálise de crianças... 43 seus objetos amorosos primitivos, os pais, existentes na realidade e não apenas na fantasia. Estas duas interrogações fundam a convicção de Anna Freud de que a análise de uma criança não pode ser separada de um trabalho pedagógico (pedagógico como intenção de nomear a dificuldade de um analista de ser investido por uma criança em um lugar diferente do de qualquer outro representante do mundo dos adultos). Assim, para A. Freud, segundo a análise de Frendik (1991), o analista reúne em sua pessoa duas missões dificeis e, na realidade, diametricalmente opostas: a de analisar e educar ao mesmo tempo. Isto é, permitir e proibir simultaneamente, liberar e voltar a restringir ao mesmo tempo (p. 32). Melanie Klein (1882-1960) era a caçula de quatro filhos. Sua irmã mais velha, Sidonie, morreu quando Melanie Klein tinha 9 anos. Foi Sidonie quem ensinou Melanie Klein a ler e a escrever. Seu irmão Emmanuel, com quem ela tinha uma intensa relação, morreu aos 24 anos de idade. Melanie Klein, casa-se, aos 21 anos, com Arthur, que conheceu por intermédio do irmão Emmanuel e deixa de estudar medicina. Em 1919, com a apresentação do seu trabalho O desenvolvimento de uma criança: a influe ncia do esclarecimento sexual e a diminuição da autoridade sobre o desenvolvimento intelectual das crianças é nomeada membro titular da Sociedade Psicanalítica da Hungria. Este seu trabalho versa sobre seu filho mais novo Erich (apresentado com o nome de Fritz) que Melanie Klein considerava ter sua capacidade intelectual diminuída porque aos 4 anos ele não reconhecia as cores, acrescido de um sentimento de onipote ncia: ele dizia saber de tudo e por isso não tinha interesse em aprender. Melanie Klein procede a educação psicanalítica de Erich, especificamente focada no combate a crença em Deus e na livre expressão dos pensamentos sexuais. Melanie Klein estava imbuída da crença na possibilidade de prevenir a neurose por meio de uma educação que favoreceria a liberdade de pensamento, a criatividade, a intelige ncia e o combate a irracionalidade das crenças religiosas. Em 1921, Melanie Klein apresenta a continuação da educação psicanalítica de Erich a análise precoce. Neste trabalho, situa os traumas e causas da neurose antes dos
44 Maria Euge nia Pesaro seis anos de vida e teoriza sobre chiste na história infantil, o que representa uma mudança na sua posição de educadora para analista: o chiste torna presente a dimensão do desejo e da falta materna. Em 1924, teoriza sobre a existe ncia de uma severíssima instância crítica durante os primeiros anos e sobre a importância do sadismo oral. Na leitura de Fendrik, as questões nevrálgicas que voltam ou ressurgem de tempos em tempos no campo da psicanálise de crianças, podem ser lidas como sintomas postos em ato nas cenas analíticas sintoma entendido como aquilo que não para de produzir efeitos, que ve m convertendo a análise de crianças em uma questão de filiação, herança, dogmatismo e legitimidade. A autora também alerta que a conjunção entre psicanálise e pedagogia, como única alternativa para a análise de uma criança é o sintoma com o qual Anna Freud inscreveu seu nome na história da psicanálise, o lugar onde é possível ler a sua filiação (Fendrik, 1991, p.35). E, ressalta que, a falha de Anna Freud foi a de reduzir, rapidamente, a reflexão sobre a condição estrutural da analisabilidade das crianças, em termos de transfere ncia, à questão dos pais que possibilitam ou impedem o desenvolvimento da neurose de transfere ncia. Já para Melanie Klein, a análise da criança deve prescindir de toda vinculação com seus pais reais, com sua história familiar, com qualquer obstáculo possível, alheio à situação analítica e, a única origem à qual a análise remete é à da cena primaria (Fendrik, 1991, p. 90). Considera também que a análise é incompatível com a função educativa porque ao assumir a função educativa o analista aturaria como representante de agentes educativos e assumiria o papel de Superego. Além dessas críticas de Melanie Klein a Anna Freud, Fendrik destaca que o nome de Melanie Klein representa uma concepção da psicanálise que situa a fantasia em lugar do inconsciente freudiano e com isso, o apagamento do sujeito singular do inconsciente freudiano. A análise de Fendrik é a de que a entrega das crianças às analistas mulheres não deixa de evocar à maneira do automatismo de repetição, os primeiros tempos freudianos, em que as crianças podiam ser analisadas por seus pais. Também evoca a principal característica freudiana do complexo de Édipo na
