CARLOS RUAS: HUMOR E CRÍTICA SOCIAL NA CONSTRUÇÃO DO PERFIL DE PERSONAGENS BÍBLICOS Gabriela de Paiva Gomes Albuquerque (UFPE)¹ gabrielapgalbuquerque@gmail.com INTRODUÇÃO Neste artigo trazemos uma análise das tiras cômicas intituladas Um Sábado Qualquer, escritas e desenhadas pelo brasileiro Carlos Ruas, com o objetivo de destrinchar um dos elementos mais importantes do gênero: a personagem. Procuramos mostrar os recursos utilizados na construção dos seres fictícios que orientam as ações da narrativa e criam o pano de fundo para o humor e a crítica desenvolvida pelo autor. Partimos do conceito do gênero tira cômica caracterizando os personagens como elemento fundamental para a compreensão do enredo sintético. Para isso, utilizamos as teorias relacionadas aos personagens quanto ao seu tipo e seus papéis dentro da narrativa. Utilizamo-nos principalmente dos estudos de Brait (1985), Cardoso (2001) e Gancho (2004). Também fizemos uso da teoria bakhtiniana do dialogismo e do conceito de intertextualidade proposto por Beaugrande/Dressler (1981) e Koch (1993) enquanto discorríamos sobre a importância do conhecimento do texto base no caso do corpus analisado, a Bíblia judaico-cristã para o entendimento do humor ou crítica presente como um todo. Chegamos ao nosso objetivo através da leitura do livro bíblico da Gênesis, onde há a descrição religiosa da origem do mundo, dos primeiros habitantes da Terra e das ações praticadas por eles. Após essa primeira etapa, comparamos os trechos observados com a caracterização dos personagens ao longo das publicações de Carlos Ruas. Ao final, procuramos identificar que elementos do texto original foram mantidos e quais foram subvertidos para a produção da série. Com isso, pretendemos destrinchar os elementos que, ao mesmo tempo em que promovem uma mediação intertextual rápida, permitem ao autor do gênero tira brincar com as características dos personagens, associando-os a outros textos ou conceitos distintos do que se tomou por base. Espera-se que o estudo detalhado de um componente tão crucial da tira cômica possa ser levado à sala de aula, despertando o interesse dos estudantes pelo gênero, fazendo com que abandonem a ideia de que as tiras servem apenas como veículo de linguagem a ser trabalhada. Além disso, pretende-se estimulá-los a observar as técnicas de produção de maneira esmiuçada, encorajando-os a pôr o processo em prática com outros textos largamente conhecidos. FUNDAMENTOS TEÓRICOS 1. O gênero tira cômica e a importância dos personagens Bakhtin (1997; p.279) define os gêneros como sendo tipos relativamente estáveis de enunciados, elaborados de acordo com certas esferas de utilização. Por estarem inseridos em contextos definidos e terem forma razoavelmente fixa, eles são
utilizados para realizar funções específicas e objetivas em determinadas situações sociais. Assim, mesmo que atuando em circunstâncias levemente distintas, vários gêneros com elementos e finalidades bastante semelhantes podem vir a surgir. Para agrupá-los, Dominique Maingueneau lançou a ideia do hipergênero: um rótulo que daria as coordenadas para a formatação textual de vários gêneros que compartilhariam diversos elementos (RAMOS, 2009). Dentro do hipergênero dos quadrinhos estão modalidades predominantemente narrativas que mesclam linguagem verbal e ilustração dentro de um ou mais quadros dispostos sequencialmente, com personagens fixos ou não. As marcas linguísticas desses gêneros são os balões e as legendas, que garantem a expressão mais detalhada possível da mensagem a ser passada. Fazendo parte desse grupo, as tiras cômicas têm caráter sintético, com um número máximo de quatro ou cinco quadrinhos dispostos em série numa linha única. Carvalho (2008) ressalta que, nas tiras de humor, a narrativa tem início e desfecho na mesma sequência, ainda que façam parte de uma história maior, pois é preciso que o leitor a entenda sem que tenha que esperar pela próxima publicação. A autora menciona ainda que o conhecimento prévio do leitor sobre os personagens é um dos fatores determinantes para a compreensão total do que está sendo lido. Por esta razão, a análise desse elemento faz-se essencial para que se avalie de que forma o leitor estabelece as relações que tornam claro o sentido do texto. Em primeiro lugar, é importante adotar a visão de que a personagem é fundamental na narrativa e, portanto, não deve ser vista como externa, mas sim, segundo Cardoso (2001) como elemento intratextual. Ela estabelece uma relação de interdependência com o restante do texto, sendo sua parte mobilizadora a partir do momento em que participa efetivamente do enredo, isto é, [...] age ou fala (GANCHO, 2004). Além de ser responsável pela movimentação da trama, a personagem é criada de modo que carregue consigo uma carga semiológica que represente o necessário para a continuidade e o sentido à história. Ela pode, portanto, simbolizar um indivíduo único ou um grupo que possua as mesmas características. A partir da relação entre a pessoa humana e as representações