A (DES)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NEGRO NO POEMA VELHO NEGRO DE AGOSTINHO NETO RESUMO

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1º Período º Período º Período

Transcrição:

A (DES)CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE DO NEGRO NO POEMA VELHO NEGRO DE AGOSTINHO NETO Marly Augusta Lopes Magalhães 1 Celiomar Porfírio Ramos 2 RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar a constituição da identidade do negro com base no poema Velho Negro, do angolano Agostinho Neto. Entendemos que o poema em questão reflete, em certa medida, a (des)construção da identidade negra, ocasionada por questões relacionadas à opressão que é fruto da escravização. Para isso, utilizamos a teoria de Silva (2000), Hall (1992), que discutem sobre identidade e Bhabha (1998), que aborda a diáspora. Palavras-chave: identidade, poema, hibridização. Um breve panorama sobre cultura e identidade Se analisarmos, atualmente, nenhuma cultura está livre de influenciar e ser influenciada por outra. É possível afirmar, com base em Canclini (2013), que a cultura, hoje, pode ser considerada híbrida. Vale ressaltar que tal processo não é a mistura de duas ou mais culturas, mas, sim, processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas que existem de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas (CANCLINI, 2013, p. 09). 1 Doutora em Ciências Linguísticas, professora Adjunto/ICHS/CUA/UFMT. Pesquisadora do CNPq e Coordenadora do Grupo de Pesquisa - Fronteiras, Culturas e Identidades: espaço de diálogo com os povos Indígenas Araguaia/Xingu. Coordenadora do Comitê de Ética em pesquisa com seres humanos. E-mail: professoramarlyaugusta@gmail.com 2 Aluno de mestrado no Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT); Pós-Graduado em Literatura e História Interfaces Regionais pela UFMT; Formado em Letras e Comunicação Social - Jornalismo pela UFMT; Apoio: CAPES. E-mail: celiomarramoss@hotmail.com Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 229

Pode-se dizer que há na hibridização uma junção de duas ou mais culturas, ocasionando não uma mistura, mas uma terceira cultura e/ou identidade, o que Bhabha (1998) denomina de terceiro espaço. Muitas vezes, a cultura era compreendida como pura. Em tese, não sofria influências de outras. Entretanto, com a percepção de hibridismo e, consequentemente, o surgimento do terceiro espaço coopera para desmitificar a pureza cultural, conforme afirma Canclini (2013). Esse processo de hibridização influencia de maneira significativa no que diz respeito à identidade, a fim de reestruturá-la, pois, conforme Bhabha (1998), ao tratar sobre a cultura, hoje vivemos no além, considerando a hibridização, estamos em constante reestruturação da identidade: O além não é nem um novo horizonte, nem o abandono do passado... [...] encontramo-nos no momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferentes identidades, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão. Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de direção, no além : um movimento exploratório incessante [...] (BHABHA, 1998, p. 19). A partir do pressuposto de Bhabha, somos levados a refletir que a identidade e a cultura de um povo não são algo estanque, mas estão num processo de constante reestruturação e/ou negociação, ora de maneira consensual, ora de maneira conflituosa. Silva (2000, p. 10) afirma que a construção da unidade é simbólica e social e compreende, ainda, haver um embate com o intuito de afirmar as diferentes identidades que como resultado tem, muitas vezes, conflitos entre grupos. Considerando tal afirmativa, a autora nos leva a questionar sobre a identidade constituída nos poemas de Agostinho Neto, mais especificamente, no poema Velho Nego, do livro Sagrada Esperança (1974), para compreender como a hibridização entre os europeus e os angolanos influenciou na construção da nova identidade do negro, considerando o fato de que este, a partir desse contato, encontra-se num entre-lugar. A hibridização do negro análise do poema Velho Negro, de Agostinho Neto Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 230

