OS PRÉ-SOCRÁTICOS E A FÍSICA DO INFINITO Tarso Ferreira Alves Professor de Filosofia do Instituto Federal Fluminense tarsofalves@gmail.com Resumo: Para traduzir de um modo filosófico-científico os princípios que racionalmente explicam a dinâmica de organização do mundo natural, da physis, os pré-socráticos privilegiaram uma visão sobre o infinito.o objetivo deste artigo é mostrar, dentro da tradição inicial do pensamento pré-socrático, que é o da escola jônica, como a ideia do infinito aparece numa dimensão física, cíclica, e imanente à própria natureza dentro da doutrina destes primeiros pensadores. Palavras-chave: infinito, pré-socráticos, física (physis). Para traduzir de um modo filosófico-científico os princípios que racionalmente explicam a dinâmica de organização do mundo natural, da physis, os pré-socráticos privilegiaram uma visão sobre o infinito. De algum modo, entre as diferentes teses desenvolvidas por estes primeiros pensadores- Tales afirmou que o princípio da natureza é a água, Anaximandro o próprio ilimitado e infinito (ápeiron), Anaxímenes o ar infinito (pneuma ápeiron) e Heráclito o fogo-movimento- parece residir a ideia de um universo sem começo, meio e fim. O objetivo deste artigo é mostrar, dentro da tradição inicial do pensamento pré-socrático, que é o da escola jônica, como a ideia do infinito aparece numa dimensão física, cíclica, e imanente à própria natureza dentro da doutrina destes primeiros pensadores. Pode-se pensar acerca da compreensão da existência de um infinito físico principalmente na escola jônica, através de Tales de Mileto, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito. De algum modo, parte-se do pressuposto que estes pensadores abraçaram uma visão mais concreta da natureza através do assinalamento do princípio que constitui todas as coisas. Além de deduzirem um princípio material, tomaram o mesmo como algo que se estende a todo o existente. Tales de Mileto toma a água como este princípio originário. A possibilidade de
se pensar a água como um elemento primeiro parece também designá-la como elemento único. Ou seja, de que tudo se origina de uma única coisa. Além do mais, de que todas as formas de manifestação material se constituiriam como um estado diferenciado da própria água. Neste sentido, parece que a água é um substrato que sempre existiu em seus diferentes modos de manifestação na natureza. Ela é um elemento contínuo, imanente e por sua vez subjacente aos outros estados de manifestação da matéria. Conforme Hegel 1, a água não se reduz a uma existência singular destituída de autonomia, mas a uma instância universal na qual este mesmo elemento se expressa em toda e forma de vida, independentemente da situação, do espaço e do tempo. Do ponto de vista da natureza da matéria, Aristóteles 2 defende em sua Metafísica a existência de um processo contínuo de geração e corrupção daquilo no qual todos os seres são constituídos. No entanto, a substância que reside por traz deste processo jamais perece. Mesmo que as coisas se corrompam e se dissolvam na natureza, o substrato que as constitui assume outro nível de organização de modo que a natureza subsiste sempre. Dentro desta mesma argumentação, Aristóteles considera que, quando Tales disse que o princípio é a água, ele observou o fato de que a semente de todas as coisas é úmida. A água seria então a causa de todas as coisas úmidas, tanto quanto a matéria infinita que permanece em todo o processo de mudança na natureza. A água sempre existiria, mudando apenas as suas afecções. Pode-se pensar a partir da própria observação, que o estado sólido, líquido e gasoso da matéria, de um modo geral, seria a expressão elementar da própria água em seus diferentes estados. Então, a ideia de um infinito físico estaria presente na leitura que Aristóteles faz sobre a afirmação de Tales de Mileto. Tanto quanto Aristóteles, Simplício 3 aponta para a mesma direção. Em seu ponto de vista, afirmar um único elemento como a causa ou princípio de tudo é dar ao mesmo uma extensão ilimitada. Na natureza, tudo que é constituído de vida é úmido, de tal modo que as coisas que morrem ficam ressecadas. De Tales, pouco se sabe, visto ter sobrado do mesmo poucos relatos 1 TALES DE MILETO. Coleção os pensadores, (Hegel - crítica moderna). Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. pg. 9. 2 ARISTÓTELES, Metafísica, I, 3. 983 b. Trad. do grego de Vicenso Cocao. São Paulo. Abril Cultural, 1978. 3 TALES DE MILETO. Coleção os pensadores, SIMPLÍCIO, Física, 23, 21 (DK 11 A 13). Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. Pg.7.
