CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS (CEP)

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Transcrição:

CENTRO DE ESTUDOS PSICANALÍTICOS (CEP) Primeiro semestre Ciclo I 5ª feira de manhã Laura de Borba Moosburger Novembro de 2015

Confiança e suspeita: uma reflexão sobre o encontro psicanalítico Resumo: Tomando como ocasião de debate uma proposição filosófica de Martin Buber em sua obra Eu e Tu, busco neste texto refletir sobre a relação especial entre analista e analisando, levando em consideração a presença da confiança e da suspeita no horizonte de uma dialética entre a consciência e o inconsciente. A aproximação com os textos de Freud que tive oportunidade de ler recentemente, bem como uma série de discussões surgidas durante as aulas neste primeiro semestre do Ciclo I do curso, lançaram novo desafio e fôlego a uma questão que trago há muito tempo e que considero minha maior motivação pela psicanálise qual seja: em que consiste a relação tão própria e especial entre dois sujeitos humanos que ocorre na psicanálise? Em meus estudos de filosofia, sempre me instigou pensar a relação entre sujeitos, mas, agora, no universo psicanalítico, isso ganha uma feição toda própria. Como em toda relação entre sujeitos, a relação psicanalítica abrange duas frentes que me parecem intimamente imbricadas: a epistemológica e a ética. Primeiramente epistemológica porque postula a possibilidade de se conhecer a mente do sujeito e realizar um trabalho terapêutico com base em uma relação entre dois sujeitos, em que um ocupa a posição de analista e o outro a de analisando; em seguida, ética, na medida em que esse trabalho terapêutico envolve dois seres humanos em uma circunstância de extrema exposição, sendo que a exposição maior naturalmente tenderá a ser a do

analisando, pois é este quem traz ao analista as suas questões, angústias e fragilidades, dele esperando uma ajuda significativa. Uma proposição feita pelo filósofo Martin Buber pode nos ajudar a colocar a questão 1. Buber observa que o ser humano apresenta uma dupla atitude para com o mundo: eu-isso e eu-tu. A atitude eu-isso seria aquela em que tomo algo ou alguém como objeto de minha experiência, agir ou conhecer. A palavra isso pode ser substituída por ele ou ela, pois o ponto é que o eu aqui não interpela um tu, mas se refere a algo sempre na terceira pessoa, algo portanto que já se tornou objeto de sua consideração. Na relação eu-tu, o outro não é nunca um objeto, mas sempre um sujeito com o qual eu entro em relação enquanto sujeito, e no momento em que o tu se torna para mim um isso, um ele ou ela, ele deixa de ser um tu e eu volto à atitude eu-isso. Segundo Buber, embora essas duas atitudes sejam imprescindíveis ao homem, a segunda delas, a eu-tu, é a de maior relevância existencial e ética: ela fundamenta o mundo da relação, no qual um eu nunca toma o outro como um mero objeto, mas sempre como um sujeito que, portanto, também constitui um eu para ele próprio. É uma relação de via dupla, que flui de um eu para outro eu. No contexto da filosofia de Buber, essas duas atitudes aparecem como mutuamente excludentes; ou seja, no momento em que se toma algo por objeto, ele não existe como um tu, e quando se interpela um tu, este já não é em nenhum nível tomado como objeto. A psicanálise, ao contrário, parece-me trabalhar necessariamente nessas duas atitudes ao mesmo tempo. Ela propõe 1 Com isso busco apenas uma formulação que me parece frutífera, sem pressupor os desenvolvimentos que Buber atrela a essa proposição no todo de seu pensamento. Os aspectos aqui abordados encontram-se nas páginas iniciais de Eu e Tu, pp. 51 a 55.

um conhecimento sobre a estrutura e funcionamento do sujeito enquanto um aparelho psíquico, colocando-o portanto como um isso algo que se pode experienciar e conhecer com relativa segurança (penso aqui no aparelho psíquico em seu funcionamento, e não no inconsciente, que como aponta Freud não pode em última instância ser conhecido). Nesse nível, a relação do analista com o analisando permanece na esfera do eu-isso, em que o analisando representa para o analista um ele ou ela, não um tu. Mas, na prática clínica, a abordagem de um aparelho psíquico só ganha sentido na medida em que esse isso, ele ou ela se apresenta como um tu, pois é somente no diálogo especial entre analista e analisando que se realiza o verdadeiro trabalho. Assim, por mais seguro de si que esteja o analista ou a própria psicanálise enquanto corpo de conhecimento, nunca o conhecimento objetivo do analista deve atropelar as vivências e as necessidades que surgem do encontro, pois seu objeto de estudo está, precisamente, vivo como um sujeito que fala, sente, sofre e solicita ajuda: um sujeito que me interpela como um tu. Esta parece-me ser uma das principais razões pelas quais Freud salienta o quão incompleto deve necessariamente ser qualquer conhecimento da psicanálise (Freud, Conferência I, p. 25). Em suma, as coisas não se passam simplesmente como uma conversa entre dois aparelhos psíquicos, o do analista e o do analisando. Freud chama atenção para o vínculo emocional que se estabelece entre o psicanalista e o analisando, sobretudo por parte deste, e no qual reside uma das maiores dificuldades no ensino da psicanálise, comparativamente ao da medicina. Isso porque o campo da prática psicanalítica é impenetrável por

