Campo: o nómos do espaço político atual

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Transcrição:

Campo: o nómos do espaço político atual Neri Pies* Resumo: Procuraremos, neste artigo demonstrar a relação entre Adorno e Agamben na concepção de campo. Por mais que logo na introdução do Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua Agamben evoque a companhia de dois importantes pensadores dos tempos modernos: Michel Foucault e Hannah Arendt, para auxiliá-lo na compreensão dos problemas atuais, nossa compreensão é de há primeiramente uma contribuição implícita de Adorno, principalmente pela crítica que os pensadores da Escola de Frankfurt fazem à instrumentalização da razão levada a cabo em Auschwitz. Palavras-chave: Adorno. Agamben. Biopolítica. Campo. Neste artigo procuraremos desenvolver rapidamente a ideia de razão instrumental em Adorno e a relação desta na concepção de campo expressada por Agamben, mas o foco principal é objetivamente entender porque Agamben enfatiza o campo como o nómos da política atual. * Doutorando em Filosofia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). E-mail: <neripies@gmail.com>. 63

Uma das teses mais impactantes do filósofo italiano Giorgio Agamben é a defesa de que o campo é o paradigma biopolítico do moderno, tese defendida e analisada na obra Homo sacer: o poder soberano e a vida nua I. O aprofundamento de suas teses sobre o homo sacer, a vida nua e o campo se tornaram indispensáveis no momento em que testemunhamos acontecimentos bárbaros como o extermínio da população palestina na Faixa de Gaza, problema da imigração Síria, além das atuais políticas de segurança. Diante deste atual cenário, o homo sacer é apresentado como um ser no limiar da animalidade, uma criatura desprovida de significado e suscetível ao descarte. A partir de 1995, com a obra Homo sacer ocorreu uma guinada filosófica nas obras do autor italiano. Com ela, Agamben ganhou notoriedade internacional e passou a ser estudado em muitas academias, embora ainda em construção. O conjunto da obra, do autor ganhou uma especial atenção, principalmente pela radicalidade com que passou a repensar as categorias políticas e jurídicas da atualidade. Que Auschwitz não se repita Theodor Adorno é um pensador da teoria crítica que evidenciou o significado excepcional que Auschwitz possui para a civilização ocidental. Essa tese é defendida na obra Dialética do Esclarecimento onde, onde juntamente com Horkheimer, eles fazem uma análise crítica da racionalidade iluminista, ou seja, uma crítica ao projeto de racionalidade, que depositava a superioridade do homem em seu saber. Pelo fato de estarem inseridos no panorama da barbárie da II Guerra Mundial, eles criticam e questionam profundamente a razão, pois ela se tornou subordinada, subjetivada, utilizada para meios, e não para fins, e sua redução a mero instrumento afeta fatalmente sua utilização como próprio instrumento. A principal característica da razão científica moderna é, certamente, a matematização do saber e a administração da sociedade e das pessoas. Tudo passou a ser medido e calculado, estraçalhado até o último pedaço pelo olhar atento dos detentores da razão. O que não se submete ao critério da calculabilidade e da utilidade torna-se suspeito para o esclarecimento (ADORNO; HORKHEI- MER, 1985, p. 21). Quem observa atentamente este pensar não demora 64