doxográficos. De qualquer forma, se ele é um iniciador de uma tradição, certamente pode-se perceber a estrutura de um pensamento comum através de seus contemporâneos como é o caso do seu discípulo direto, Anaximandro. Este é taxativo ao mencionar de forma direta, objetiva, o infinito através da sentença que dele restou, e que tem entre uma das traduções a do filósofo alemão Nietzche, segundo Heidegger 4 : "De onde as coisas têm o seu nascimento, para lá também devem afundar-se na perdição, segundo a necessidade; pois elas devem expiar e ser julgadas pela sua injustiça, segundo a ordem do tempo". O ápeiron, segundo Anaximandro, é a expressão de um eterno movimento de nascer e sucumbir, onde a justiça é a superação da finitude e transitorietade das coisas. A sentença de Anaximandro possui uma dimensão científica que reflete a ideia do infinito manifestado no próprio modo de ser do mundo físico. Ele fala de um jogo da natureza e da própria matéria onde a injustiça esta presente no que tem limite. Mas que este limitado tem sua origem no que não tem limite, num jogo de contrários onde só há corrupção e morte onde há nascimento. Este jogo de forças contrárias da natureza se realizaria num eterno movimento, o que expressa uma relação de proximidade de Anaximandro com Heráclito. Se as coisas surgem e se corrompem, se elas participam da luta entre elementos contrários como calor e frio, quente e úmido, elas estão subordinadas a uma lei de movimento. Esta lei, por sua vez, é que permite ver nas coisas sua transitoriedade e limitação. Se a lei do movimento permite então ver a transitoriedade e limitação das coisas, só pode ser pelo razão de sua eternidade e infinitude. Mas como se daria este eterno movimento? Um tentativa de pensá-lo seria a seguinte: nos animais, nas plantas e em todas as espécies subsistentes se observa a incidência de forças externas e naturais que funcionam como energia e alimento para a vida que é gerada e corrompida em seu tempo. As plantas, para germinarem, precisam da luz do sol tanto quanto da água da chuva, além dos elementos existentes no próprio solo. Neste jogo de forças contrárias a planta sustenta transitoriamente a sua vida, pois estas forças aparecem como promotoras do movimento em que a planta nasce, cresce e morre. Se o movimento de surgimento e 4 ANAXIMANDRO. Coleção os pensadores. Martin Heidegger (A Sentença de Anaximandro). Trad. de Ernildo Stein. São Paulo. Abril Cultural, 1978. Pg. 19.
corrupção das coisas da natureza se dá através da presença de fenômenos naturais como sol e chuva, calor e frio, seco e úmido, é porque tais fenômenos estão inseridos na ordem do tempo. O calor, em seu contato com o frio, deixará de ser calor para se transformar numa temperatura mediana, o que permite a sobrevivência dos organismos num certo ambiente. Mas forças contrárias que incidem uma sobre a outra também incidem sobre si mesmas na busca de equilíbrio. Uma semente precisa negar a si mesma para gerar o broto e se tornar árvore. Este equilíbrio, por sua vez, também irá se dissolver na separação destes elementos de forma a fazer um retorno ao seu lugar de origem. A semente gera a árvore e a árvore gera os frutos que se transformarão novamente na semente. Há uma ciência do infinito que se processa na natureza e na matéria, em Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito, que se desenvolve de maneira continuamente cíclica. Conforme a sentença de Anaximandro, as coisas nascem para morrer e morrem para nascer no eterno e infinito ciclo do tempo, tal como afirma BRUN: Mas no oriente e na Grécia o tempo era concebido à maneira de um círculo. A repetição regular do dia e da noite, das estações, como das posições dos planetas e das estrelas parecem impelir a ver no tempo uma espécie de ciclo, o que explica as imagens muito conhecidas do círculo do Zodíaco e da roda das existências. 5 A ideia de uma física do infinito parece residir, em Anaximandro, num infinito temporal, onde a natureza se processa gerando e se corrompendo ciclicamente. A ordem do tempo abraça todas as coisas e dá as mesmas a condição de sua renovação. Esta leitura sobre um infinito temporal e cíclico é discutida por Mondolfo 6 quando trata de Anaximandro. De algum modo, pode-se pensar que o tempo eterno e infinito é aquele que determina materialmente o modo de ser e acontecer das coisas da natureza. Deste ponto de vista, em Anaximandro, o infinito não diz respeito apenas ao que antecede e sucede o processo de geração e corrupção das coisas. Mas que o infinito estaria presentificado no próprio processo. Isto é, o infinito se expressa no antes, durante e após o processo de nascer e sucumbir das coisas da 5 BRUN, Jean. Os Pré-Socráticos. Edições 70, Lisboa, pg. 49. 6 MONDOLFO, Rodolfo. El Infinito en el Pensamento de la Antiguedad Clássica. Buenos Aires. Eudeba, 1971. Pg.52.