História da psicanálise de crianças... 45 mulher: a vinculação, para toda a vida, com o pai (Fendrik, 1991, p. 98). Para Fendrik, constituir-se como mulher-analista de crianças, portanto, implica a tarefa inelutável de, não apenas responder como mulher à relação que apresenta com o nome de seu pai, para não ficar presa fantasmaticamente ao filho que deseja obter dele, mas também responder, como analista, à história que herda, da qual, saiba ou não, leva as marcas (Fendrik, 1991, p.100-101). A história de Anna Freud gira em torno de um nome destinado a continuar os laços de transfere ncia de singular significação para seu pai e sua tragédia consistiu no destino paradoxal do apego a seu pai: quanto mais perto de sua pessoa mais distante de sua obra (p.103). Além disso, a necessidade da aliança entre análise e pedagogia se tornou um sintoma que inscreveu seu nome como tomada de posse de um território em lugar de continge ncia a qual cada análise submete o analista. Na história de Melanie Klein, a primeira criança por ela analisada leva Fr no nome de batismo: Freud nunca reconheceu Melanie Klein. Também no seu nome, há um sintoma de algo não dito em relação ao pai: o sobrenome paterno, Reizes, foi substituído por Klein, o designo de oculta-lo não fala da eficácia de um verdadeiro corte. A obra de Melanie Klein teve também um destino paradoxal: a antítese de Anna Freud a situa como a aute ntica herdeira das descobertas freudianas (importância da pulsão de morte). Para Fendrik, Melanie Klein e Anna Freud representam dois modos paradigmáticos de responder à questão do pai: a ruptura e a continuidade. E, a resposta de Hermine não fez parte da história da psicanálise com crianças porque fala de um final trágico, vinculado a um pai ausente (Fendrik, 1991, p.104). Continuação da História da Psicanálise de Crianças: revisitando a origem, a filiação e o lugar dos pais Por que o tempo entre a descoberta freudiana das raízes infantis da neurose e a delimitação do campo da
46 Maria Euge nia Pesaro psicanálise de crianças? Uma resposta é que a criança que vai ser um futuro adulto não é a mesma que a criança construída na transfere ncia analítica. Há uma distância entre a criança como confirmação empírica da validade de um conceito teórico e a criança como paciente que impede que se estabeleça uma relação direta entre neurose infantil, como lugar provável da origem e, as crianças, como destinatárias da cura analítica (Fendrik, p.13). A psicanálise modifica a significação comum da infância, não se trata mais de considerá-la uma fase da vida, uma etapa do desenvolvimento, e sim uma posição vinculada aos desejos e fantasias inconscientes. A posição infantil é traduzida pelos modos de satisfação pulsional, pela resposta ao enigma do desejo do Outro e pela operação do recalcamento. O infantil é o mesmo que a estrutura fundadora do aparelho psíquico. Já em 1909, na época do caso pequeno Hans, Freud recomendava a seus amigos observarem as crianças para compreenderem o funcionamento psíquico. Este projeto mostrou-se inviável porque, como exposto acima, tem-se claro hoje na clínica com crianças, e até mesmo com bebe s, que a construção psíquica está mais relacionada ao campo da leitura do que da observação. O aparelho psíquico se faz pelo enlaçamento do corpo no campo da linguagem e não pelas manifestações da sua funcionalidade. São portanto as marcas simbólicas que, ao serem impressas sobre o equipamento neuroanatômico do bebe, colocam uma refere ncia fundamental para o seu funcionamento e são os alicerces do corpo pulsional. Assim como ocorreu o distanciamento do uso do recurso da observação para a compreensão da construção do aparelho psíquico da criança, o distanciamento de uma clínica que conjugava o familiar e o analítico os pais e mães analistas, os analistas de crianças também distanciaram-se da ideia de centrar o debate sobre o lugar dos pais reais da criança no tratamento e, voltaram-se para esmiuçar teoricamente esse complexo binômio constituição psíquica-lugar dos pais. Na clínica, também houve o distanciamento dos pais-analistas: hoje em dia não se considera adequado um analista
História da psicanálise de crianças... 47 analisar ou seu próprio filho ou mesmo ser analisado pelo seu pai. Essa prática, comum nos primórdios da psicanálise deixou de existir, assim como não se considera mais viável a fórmula freudiana do função do pai-analista como condição para análise de uma criança. A separação das figuras reais dos pais como analistas propiciou um aprofundamento teórico do tema e trouxe conseque ncias para a clínica. Segue abaixo um breve panorama dos analistas de crianças pós Melanie Klein e Anna Freud para situarmos o lugar dos pais na análise de crianças. Na Inglaterra, terra de Melanie Klein, entre os homens analistas, os que mais se destacaram foram Sandor Ferenczi, August Aichhorn, Erik Erikson, René Spitz, Donald Winnicott e John Bowlby. E entre as analistas mulheres, Tustin e Malher, destacaram-se pelo estudo e clínica com os casos graves, especificamente