a perceber que ele, mesmo tendo como promessa o posicionamento do homem na centralidade do mundo acaba por esquecê-lo desde seu princípio. Ocorre um ajustamento em que para um conhecimento ser verdadeiro e útil tem que ser resultado de uma reflexão que se encaixe dentro dos ditames já estabelecidos pelo sistema ou pela ciência. Se no início da modernidade a ciência foi criada para servir o ser humano, com o passar do tempo o homem já tem que se submeter a ela e não pode mais pensar tudo aquilo que lhe ocorre. A denúncia de Adorno e Horkheimer contra o projeto da modernidade é que a ciência/razão se aliou à dominação, com isso provocou a morte prematura da racionalidade crítica e impediu a emancipação humana. A dominação da natureza presente nos mitos foi instrumentalizada pela técnica consolidando uma forma mais clara e eficaz de domínio da natureza. No fundo, a sede desesperada de dominar a qualquer custo a natureza acaba se revertendo contra o próprio homem. Como afirmam os autores, O que os homens querem aprender da natureza é como empregá-la para dominar completamente a ela e aos homens (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 20). Toda esta discussão culminará na contraposição entre a razão emancipatória e a racionalidade instrumental, havendo uma diferenciação do ideal de humanidade implícito em cada uma destas. Diante disso, a necessidade é demonstrar a maneira como a racionalidade instrumental dominou a sociedade e encontra-se enraizada em seus segmentos, difundida principalmente pelos meios de comunicação em massa, isto é, pela indústria cultural. O esclarecimento pode ser caracterizado por atribuir ao ser humano o papel de dominador frente à natureza. Entretanto, Adorno e Horkheimer identificam com precisão que esta mesma postura de domínio se ampliou entre os próprios homens. Não faltam exemplos da prática da barbárie que ajudem a compreender o que significou a relação entre razão e dominação. Os próprios frankfurtianos viveram num período muito conturbado, marcado pelas duas grandes guerras, além da subida de Hitler ao poder. Auschiwitz não representa apenas o genocídio num campo de extermínio, mas simboliza a tragédia da formação na sociedade capitalista. Em Educação após Auschwitz, Adorno nos diz de maneira bastante clara que na própria gênese da civilização está contida a barbárie. Um dos grandes objetivos da filosofia de 65

Adorno é expresso pelo próprio autor nesta frase: Que Auschiwitz não se repita (ADORNO, 1995, p. 119). Adorno se pergunta sistematicamente como é possível tamanha barbárie, ou seja, como pôde um país tão culto e educado como a Alemanha de Goethe desembocar na barbárie nazista de Hitler? (ADORNO, 1995, p. 15). Se este acontecimento, que antes parecia impossível, pode acontecer, então é preciso estar vigilante para impedir novas manifestações da barbárie. Por isso, é preciso refletir diante dos principais pilares da cultura, da política e da racionalidade moderna, pois a modernidade deixou de lado sua pretensão inicial de libertar e emancipar os homens. O desenvolvimento dos regimes totalitários é citado por Adorno como resultado da deformação, consequência direta da racionalidade instrumental. Segundo ele, os dominantes monopolizaram a formação cultural numa sociedade formalmente vazia. Não seria possível que a barbárie se desenvolvesse se ela não encontrasse um espaço propício para se enraizar. O grande perigo existente é que as mesmas condições que serviram como base para o advento do nazismo na época ainda são percebidas atualmente, e com ainda mais força. Auschwitz mudou as noções de barbárie e mostrou, objetivamente, do que o ser humano é capaz. O paradoxo da civilização moderna que Adorno, em suas obras Dialética do esclarecimento e Minima moralia, corretamente caracterizou de progresso regressivo, aconteceu e continua atual em nossa geração, marcada pelo predomínio da racionalidade instrumental e indústria cultural. O caráter contraditório do progresso e da civilização nos tempos modernos, brilhantemente abordado e discutido pela tradição da Escola de Frankfurt, merece uma atenção especial quando confrontamos com as brutalidades e genocídios presentes em nosso tempo. Portanto, vivemos num contexto, onde se instaurou a perda do sentido da vida, o que significa que o projeto da modernidade parece ter se tornado um devaneio. Em sua origem sabemos que ele pretendia o esclarecimento, a liberdade humana, mas atualmente experimentamos a perda de sentido e de liberdade. A razão tornou-se instrumentalizada, provocando o domínio da natureza e ameaça da vida humana. A razão enquanto razão instrumental não tem força crítica, capacidade de impor limites, o que a torna contrária ao seu ideal que era a conquista racional do mundo. 66