natureza. Anaxímenes, discípulo de Anaximandro, toma como princípio da natureza o ar infinito (pneuma ápeiron). Este estaria em todos os lugares, penetrando a tudo. Há uma conotação física do ar infinito como elemento único de reunião e separação dos corpos. O ar fornece a vida pois a natureza vive na medida que respira e sopra, que se enche e se esvazia tal como o organismo humano que é mantido por este sopro que é a alma 7. As almas que habitam os corpos de modo a lhes dar vida são a maior expressão desse ar infinito. O próprio Heráclito, que toma a natureza como um processo de contínua mudança, expressa este de vir a ser das coisas através do fogo. A ideia de uma física do infinito parece ser muito bem expressa através do seguinte fragmento: "Este mundo, o mesmo de todos os (seres), nenhum deus e nenhum homem o fez, mas era, é e será um fogo sempre vivo, acendendo-se em medidas e apagando-se em medidas 8. O infinito esta expresso no fragmento ao também denotar a ideia de um eterno movimento. Mesmo que sua teoria do movimento esteja traduzida pela concretude do fogo inerente a todas as coisas físicas, não existe um começo, meio e fim de manifestação da matéria e do seu substrato. Nada é. Tudo está, infinitamente, se tornando. O lógos é o que governa a tudo, residindo de forma imanente na natureza, num jogo de forças contrárias que, no eterno movimento, vai produzindo harmonia e equilíbrio: Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar tudo é um 9. O logos que a tudo governa é o que dá razão de ser e existir das coisas através do eterno movimento que as ordena e sustenta na negação do caos. Segundo Mondolfo 10, Heráclito fala sobre uma unidade do mundo que é a mesma para todas as coisas existentes, no passado, presente e futuro. De que existe um princípio universal presente em tudo. Ora, de algum modo, este princípio universal é ilimitado e infinito, pois o que irá eternamente permanece em todo o eterno processo de mudança das coisas é o próprio fogo-movimento. Para Heráclito, no estado de infinita mudança impera numa tensão de forças 7 ANAXÍMENES. Coleção os pensadores, (Hegel - crítica moderna). Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. pg. 52. 8 HERÁCLITO. Col. Os Pensadores. Frg. 30. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. 9 Ibid. Frg. 50. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. 10 MODOLFO, Rodolfo. El Infinito en el Pensamento de la Antiguedad Clássica. Buenos Aires. Eudeba, 1971.Pg. 58.
opostas que sustentam e equilibram a natureza. Nesta, há um eterno conflito entre os elementos onde forças contrárias geram a harmonia. O contrário em tensão é convergente e dos divergentes nasce a mais bela harmonia, e tudo segundo a discórdia 11. Esta harmonia está expressa como unidade dos opostos. O infinito se manifesta aí como o poder e capacidade a que natureza tem de eternamente se reordenar. As coisas se separam para estabelecerem fisicamente uma união ou unidade, tal como o calor e o frio. Esta reunião que constitui uma unidade permite que os organismos vivos e o próprio homem sobrevivam dentro de um ambiente. Se este fosse absolutamente quente ou gelado, nossos corpos queimariam ou congelariam, de modo que a própria vida se tornaria inviável. Curiosamente, este reordenamento se manifesta em Heráclito também através de um tempo cíclico. Segundo Mondolfo: con Heráclito la ciclicidad llega a ser el fundamento y la esencia misma de la infinitud temporal, concebida siempre como interminable sucesión de vicissitudes opuestas 12. Tal afirmação se sustenta no próprio fragmento de Heráclito quando afirma: A rota para cima e para baixo é uma e a mesma. De que, infinitamente na dimensão espacial e temporal do círculo o ponto de chegada é um novo ponto de partida e vice-versa. A natureza assim se expressa fisicamente infinita tal como no ciclo das estações do ano, na cheia e vazão das marés, no ciclo menstrual da mulher, no movimento dos planetas em torno do sol. Parece não ser por acaso que Aristóteles chama estes primeiros pensadores de physikói, ou seja, físicos. A compreensão do princípio originário, ao se dar a partir de um elemento físico, comporta também a compreensão de um espaço e tempo objetivos, exteriorizados nas coisas. Parece existir por trás desta leitura de mundo não apenas uma visão contemplativa, observacional da natureza. Mas uma visão que é ao mesmo tempo de caráter científico e holístico, que se ampara num certo tipo de mecânica de funcionamento dos elementos naturais, que busca subtrair da diferença e diversidade, a igualdade e unidade imanente a todas as coisas. Esta unidade que abarca a diversidade do todo é a mesma que assinala a existência de uma regularidade entre os fenômenos. Regularidade esta que se processa no diverso, eterna e infinitamente. 11 HERÁCLITO. Col. Os Pensadores. Frg. 8. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. 12 MODOLFO, Rodolfo. El Infinito en el Pensamento de la Antiguedad Clássica. Buenos Aires. Eudeba, 1971.Pg. 59.
Referências ANAXIMANDRO. Coleção os pensadores. Martin Heidegger (A Sentença de Anaximandro). Trad. de Ernildo Stein. São Paulo. Abril Cultural, 1978. ANAXÍMENES. Coleção os pensadores, (Hegel - crítica moderna). Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. ARISTÓTELES, Coleção os pensadores. Metafísica, I, 3. 983 b. Trad. do grego de Vicenso Cocao. São Paulo. Abril Cultural, 1978. BRUN, Jean. Os Pré-Socráticos. Edições 70, Lisboa. S. A. HERÁCLITO. Col. Os Pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo. Abril Cultural, 1978. MONDOLFO, Rodolfo. El Infinito en el Pensamento de la Antiguedad Clássica. Buenos Aires. Eudeba, 1971. TALES DE MILETO. Coleção os pensadores. Trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1978.