com as crianças com autismo (Roudinesco, 1998). Nesta análise dos pontos pole micos da psicanálise de crianças, em relação ao lugar dos pais no tratamento de crianças, Donald Winnicott afastou-se de Melanie Klein ao defender a participação do ambiente na constituição do indivíduo e o papel dos pais no processo de maturação da criança. Winnicott também se opôs aos que se ocupavam mais em interpretar o conteúdo da brincadeira e propos o brincar compartilhado como atividade autônoma de produção de sentido (Camarotti, 2010). Na França, a psicanálise com crianças é representada por Serge Lebovici e René Diatkine, ligados à psiquiatria hospitalar, e pelas as pioneiras Eugénie Sokolnicka e Sophie Morgenstein, que foram seguidas pelas psicanalistas ligadas a Jaques Lacan: Fraçoise Dolto, Jenny Aubry, Ginette Raimbault, Maud Mannoni, Rosine Lefort e Robert Lefort. Os estudos de Gabriel Balbo e Jean Bergès sobre a etiologia do autismo e da psicose também tem contribuído para o tratamento psicanalítico de crianças (Roudinesco, 1998). Seguindo a análise do lugar dos pais no tratamento de crianças, Jacques Lacan (1938; 1969), ao considerar que o sintoma da criança corresponde ao sintoma familiar, principalmente ao fantasma materno, contribuiu para a nova
48 Maria Euge nia Pesaro prática de análise da criança. Para Dolto, o ser humano é um ser de filiação de linguagem e que se insere em um mundo transgeracional (Dolto, 1988; 1990). E, Mannoni concebe o atendimento de criança como um campo discursivo no qual se encontram o discurso da criança, dos pais e do analista (Mannoni, 1980). Escutar os pais não implica em analisá-los ou indicar à eles sua análise pessoal, mas sim recolocar sua mensagem no nível do tratamento da criança, pois o sintoma destes se apresenta alienado no sintoma da criança. Delineia-se uma via de leitura que considera que o que é relevante na clínica da relação entre pais e filhos é o que permite esclarecer o ponto em que a fantasmática da criança que se conecta com a fantasmática parental. Esta é a hipótese da intersecção, trabalhada por Lebovici, Mannoni ou Winnicott que, apesar de não compartilharem um mesmo referencial teórico, concordam com a interação fantasmática entre pais e filhos. Por isso, Mannoni alerta que na psicanálise com crianças, o analista trabalha com várias transfere ncias (Mannoni, 1980, p. 97), pois os pais de certa maneira estão sempre implicados no sintoma da criança. Portanto, trata-se de escutar em que lugar a criança está situada na fantasia do Outro, em que lugar a criança está situada no desejo dos pais, no discurso que estes mante m sobre ela. Na teoria psicanalítica francesa, até o fim dos anos 1950, a criança ocupa lugar de falo na estrutura: a criança ocupa determinados lugares em relação ao desejo dos pais, na direção da completude de uma falta, exercendo uma função fálica. Depois dessa data, quando Lacan já contava com o objeto a, passa-se a situar a criança como objeto a, como aquilo que do sujeito não é significante. Portanto, trata-se de escutar em que lugar a criança está situada na fantasia do Outro, em que lugar a criança está situada no desejo dos pais, no discurso que estes mante m sobre ela, o que justifica, nos momentos de impasse no tratamento, a importância do discurso dos pais no trabalho analítico com a criança. Caminhou-se portanto, para uma concepção que insere os pais na análise da criança como campo discursivo, considerando haver uma inter-relação entre o psiquismo parental e o da criança. A partir da leitura lacaniana,
História da psicanálise de crianças... 49 considera-se o sujeito emerge no ponto de articulação de uma cultura com um discurso e uma singularidade. Será a partir do lugar que o analista intervém que a criança poderá passar da posição de objeto que ela foi chamada a ocupar na fantasia do Outro para o acesso ao seu desejo na condição de sujeito. Bernardino afirma que esse novo abre a possibilidade, para a criança, de localizar seu desejo como podendo ser diferente do que interpretou como desejo do Outro, destacado deste. A criança fica aliviada do peso do gozo do Outro e pode largar seu sintoma e construir sua fantasia (2004, p. 63). Paradoxalmente, se o lugar que o analista ocupa pode levar a criança a ocupar outro lugar, ele também transformou o método analítico, como nos aponta Vorcaro: tratar uma criança implica virar o método analítico ao avesso: emprestar-lhe desejo, significantes e imaginário, para que ela possa experimentar e constatar a possibilidade de sair das determinações do campo da linguagem em que está imersa, através do seu ato de fala. Novas invenções da Psicanálise de Crianças Se a entrada da criança na clínica psicanalítica se deu pelo adulto, se a relação pais-criança marca e atravessa a criança, a clínica e o