Campo como paradigma biopolítico do ocidente Giorgio Agamben é filósofo e jurista italiano, ocupando um lugar cada vez mais destacado no pensamento contemporâneo, pois sua teoria consegue apontar e instigar temas relevantes da atualidade. Desde a publicação da obra Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua, em 1995, ele marca o início de um projeto filosófico e também expressa a influência recebida de Hannah Arendt, Michel Foucault, Carl Schimtt, Walter Benjamim e Adorno. A partir desse conjunto de pensadores, que são referências ao pensamento de Agamben, há de se destacar que o pensador italiano, além de impulsionar as investigações iniciadas por Hannah Arendt e Michel Foucault, também reformula o problema central acerca do tema da biopolítica. No que concerne esse ponto, reposiciona criticamente a abordagem de Foucault, explicita novas categorias como a vida nua, amplia e confronta a problemática com a questão do estado de exceção enquanto espaço vazio, terra de ninguém, nómos da política das sociedades atuais, paradigma das sociedades e as consequências de tal instituto, para tentar oferecer um diagnóstico qualificado. Para Agamben, Foucault deixou uma lacuna por não ter explicado suficientemente a importância da vida biológica e da saúde da nação como problema do poder soberano, que se transforma então progressivamente em governo de homens. Portanto, uma das questões que Agamben se propõe a responder se refere ao paradigma da política de segurança e controle sobre os cidadãos como forma de conceber a própria política, ou seja, o Estado enquanto agente garantidor de direitos e a política como espaço de definição da vida e de ações em vista da garantia de tais direitos. Isso se deve pelo fato de que o século XXI apresentou de modo peculiar um cenário de incertezas para vários governos. Este fato fez com que os governos para se viabilizarem ou se manterem acabaram firmando legislações cujo fim maior parece ser o de privar a sociedade e os indivíduos de direitos historicamente conquistados, isto é, o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma dominante, mesmo nas sociedades democráticas. Vale ainda destacar que Agamben tem uma relação com os filósofos da teoria crítica e não demonstra otimismo diante dos desafios e das novidades que se apresentam. No final da obra Homo Sacer: o poder 67

soberano e a vida nua Agamben lança sua principal e emblemática tese O campo, e não a cidade, é hoje o paradigma biopolítico do ocidente (2010, p. 176). Para chegar a esta tese foi necessário, na primeira parte da obra, interpretar a noção de soberania em termos de bando e, na segunda, a vida como o objeto do bando, ou vida abandonada. Já na terceira parte, para abordar o nexo entre biopolítica e totalitarismo, Agamben se ocupa de três argumentos: os direitos do homem, a política eugenística do nacional-socialismo e o debate em torno da noção da morte. Feito esse caminho o pensador chega na conclusão de que o campo é o paradigma político da modernidade. Infelizmente pela nossa limitação de tempo e espaço não poderemos reconstruir esse caminho, desta forma focaremos na noção de campo. Ao invés de Agamben se deter nos campos (quer de concentração, quer de extermínio) como o local onde se realizou a condição inumana mais absoluta que teve lugar na face da terra, ele se pergunta antes: o que é um campo? Qual sua estrutura jurídica-política? Por que semelhantes eventos puderam nele ocorrer? É esse questionamento que o leva a olhar o campo não como um fato histórico e uma anomalia atinente ao passado, mas sim como a matriz oculta, o nómos do espaço político em que ainda vivemos (2010, p. 162). Na compreensão de Castro: A primeira observação a respeito é que a existência dos campos deve ser situada, de um ponto de vista jurídico, no contexto do estado de exceção, e não das leis marciais. A novidade do nazismo consiste em que a decisão sobre a excepcionalidade, sobre a suspensão das garantias constitucionais, deixa de estar vinculada a uma situação concreta de ameaça externa e tende a converter-se na regra. (2012, p. 73). Agamben é enfático ao afirmar que os campos nascem, não do direito ordinário, mas do estado de exceção. Por exceção ele entende o momento em que se sai do Estado democrático de direito para se instaurar ações excepcionais, ações de exceção. O campo é o espaço que se abre quando o estado de exceção começa a tornar-se a regra. Nele, o estado de exceção, que era essencialmente uma suspensão temporal do ordenamento com base numa situação factícia de perigo, ora adquire uma disposição espacial permanente. (AGAMBEN, 2010, p. 164 e 165). 68