ficcionais, E. M. Forster classificou as personagens como redondas ou planas. A primeira categoria diria respeito às figuras complexas e multifacetadas, passivas de mudanças durante o desenrolar da trama. Já as pertencentes à segunda categoria seriam construídas ao redor de uma única ideia ou qualidade (BRAIT, 1985). Essa última classificação poderia ainda ser dividida em dois grupos: os tipos, que englobam as personagens sem deformação, que apresentam apenas aspectos peculiares; e as caricaturas, que consistem na distorção propositada de alguma das características para enfatizar o cômico ou o ridículo. Outra maneira de distinguir as personagens é dividindo-as de acordo com os papéis que desempenham. Podem ser, portanto,: A) Protagonistas: As protagonistas são o elemento central em torno do qual a história acontece e os outros personagens estarão de uma ou de outra forma em função dele, pensam nele e agem para e por causa dele (CARDOSO, idem.). O protagonista que possui virtudes e qualidades morais valorizadas pela sociedade em que o texto se desenvolve é categorizado como herói; já aquele cujas características
são iguais ou inferiores às de seu grupo, mas que por algum motivo está na posição de herói (GANCHO, 2004) é chamado de anti-herói. B) Antagonistas: São o elemento gerador do conflito da trama, pois têm como papel fundamental se opor, por meio de características ou ações, ao protagonista. Cardoso ressalta que o papel pode ser ocupado por uma pessoa, o destino, o ambiente, uma instituição ou qualquer outro elemento personificado ou personificável. C) Adjuvantes: Segundo Gancho (2004), adjuvantes ou coadjuvantes são as figuras com participação secundária no enredo, aquelas que dão suporte na execução das principais ações do texto, integrando os personagens principais ao restante da história. Mesmo que não seja capaz de classificar os personagens segundo a nomenclatura acima, o leitor os reconhece dentro de alguma das categorias, o que faz com que construa um contexto, um plano de fundo para inseri-los. A partir dos conceitos acima, também, desenvolveremos a avaliação dos personagens de Carlos Ruas, comparando-os à sua forma bíblica. 2. Dialogismo e intertextualidade: o humor está nas entrelinhas O conceito de dialogismo apareceu pela primeira vez na Estética da Criação Verbal de Mikhail Bakhtin, que dizia que todos os enunciados apresentam em sua constituição o enunciado do outro, ou seja, são dialógicos. Entretanto, essa não é a única concepção que o russo traz do termo; existe uma outra ideia sobre o que é dialogismo. A segunda noção diz respeito não ao enunciado, mas às vozes presentes nele, constituindo o que Bakhtin chama de concepção estreita. Ela pode apresentar-se de maneira objetivada, quando a distinção das vozes fica clara, ou da maneira bivocal, em que os enunciados citante e citado não estão nitidamente separados. Na presente pesquisa, trabalharemos com o conceito de dialogismo bivocal, já que é nele que se baseia a paródia, recurso primeiro utilizado por Carlos Ruas para causar o humor das tiras. A estreita relação entre o riso e o livro sagrado da religião judaico-cristã é causadora não só de comicidade, mas também de polêmica e crítica. Se o dialogismo é o conceito que estabelece a relação constitutiva dos enunciados, dos discursos, a intertextualidade é o que conecta textos, ou seja, as entidades que materializam os enunciados. É preciso ressaltar que um cuidado deve ser tomado com a analogia dos termos: interdiscursividade está sempre presente na intertextualidade, mas a recíproca não é necessariamente verdadeira. De acordo com Beaugrande e Dressler (1981, p. 182), a intertextualidade consiste nas maneiras através das quais a produção e a recepção de um dado texto dependem do conhecimento de outros textos pelos participantes. Para ativar esse conhecimento prévio, é necessário um processo de mediação, medida que oferece aos participantes noções imprescindíveis para a compreensão. Quanto maior for o tempo levado para que a relação entre os textos seja estabelecida, maior será a mediação
aplicada, o que significa que a mediação é muito menor quando as pessoas citam ou referem-se a textos bem conhecidos (BEAUGRANDE/DRESLLER 1981). A intertextualidade pode ser interna, ou seja, abordando discursos do mesmo campo discursivo, ou externa, tratando de campos discursivos distintos. (MAINGUENEAU apud MARCUSCHI, 2010) Ela pode ainda, segundo Koch (1993), ser associada a fatores a) de conteúdo, em que os conhecimentos mobilizados envolvem os mesmos assuntos do texto a ser analisado. b) formais, os quais estão relacionados ao modelo e à configuração do texto, numa ligação menos explícita. Durante a análise, consideramos ambas as formas de classificação, devido ao alto grau de complexidade da intertextualidade presente nas tiras e principalmente na constituição dos personagens. ANÁLISE DOS DADOS Como já foi mencionado anteriormente, tiras cômicas que utilizam personagens fixos dão ao leitor a oportunidade de construir