Ao analisar o poema Velho Negro, de Agostinho Neto (1974), é possível compreender certo questionamento sobre identidade, mais especificamente, sobre como ela é constituída, a partir da hibridização. Criando, assim, um terceiro espaço, considera-se que, a partir da interação dessas duas culturas, é criada uma nova percepção. Bhabha (1990), ao tratar sobre o terceiro espaço, afirma que: [...] para mim a importância do hibridismo não é para ser confiável para traçar dois momentos originais dos quais emerge o terceiro. Este terceiro espaço desloca as histórias que o constituem, e estabelece novas estruturas de autoridade novas iniciativas políticas (BHABHA, 1990, p. 211, tradução nossa). Partindo do título do poema Velho Negro, considerando a hibridização, há um confronto entre as identidades que cercam a percepção dos negros, pois se há um velho negro é possível entender que há, também, um novo, sendo ele fruto da hibridização cultural, pelo fato de ele ser fruto da junção das duas culturas negra e branca/europeia. Entende-se que esse confronto se dá entre o título do poema e o poema. Isso é evidenciado no fato de o título apresentar um negro sem influência da cultura do branco/europeu, no qual era, em termos, livre e, por isso, não era subjugado a eles. Já, o poema apresenta o terceiro espaço, a nova cultura fruto da hibridização, na qual o negro encontra-se subjugado. O título do poema nos remete à ideia de renovação, há um surgimento de um novo que até então era subjugado, considerando as descrições feitas pelo eu poético no poema Velho Negro. Trata-se de um grito de libertação, mostrando que o negro vivia sob jugo, mas que, agora, tem novas perspectivas. A primeira estrofe do poema apresenta as consequências da hibridização que ocasionou uma nova identidade do negro: Vendido e transportado nas galeras vergastado pelos homens linchado nas grandes cidades esbugalhado até ao último tostão humilhado até ao pó sempre sempre vencido (NETO, 1985, p. 26). Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 231

Na estrofe citada, observa-se que a percepção cultural do negro foi alterada, em virtude das mudanças ocorridas pelo contato com o branco/europeu criando, assim, uma nova identidade. Isso fez com que ele perdesse seu posto de ser humano, e se tornasse um objeto. É possível averiguar se observarmos os seguintes versos da estrofe citada: vendido/ e transportado nas galeras. Outro fator que corrobora para o fato dele ser visto como subumano é o terceiro verso, da estrofe exposta, que diz: vergastados pelos homens. Por meio desse verso, observa-se que o negro era açoitado como animais irracionais. Além disso, o discurso presente nessa estrofe nos remete à ideia de que os negros não podem ser considerados como homens, mas como seres subjugados aos homens, aos brancos/europeus, pois eles são capazes de raciocinar e, por tal motivo, dominar. Na estrofe seguinte linchado nas grandes cidades pode-se compreender que os negros se encontram na diáspora, ou seja, saíram de seu lugar de origem para uma nova terra criando, assim, uma nova identidade. Segundo Brah (1996), a diáspora é, na realidade, uma fronteira entre a inclusão e a exclusão. Dessa forma, a existência diaspórica designa um entre-lugar, que tem como característica a desterritorialização e a (re)territorizalização. A diáspora, aqui, é tratada de forma negativa, pois está ligada ao deslocamento histórico forçado, o que, segundo Izarra (2012, p. 11), ocasiona vitimização, alienação e perda. Brah (1996, p. 181), ainda tratando sobre diáspora, afirma que se refere ao espaço da intersetorialidade da fronteira e limite, e des/localização como um ponto de confluência de processo político, cultural, psíquico e econômica. Ele aborda a condição geral da cultura, da economia e da política, como um local de "migração" e "viagens de", que problematiza a posição de sujeito do "nativo". As grandes cidades, considerando o contexto histórico-social, não eram o locus, no qual eles viviam. Porém, dado o contato com o branco/europeu, passaram a viver num entre-lugar, pois não estavam em seu lugar de origem, mas também não eram parte desse novo espaço que estavam vivendo, que eram as grandes cidades. Bhabha (1998), ao tratar do entre-lugar, afirma que é produzido a partir da tensão entre as diferenças culturais: Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 232