Segundo Castor (2012), no campo, a vida humana é capturada pela exceção jurídica na forma de uma exclusão inclusiva. Ela é excluída dos direitos fundamentais, mas está capturada pela vontade soberana que decretou a exceção e a tornou uma vida nua, um homo sacer. O campo tem um estatuto jurídico paradoxal. O campo é um espaço fora do direito cuja lei coincide com a vontade soberana. A vida do campo cai fora do direito. Essa é uma diferença substancial, com a prisão cuja vida interna encontra-se regulamentada pelo direito penal. A vida da prisão está condenada, mas também protegida pelo direito penal. A vida no campo está abandonada de qualquer direito. Neste sentido, campo é o espaço em que a exceção se torna a regra. Essa denominação faz com que para os oprimidos o estado de exceção é a regra, pois, o campo é o espaço em que ordenamento está suspenso e em seu lugar se coloca a vontade soberana. No campo a vontade soberana coincide com a lei, a lei é o arbítrio do soberano. Nesse caso, a vida humana que cai sob a condição da exceção se torna um verdadeiro homo sacer, pois, essa figura jurídica paradoxal captura a vida humana pela exclusão ao mesmo tempo em que a inclui pelo abandono. Diz Agamben: É bom não esquecer que os primeiros campos de concentração na Alemanha não foram obra do regime nazista, e sim de governos social-democráticos que, em 1923, após a proclamação do estado de exceção, não internaram apenas com base na Shchutzbaft milhares militantes comunistas, mas criaram também em Cottbus-Sielow um konzentrationslager fur Alslander que hospedava sobretudo refugiados hebreus orientais que pode, portanto, ser considerado o primeiro campo para o hebreus do século XX (mesmo que, obviamente, não se tratasse de um campo de extermínio). (2010, p. 163). Entretanto, historiadores discutem se os primeiros campos de concentração foram criados pelos espanhóis em Cuba, em 1896, para reprimir a insurreição da população da colônia, ou os campos de concentração onde os ingleses no início do século XX amontoaram os bôeres, mas o que importa neste caso é que em ambos os casos se implantou o estado de exceção a uma população civil. Vale evidenciar que o ápice do estado de exceção biopolítico, no qual a vida está implicada ao longo do desenvolvimento da civilização ocidental, apresentou sua face mais verdadeira e teve sua expressão máxima 69

nos campos de concentração da segunda Guerra Mundial. Nos campos, a lógica biopolítica e tanatopolítica derivada do estado de exceção se deu com profundidade ao desqualificar o ser humano, ao transformá-lo em vida nua, vida matável e sacrificável. Neles se dá a expressão máxima da perda da condição humana, a humilhação da vida levada a limites extremos, a negação da vida humana em sua radicalidade, transformada em mera vida nua. De certa forma o regime nazista por meio de decreto jurídico, na tomada do poder, aperfeiçoou a legislação, baseava-se implicitamente no artigo 48 da Constituição vigente (de Weimar cidade alemã), que não traz o termo de estado de exceção, mas sem dúvida equivalia ao estado de exceção. Portanto, o nazismo se baseia em fontes da social democracia, que suspendia os artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153 da constituição de Reich alemão, que na verdade suspendia os direitos fundamentais como liberdade de expressão, liberdade pessoal, de reunião, etc. (AGAMBEN, 2010, p. 164). No regime nazista o presidente do Reich pode, caso a segurança pública e a ordem sejam gravemente perturbadas ou ameaçadas, tomar as decisões necessárias para o restabelecimento da segurança pública, se necessário com o auxílio das forças armadas (AGAMBEN, 2010, p. 163), ou seja, declarar o estado de exceção. Desta forma o campo opera para controlar e vida humana em situações extremas. Ela é uma técnica operativa que explica a lógica de controle, repressão e extermínio de grupos populacionais que se tornaram perigosos. No entanto, isto é uma inclusão excludente, ou uma exclusão inclusiva. Exclui do direito para incluir a vida na exceção. A exceção opera como estrutura política paradoxal que captura a vida humana ao mesmo tempo em que a abandona à condição de mero ser vivente. Essa técnica, segundo Agamben está muito presente, uma vez que os Estados modernos não cessam de utilizar a exceção jurídica como uma técnica política e policial de governar as populações que eles consideram perigosas. Quando, em março de 1933, coincidindo com as celebrações pela eleição de Hitler como chanceler do Reich, Himmler decidiu criar em Dachau um campo de concentração para prisioneiros políticos, este foi imediatamente confiado às SS e através da Schutzbaft, posto fora das regras do direito penal e do direito 70