um contexto para entender o personagem e o que ele representa. Na série Um Sábado Qualquer, a intertextualidade com a Bíblia é facilmente estabelecida não só pelos personagens, mas pelas situações em que são postos ou a que fazem referência. Antes que destrinchar cada um dos personagens principais do trabalho de Carlos Ruas, é interessante classifica-los dentro de sua condição de elemento constitutivo de acordo com seus tipos e papéis. Eles se encaixam na categoria de caricatura proposta por Forster, carregando consigo características marcantes, exageradas para que a sátira alcance mais visão. Ao contrário do que dizem alguns autores, esse não é um aspecto negativo: os papéis demarcados por características específicas facilitam a compreensão da comicidade pelos leitores. Entretanto, a marca mais interessante dos cinco personagens a seguir é que eles oscilam entre os papéis de protagonista, antagonista e adjuvante, dependendo do enredo da tira, como poderá ser observado nas amostras abaixo. 1. Deus No princípio criou Deus os céus e a terra.essa é a primeira semelhança entre o Deus de Ruas, um senhor careca, com barba longa e túnica bege, e o Deus bíblico, nunca descrito fisicamente. Figura 1
Apesar de, como o Deus bíblico, o personagem ter o poder da criação, ele apresenta o comportamento de um adolescente, descobrindo o mundo e suas próprias habilidades. Assim, temos um Deus que se frustra com o mundo, sofre de crises existenciais comuns aos jovens de atualmente (fig. 2) e utiliza seus poderes de forma parcial, que satisfaz ao seu ego e suas vontades (fig. 3), contrapondo-se à passagem do Gênesis E viu Deus tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom. Figura 2 Figura 3 Entretanto, o papel mais importante do Deus de Ruas é o de figura suprema cultuada por diversas religiões. Ele é utilizado para criticar certas condutas das mesmas, como nos exemplos das figuras 4 e 5. Figura 4
Figura 5 2. Adão Assim como o Adão bíblico, Deus o criou à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Dessa maneira, o Adão de Carlos Ruas tem tantos problemas quanto o Deus do autor, ainda que sejam de ordens diferentes (fig. 6). Sua criação acontece assim como no trecho bíblico Deus fez cair um sono pesado sobre Adão, e este adormeceu; e tomou uma das suas costelas, e cerrou a carne em seu lugar; e da costela que o SENHOR Deus tomou do homem, formou uma mulher, e trouxe-a a Adão. (fig. 7) Figura 6 Figura 7
Assim como na Bíblia, Adão é o primeiro homem; entretanto, na tira, ele é a representação do machismo, do mundano, do humor escrachado (fig. 8). Além disso, sua relação com Eva difere um tanto do apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne pregado pelo livro sagrado. Na verdade, a relação de fidelidade é tratada como um ponto negativo da relação dos dois. (fig. 9) Figura 8 Figura 9 CONCLUSÃO Após a análise das tiras, pode-se perceber que as personagens fazem uma referência explícita ao livro bíblico, inclusive sendo nomeadas da mesma maneira que suas referências originais. Além desse recurso, o autor utilizou ainda a opção de manter as situações que as caracterizavam no livro sagrado, como, por exemplo, a criação do mundo por Deus e o nascimento de Eva, episódio no qual Adão é adormecido e tem uma costela retirada. Esses eventos, largamente conhecidos pelo público habitante de um país cuja religião oficial é a católica, promovem uma mediação muito pequena entre a leitura do texto e o processamento de suas ligações com a Bíblia judaico-cristã. Mantendo os elementos que preservariam o eixo desejado, o autor se permitiu brincar com as outras possibilidades restantes, criando hipóteses que levariam a um caos seguro, causador principal do humor. Pudemos perceber, então, que as caricaturas não são, necessariamente, elementos pobres dentro da narrativa; elas podem ser usada de maneira a enriquecer o enredo e abrir o leque de possibilidades para o autor. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Os Gêneros do discurso. In: Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
BARBIERI, D. Los lenguajes del cómic. Barcelona: Paidós, 1998. BEAUGRANDE, R. DRESSLER, W. Introduction to Text Linguistics.New York: Longman, 1981. BÍBLIA. Português. Bíblia sagrada. Versão do site: http://www.bibliaonline.com.br BRAIT, Beth. A personagem. São Paulo: Ática, 1985. Série Princípios. CARDOSO, J. B. Teoria e prática de leitura, apreensão e produção de texto: para um tempo de PAS (Programa de Avaliação Seriada). Brasília: UNB; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2001 CARVALHO, M. S. M. O gênero discursivo tira em atividades de leitura em sala de aula. Taubaté, 2008. GANCHO, C. V. Como analisar narrativas. São Paulo: Editora Ática, 2004. KOCH, Ingedore V., TRAVAGLIA, Luiz Carlos. A coerência textual. 5.ed., São Paulo: Contexto, 1993. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. Recife: 2010. RAMOS, P. Reavaliando as fronteiras entre quadrinhos e literatura. In: Seminário do GEL, 57, 2009, Ribeirão Preto: 2009.