Esses entre-lugares fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação singular ou coletiva que dão início a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboração e contestação, no ato de definir a própria ideia de sociedade (BHABHA,1998, p. 19). Observa-se que, gradativamente, o negro foi perdendo seu valor. Nota-se isso nos seguintes versos: esbugalhado até ao último tostão/humilhado até ao pó. A perda da identidade e a hibridização são consequências da relação com o branco. O verso esbugalhado até o último tostão, corrobora para sustentar a percepção de que os negros eram vistos como objeto de troca, mais especificamente, agora, como moeda, que foi usado até não ter mais condições de oferecer nada. O contexto histórico-social da produção reflete no poema, pois os negros foram vistos como objetos que serviram de mão de obra escrava para seus colonizadores. Outro fator relevante nesses versos, em especial, no humilhado até o pó demonstra que os negros foram usados e, nas grandes cidades, passaram a não valer nada. O termo até o pó nos remete à sua vulnerabilidade. Complementando tal visão, temos no último verso da estrofe uma constatação: sempre sempre vencido. Observa-se que a instância poética enfatiza, por meio do sempre sempre, que há muito os negros vêm sendo vencidos. Refletindo, também, que por mais que eles tentem se libertar serão subjugados. A estrofe seguinte afirma que o personagem em questão é forçado a obedecer a Deus e aos homens: É forçado a obedecer A Deus e aos homens Perdeu-se (NETO, 1985, p. 26). Algo que merece ser abordado com maior ênfase e que dialoga com a primeira estrofe é o fato de o negro não ser considerado homem. Isso é comprovado quando é citado que é forçado a obedecer aos homens. Aqui, o homem é o branco e encontra-se ao mesmo patamar da divindade Deus, pois seus nomes encontram-se lado a lado. Cooperando para o fato de que o negro é Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 233

subjugado ao homem, percebe-se que não é mencionada a palavra negro, nessa estrofe, pois ele não merece estar ligado no mesmo patamar que Deus e os homens. Para finalizar a estrofe, temos outra constatação Perdeu-se. Os versos acima nos fazem refletir que o negro está desnorteado, ou seja, não está em seu local, em sua terra, suas raízes e, consequentemente, encontra-se perdido e, também, pode ser compreendido que perdeu sua identidade, que agora se tornou híbrida. Além disso, é possível observar que o branco é eximido de toda a culpa, pois o verbo flexiona-se para que seja entendido que a culpa é do negro de estar perdido. Segundo Clifford citado por Izarra (2012), uma das características do sujeito quando está em diáspora é a perda da esperança. Um fator importante é que o homem se exime de qualquer culpa no que diz respeito à situação que o negro está enfrentando, pois o verbo nos remete à ideia de que ele perdeu-se por conta própria, sem influência e/ou motivação de outros e, agora, encontra-se sem norte. Na estrofe seguinte temos: Perdeu a pátria E a noção de ser (NETO, 1985, p. 26). A estrofe, por meio de sua composição, demonstra, em apenas dois versos, que os negros perderam duas coisas que são complementos uma da outra e, extremamente, relevantes à pátria e à noção de ser, ou seja, perdeu a sua identidade. Sendo assim, pode-se compreender, com base em Hall (1992, p. 10) que a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes. Os negros, em virtude dessa desestruturação de sua identidade, fruto da hibridização, vivem agora no entre-lugar, pois não sentem as grandes cidades como o seu locus, mas, também, não pertencem mais a sua pátria. A estrofe seguinte corrobora com algumas perspectivas citadas, dentre elas, a ideia de que o negro é um ser subumano e o fato de encontrar-se num processo de reconstrução de sua identidade: Reduzidos a farrapo Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 234

macaquearam seus gestos e a sua alma diferente (NETO, 1985, p. 26). Apesar de estar num processo de reconstrução de identidade, vimos que o diferente, ou seja, a identidade do negro, quando vista pelo outro é tida como algo inferior. Assim, é compreendido em virtude do segundo verso da estrofe macaquearam seus gestos e a sua alma/diferente. O termo macaquearam iguala as características e costumes dos negros aos dos macacos, logo, coloca-os num patamar de irracionais. Vale ressaltar o que a instância poética coloca como gestos e a alma/diferente é, na realidade, a essência do povo negro, a identidade e diz respeito aos costumes, crenças e características que, até então, não haviam sofrido a hibridização com relação aos costumes dos homens. Há, ainda, uma oposição interessante nessa estrofe que merece ser mencionada, as palavras macaquearam versus alma, aqui são compreendidas como oposição, pois elas são apresentadas como características dos negros, pois ora ele é colocado como subumano macaco não podemos rejeitar que as circunstâncias os colocaram subjugados aos homens brancos; e ora é colocado como humano, pois tem alma. Ao colocá-lo como humano, entende-se que há uma manifestação, por parte do eu poético, pois, ao afirmar que o negro é uma alma diferente, o iguala ao homem branco, porém, demonstrando que possui identidade, ou seja, características que os diferem do outro, nesse caso o branco. Na estrofe seguinte temos, novamente, a coisificação do negro: Velho farrapo negro perdido no tempo e dividido no espaço! (NETO, 1985, p. 26). No verso anterior, já havia sido mencionado o termo farrapo e volta a ser mencionado, enfatizando a desvalorização sofrida pelos negros. É interessante observar que há a união de palavras que são, em termos, semanticamente parecidas e/ou remete a um significado, ora, depreciativo e desvalorizado: velho, farrapo, negro. Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 235