carcerário, com as quais, nem então e nem em seguida, jamais teve algo a ver [...] Dachau e outros campos que logo se juntaram a ele (Sachsenhausen, Buchenwald, Lichtenberg) permaneceram virtualmente sempre em função: o que variava era a densidade de sua população [...] mas o campo como tal havia-se tornado na Alemanha uma realidade permanente. (AGAMBEN, 2010, p. 165). Ou seja, os campos se tornaram permanentes, ou ainda, suspendiam por tempo indeterminado os artigos da constituição, mas trazendo uma novidade, trazendo as palavras suspensos até nova ordem, e essa nova ordem durou 12 anos, sem mencionar a palavra estado de exceção. Além disso, aconteceu nesse período mais um fato no mínimo inusitado, pois se criou a ideia do desejo de estado de exceção. É preciso refletir sobre o estatuto paradoxal do campo enquanto espaço de exceção: ele é um espaço de território que é colocado fora do ordenamento jurídico normal, mas não é, por causa disso, simplesmente um espaço externo. Aquilo que nele é excluído é, segundo o significado etimológico do termo exceção, capturado fora, incluído através da sua própria exclusão. Mas aquilo que, deste modo, é antes de tudo capturado no ordenamento é o próprio estado de exceção. Na medida em que o estado de exceção é, de fato, desejado, ele inaugura um novo paradigma jurídico-político, no qual a norma torna-se indiscernível da exceção. O campo é, digamos, a estrutura em que o estado de exceção, em cuja possível decisão se baseia no poder soberano, é realizado normalmente. (AGAMBEN, 2010, p. 166). Os detentores do poder ou ainda aquilo que Adorno chama de indústria cultural aliada a razão instrumental, não cessam de criar desejos de repressão, violência ou arbitrariedades. Eles, na verdade, trabalham a lógica de impor o medo e o desejo de controlar a vida das pessoas e isto funciona em âmbito econômico, social, político e cultural. Portanto, o paradoxo entre liberdade e controle de direitos ou da vida é um paradigma biopolítico atual que precisamos enfrentar e resolver. Pois o soberano não se limita mais a decidir sobre a exceção, mas produz a situação de fato como consequência da decisão sobre a exceção. Portanto, no campo a questão de justiça não é mais distinguível da questão de fato, podemos afirmar que ambas estão entrelaçadas, não existe mais 71

ilegalidade e legalidade, pois qualquer questionamento perde o sentido. Fato e direito se confundem sem resíduos, neles tudo é possível. Agamben denuncia as práticas empregadas pelo paradigma dominante da política sob a proteção do estado de exceção, inicialmente usadas como medidas de segurança, ligadas a fatos e acontecimentos excepcionais que deveriam ser reservadas a um espaço e tempo restritos que, no entanto, se tornam regras de uso permanente. Tem-se, portanto, um desiquilíbrio entre o político e o jurídico, uma lei que se relaciona com a vida por meio da sua própria suspensão. Assim, Agamben procura o ponto oculto de intersecção entre o modelo jurídico-institucional e o modelo biopolítico do biopoder (2010, p. 14). O exercício reflexivo requer que se interrogue acerca da relação entre a vida nua e a política, pois é dessa relação que emanam as formas ocultas de governabilidade, as secretas ideologias presentes no contexto da modernidade. Agamben visa reconstruir genealogicamente a categoria estado de exceção e desenvolve seu estudo sobre esta figura jurídico- -política, conceituando-a como uma zona de indistinção que está dentro e fora do direito, ou ainda, a vida humana é capturada como vida nua. Neste sentido é importante destacar, desde já, a distinção entre zoé e bios, para compreendermos um pouco melhor o significado de vida nua. Agamben parte do conceito de vida dos antigos gregos, destacado que eles não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida (AGAMBEN. 2010 p. 09). O termo zoé referia-se à vida como um simples fato de viver, o fato da vida em sentido natural, a vida biológica, a vida nua, de todos os seres vivos. Bíos, por seu turno, designava e indicava a vida qualificada, um protótipo de vida peculiar, característico, de um indivíduo ou grupo, ao estilo da vida, a vida ética e politicamente qualificada. Entretanto, na modernidade o objeto próprio da política já não é o bíos, mas a zoé. A tese foucaultiana deverá, então, ser corrigida ou, pelo menos, integrada, no sentido de que aquilo que caracteriza a política moderna não é tanto a inclusão da zoé na pólis, em si antiguíssima, nem simplesmente o fato de que a vida como tal venha a ser um objeto eminente dos cálculos e das previsões do poder estatal; decisivo é, sobretudo, o fato de que, lado a lado com o processo pelo qual a exceção se torna em todos os lugares a regra, o espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espa- 72