ouvintes, dando-se somente na relação exclusiva entre analista e analisando, que é emocional, subjetiva e baseada em um laço afetivo intransferível e inobservável por terceiros:... as informações que uma análise requer serão dadas pelo paciente somente com a condição de que ele tenha uma ligação emocional especial com seu médico; ele silenciaria tão logo observasse uma só testemunha que percebesse estar alheia a essa relação. Isso porque essas informações dizem respeito àquilo que é mais íntimo em sua vida mental, a tudo aquilo que, como pessoa socialmente independente, deve ocultar de outras pessoas, e, ademais, a tudo o que, como personalidade homogênea, não admite a si próprio. (Freud, Conferência I, pp. 27 e 28) Em outras palavras, pode-se dizer que o paciente não pode sentir-se como um isso, um ele ou ela, sendo antes imprescindível o sentimento de ser acolhido como um tu por um eu confiável e que ali se encontra para dar-lhe suporte humano e emocional na jornada de conhecer a si mesmo. O sentimento de confiança no analista é fundamental, de certa forma pode até se tornar mais importante do que a confiança em si mesmo, na medida em que se trata de relatar coisas que tem de ocultar não apenas dos outros mas muitas vezes de si mesmo, esperando que o analista possa ajudá-lo a interpretá-las. Nesse ponto, evidencia-se que a indagação sobre o que é a atitude euisso e a relação eu-tu só pode colocar-se no terreno da psicanálise no momento em que consideramos a dialética consciência/insconsciente como a arena em que se dá o encontro entre analista e analisando. Pois o que chamamos de eu (ou chamávamos antes de Freud), costumamos atribuir ao nosso eu consciente. Freud observa que uma das principais resistências que se ergueram contra a psicanálise reside na opinião corrente de que o psíquico/mental coincide

completamente com o consciente. Todos os seus esforços foram no sentido de compreender o fundo do nosso eu, o eu inconsciente. Isso traz duas questões para a discussão aqui levantada: 1) a relação eu-tu não é clara por si mesma, na medida em que o eu do analisando não se reduz ao que ele traz diretamente para o analista; 2) essa relação, em psicanálise, não pode ser idealizada, porque a existência e, segundo Freud, predominância do inconsciente sobre o consciente obriga o analista a trabalhar uma atitude crítica constante sobre si mesmo e seu analisando. Esses aspectos apontam para aquilo que Paul Ricoeur chamou de hermenêutica da suspeita : com Freud, a noção de interpretação como confiança no sentido manifesto da linguagem, baseada na inocência do Cogito cartesiano ( penso, logo sou ), cede sua vez a uma forma de interpretação desconstrutiva e reconstrutiva em que se buscam os duplos sentidos do discurso, os significados ocultos que se mascaram na superfície da linguagem consciente. É uma atitude de suspeita, empenhada em desvendar e desmascarar as ilusões, os desvios de sentido, deslocamentos, resistências e encobrimentos que se sobrepõem na fala às questões de fundo que são as mais importantes. Há, em suma, que se interpretar a fala, os sonhos, os sintomas e atos falhos do analisando, sem tomar seu sentido por simplesmente dado. Essa característica da suspeita coloca, do ponto de vista epistemológico, o problema da possibilidade de se conhecer o sujeito analisado; do ponto de vista ético, o problema de até que ponto se pode confiar em sua fala. Desse ponto de vista, surge um desequilíbrio considerável entre analista e analisando, pois na mesma medida em que se requer do analisando uma confiança no