Observa-se, ainda, que há uma queda gradativa até chegar ao estado mais vil, pois começa com velho o que já nos remete à ideia de algo que perdeu seu valor. Posteriormente, é agregado outro termo que pode ser considerado, nesse contexto, depreciativo, farrapo, e que vem reforçar a ideia de desvalorização e, por fim, é colocado o termo negro, como se fosse a última instância no que diz respeito ao desprezo. A penúltima estrofe do poema, em análise, pondera: Ao passar de tanga com o espírito bem escondido no silêncio das frases côncavas murmuram eles: Pobre negro! (NETO, 1985, p. 26). Nessa estrofe, em especial no primeiro e segundo versos, há, claramente, oposição de ideias, tanga versus bem escondido, pois a tanga é uma vestimenta pequena que deixa o corpo quase todo à mostra. Apesar de o negro ter o corpo quase desnudo, no poema, a voz poética afirma que sua alma está escondida. Sendo assim, apesar da influência do homem branco, da hibridização, são mantidos traços característicos da cultura negra, ora reveladas ora escondidas. Em virtude de ser subjugado pela sociedade branca, apesar de explorá-lo, algumas vezes murmura Pobre negro. Nota-se que o ato de murmurar é realizado quando não se quer ser ouvido por todos, refletindo, assim, a consciência referente às atrocidades sofridas pelos negros. Porém, logo esquece, voltando a explorá-lo. Na última estrofe do poema temos: E os poetas dizem que são seus irmãos (NETO, 1985, p. 26). Ela é composta por apenas um verso. Afirma que os poetas dizem que são seus irmãos. Tal assertiva nos faz refletir sobre a situação dos poetas que são considerados, com base no poema, pobres como o negro. Algo interessante ao inserir os poetas na poesia é que, nesse contexto, eles são negros e, consequentemente, já carregam consigo o estigma de pobre negro. Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 236

O que difere o poeta dos demais é o fato de ele ter voz, enquanto no decorrer do poema vimos que o negro não tem. Sendo o poeta irmão do sem voz, ele passa a compartilhar sua voz, por meio de seus poemas, aos negros que estão à margem, procurando criar, assim, um grito de libertação das amarras da exploração, da humilhação, da perda da identidade e da pátria e, consequentemente, lutando para a construção de uma identidade. Dessa maneira, podemos afirmar que há uma crise de identidade. Hall (1992, p. 2) compreende que essa crise é uma das características da sociedade globalizada, pois as velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo social, estão em declínio fazendo surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado. E os sujeitos apresentados no poema de Agostinho Neto estão neste entre-lugar com sua identidade desconstruída. Como havíamos frisado acima, agora, é necessário lutar para a construção de uma nova identidade. Entretanto, esse sujeito do mundo globalizado, além de estar num processo de crise de identidade em virtude da hibridização, procura, neste momento, uma identidade. Essa procura, segundo Hall (1992, p. 2) é [...] uma celebração móvel : formada transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. Considerando o fato que vivemos inseridos num mundo pós-moderno e recebendo diferentes influências, a nossa identidade jamais será permanente, ao contrário, como afirma Hall (1992), será uma celebração móvel. Referências BHABHA, Homi. The Vernacular Cosmopolitan. Ed, Ferdinand Dennis and Nassem Khan. London: Serpent s Tail, 2000.. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998. BRAH, Avtar. Cartographies of Diaspora: Contesting identities. London and New York, 1996. Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 237

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Keywords: identity, põem, hybridization. Recebido em 03/10/2015. Aprovado em 11/12/2015. Estudos Literários, Sinop, v. 9, n. 17, p. 229-239, jan./jun. 2016. 239