analista, não se trata mais de romper com a questão que o pai coloca o que significaria não incluir os pais no tratamento e, nem mesmo dar-lhe a primazia que significaria trabalhar só com os pais ou mesmo privilegiar os pais no tratamento. Trata-se hoje, fazer operar o pai na criança, ao entender o sujeito um efeito das incide ncias e articulações dos discursos sociais, das funções maternal e paterna e de uma singularidade apoiada numa corporalidade. Mas, se a clínica e a psicanálise de crianças deslocou-se das mães e dos pais analistas, sustenta uma especificidade na sua técnica e no seu método e tem um lugar estabelecido no corpus e na prática psicanalítica, conhecer e estar avisado sobre os efeitos da sua história, para a teoria e para
50 Maria Euge nia Pesaro a clínica, deve ser um dos saberes do analista de crianças. Pode-se dizer que hoje a clínica com crianças está mais debruçada nas tecituras específicas do sujeitocriança. Trata-se de um espaço para seguir e acompanhar a aventura, a criatividade, a descoberta do novo e a curiosidade pelos interesses dos outros, bases da construcão de um sujeito do desejo. Compreende-se portanto, a psicanálise de crianças sustenta a criança como um sujeito de linguagem e de fala. Como diz Dolto, o princípio de reconhecimento da criança enquanto sujeito está na base de um projeto que deve respeitar, escutar, e acolher a criança como um ser de desejo capaz de se exprimir (Dolto, 1988). Muitos desdobramentos e avanços na teoria, no método e na técnica decorreram desta sustentação da criança-sujeito. Destaca-se o especial lugar concedido às crianças que não falam ou habitam mal a linguagem, não estabelecem contato ou laço com os outros e apresentam comportamentos bizarros, incompreensíveis ou diferentes: as crianças que hoje são denominadas com Transtorno do Espectro do Autismo TEA. Ainda é bastante pole mica nas teorizações psicanalíticas a questão da posição da criança autista: a criança com autismo tem uma estrutura psicótica com manifestações autísticas? Ou estaríamos diante de uma estrutura psíquica diferente da psicótica? (Jerusalinsky, 1986; Bernarndino, 2004). Mesmo com a pole mica, ou apesar da pole mica, o que se propõe, em ambas as posições, é realizar um trabalho para retomar a estruturação de um sujeito. Ou seja, é o sujeito que se visa e que se considera importante, sustentando as suas maneiras de se fazer e existir. É portanto, da pespectiva do sujeito que se propõe agora o tratamento e, a clínica considera o estilo de cada um desses sujeitos que aparece no seu confronto com o campo da linguagem ou na sua relação com o Outro (Kupfer, Faria e Keiko, 2007). A partir dessa leitura, abre-se a pespectiva para uma clínica que ultrapassa a relação criança-pais-analista e inclui diversas modalidades de tratar o Outro da criança, com a criação de dispositivos institucionais que envolvem
História da psicanálise de crianças... 51 a criança numa rede ampliada de discursos e laços sociais. Esta é, por exemplo, a proposta de trabalho do Lugar de Vida que fundamenta-se na Educação Terape utica, uma ferramenta teórico-clínica que articula do campo da Psicanálise com o campo da Educação e sustenta o conjunto das práticas interdisciplinares de tratamento oferecidas na instituição (Kupfer, 2010). O Lugar de Vida propõe, como composição do tratamento institucional da criança, o tratamento da criança em grupos de educação terape utica heteroge neos, cujo princípio é que a diversidade é terape utica e o encontro das crianças em grupo potencializa e promove o estabelecimento de laços sociais. Faz parte dos grupos a oferta de atividades como música, escrita, conto de histórias, hora do lanche, jogos constitutivos e de eventos coletivos (festas comemorativas, passeios, acantonamento etc.), com o princípio de que a oferta da cultura e da circulação social sustentam o campo de linguagem. Os grupos de educação terape utica heteroge neos vem se mostrando uma estratégia que potencializa os efeitos terape uticos do tratamento porque o confronto com o outro que é ao mesmo tempo diferente e semelhante (porque também é um sujeito às voltas com o infantil) produz a colocação em jogo, na mesma cena, de processos identificatórios e de confronto com a alteridade que dão suporte para a construção da sua imagem corporal (Tiussi, 2012); de poder estar no lugar de ser demandado e responder a demanda porque esse outro que ainda tem uma resposta te nue quanto a castração, não o ameaça ou o invade e o faz poder desejar. Esta é uma das maneiras atuais de clínica psicanalítica com crianças que com o infantil, inventa e cria para dar um lugar de vida aos sujeitos. Referências BERNARDINO, L. Psicanalisar crianças: que desejo é esse? Salvador: Ágalma, 2004.
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