analista, do analista requer-se uma atitude de suspeita frente ao analisando. Mas penso que se a atitude da suspeita tornar-se uma constante rígida, corre-se o risco de não se estabelecer um verdadeiro diálogo, e a própria escuta, que se esmera em escutar bem justamente ao suspeitar, poderá se converter em uma surdez. Parece-me, assim, fundamental uma atitude de suspeita em relação também à suspeita, e uma abertura à possibilidade de o analisando ser capaz tanto no que diz respeito ao seu emocional quanto à sua inteligência e honestidade de dizer algo de modo muito próximo ao que de fato lhe acontece. É claro que isso depende de uma série de coisas, sobretudo da capacidade de olhar para si mesmo. E o analista também está ali justamente para ajudá-lo nesse sentido; como diz Freud, com a psicanálise surgiu a técnica de ensinar o paciente a abandonar toda a sua atitude crítica e fazer uso do material que era então trazido à luz para o fim de revelar as conexões que estavam sendo buscadas, e chegou mesmo a chamar de regra técnica fundamental do procedimento de associação livre o pedido de que o paciente se coloque na posição de um auto-observador atento e desapaixonado, simplesmente comunicando o tempo inteiro a superfície de sua consciência e, por um lado, tornando um dever a mais completa honestidade, enquanto que, por outro lado, não retendo da comunicação nenhuma idéia, mesmo que (1) sinta ser ela muito desagradável, (2) julgue-a absurda ou (3) sem importância demais ou (4) irrelevante para o que está sendo buscado. Descobre-se uniformemente que justamente as idéias que provocam as reações por último mencionadas são as que têm valor específico para a descoberta do material esquecido (Freud, Dois Verbetes de Enciclopédia: Psicanálise, p. 250).

É preciso, portanto, um trabalho em conjunto, em que o analisando se perceba na posição de analista de si mesmo e aprenda a assumir essa posição, com a ajuda de seu analista. Outra questão que se coloca é que, como em termos de funcionamento psíquico o analista é igual ao analisando, também ele apresenta suas resistências e encobrimentos. E estes a não ser que idealizemos a figura do analista a tal ponto que o julguemos capaz de se tornar uma consciência completamente vazia e neutra irão, em algum nível e em alguma medida, afetar as suas interpretações e a condução do tratamento, de maneira muitas vezes inconsciente. Daí a importância de o analista fazer análise com outro analista, e permanentemente consigo mesmo. Também ele deve confiar em si mesmo desconfiando. Nessa relação, em que se fazem necessárias ao mesmo tempo a confiança e a suspeita, vislumbro uma autêntica relação eu-tu, mas uma relação eu-tu que não é simples, não é unívoca, porque cada sujeito está, no mínimo, dividido em dois: consciente e inconsciente. Daí surgem problemas epistemológicos e éticos muito próprios à psicanálise. Por fim, gostaria de apontar alguns problemas que me parecem advir daí. Sendo fundamental que o paciente se sinta acolhido em sua subjetividade, o excesso de desconfiança pode gerar fatores que dificultem a comunicação, como um reflexo defensivo no paciente, conduzindo a interpretações equivocadas por parte do próprio analista, pois, ao desconfiar

excessivamente, ele pode gerar uma decepção, obscurecimento e postura defensiva no analisando, que o afasta ainda mais, em vez de o aproximar. Um outro problema reside no fato de se tentar interpretar tudo psicanaliticamente; por exemplo, tomando-se como sintomas neuróticos psicossomáticos determinados sintomas que podem ter origem em doenças orgânicas (não interpretáveis ou psicanalizáveis ), inclusive genéticas. Neste caso, a difícil situação de atravessar uma doença pode se tornar ainda mais pesada para o paciente, porque o analista verá a doença como efeito de certos sentimentos, quando na realidade, devido à força de perturbação da moléstia física, ela pode ser a causa deles. Em termos muito práticos, um dos problemas causados por essa superinterpretação é também o rumo a ser tomado no tratamento. Por sua vez, o psicanalista habita um lugar desconfortável e instável, no qual deve estar pronto a duvidar, mas ao mesmo tempo precisa dar credibilidade ao paciente, sem o que, na verdade, o trabalho de análise seria impossível e sem sentido. Os problemas que surgem da questão proposta, é claro, são muitos, pois a natureza da relação entre analista e analisando atravessa todos os temas da psicanálise, na medida em que fundamenta tanto a teoria, na qual o sujeito toma a si mesmo como objeto enquanto sujeito; quanto na prática, da qual depende o sucesso da terapia.

Referências bibliográficas FREUD, Sigmund. Conferência I. Obras completas, vol. XV. Rio de Janeiro: Imago, 1996. FREUD, Sigmund. Dois Verbetes de Enciclopédia: Psicanálise. Obras completas, vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1996. BUBER, Martin. Eu e Tu. São Paulo: Centauro, 2013. SILVA, Maria Luísa P. F. Hermenêutica da suspeita. Disponível em: http://periodicos.uern.br/index.php/trilhasfilosoficas/article/viewfile/13/13. Acesso em 27/10/2015.