ço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível indistinção. (AGAMBEN, 2010, p. 16). Agamben ainda argumenta que O ingresso da zoé na esfera da pólis, a politização da vida nua como tal constitui o evento decisivo da modernidade, que assinala uma transformação radical das categorias político-filosóficas do pensamento clássico. É provável, aliás, que, se a política parece hoje atravessar um duradouro eclipse, isto se dá precisamente porque que ela eximiu-se de um confronto com este evento fundador da modernidade. (AGAMBEN, 2010, p. 12). Somente no horizonte da biopolítica se poderia resolver as questões abertas, isto é, resolver as problemáticas a partir de dentro, a partir da interrogação entre via nua e política que governa secretamente as ideologias da modernidade aparentemente mais distantes entre si poderá fazer sair o político de sua ocultação e, ao mesmo tempo, restituir o pensamento à sua vocação prática. Assim, Agamben postula uma continuidade de fundo, inerente entre o poder soberano e a biopolítica, e insere uma figura do antigo direito romano o homo sacer para analisar essa relação e a forma como a mesma incide na questão da vida nua. Mostra que esta vida nua, na esfera da política, contém em si o núcleo mais essencial e originário do poder soberano. Portanto, a intenção do pensador é [...] encontrar um paradigma para repensar o atual estado do homem político sem recair demais no âmbito das especulações metafísicas e sem reutilizar representações gastas e inofensivas, um paradigma que não seja nem muito próximo, nem muito distante (NASCIMENTO, 2012, p. 156). Na modernidade temos a passagem do estado territorial para o estado de população, isto é, dá-se importância a vida biológica, a saúde da população como problema de poder soberano, ou seja, ao governo dos homens, fazendo com que seja preciso voltar o olhar a novas estratégias políticas, porém, o problema é que as estratégias são técnicas de governo que captura a vida dos indivíduos. Sendo assim, [...] resulta daí uma espécie de animalização do homem posta em prática através das sofisticadas técnicas políticas. Surgem então 73

na história seja o difundir-se das possibilidades das ciências humanas e sociais, seja simultânea possibilidade de proteger a vida e de autorizar o holocausto. Em particular, o desenvolvimento e o triunfo do capitalismo não teria sido possível, nesta perspectiva, sem o controle disciplinar efetuado pelo novo biopoder, que criou para si, por assim dizer, através de uma série de tecnologias apropriadas, os corpos dóceis que necessitava. (AGAMBEN, 2010, p. 11). O capitalismo quer produzir (pela economia, não mais pela política) um povo uno e indivisível, porque tem a obsessão do desenvolvimento. Portanto, o projeto biopolítico coincide em produzir um povo sem fratura. Mas, esse projeto capitalista não somente reproduz em seu próprio interior o povo dos excluídos, mas transforma em vida nua todas as populações do terceiro mundo. Somente uma política que saberá fazer as contas com a cisão biopolítica fundamental do ocidente poderá refrear esta oscilação e pôr fim à guerra civil que divide os povos e as cidades da terra (AGAMBEN, 2010, p. 175). Atualmente a temática de campo está presente na sociedade, ainda permanece a tese de que quem entra no campo, move-se em uma zona de indistinção entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito. Não apenas se suspende a lei, mas confunde-se fato e direito. Por isso é preciso entender essa diferença ou imbricação para entender tudo o que aconteceu dentro do campo e o que ainda acontece (AGAMBEN, 2010, p. 166). Nesse entendimento os direitos no estado de exceção, no campo, são reduzidos e aparece a vida nua o homo sacer. Por isso, o campo é também o espaço biopolítico (jamais realizado) e onde não existe mediação, podendo ser considerado o paradigma político moderno, mas que opera na absoluta indiferenciação de fato e direito. O direito transmuta-se a todo momento em fato e o fato em direito, e no qual os dois planos tendem a tornar-se indiscerníveis. Não se compreende a especificidade do conceito nacional-socialista de raça e, justamente, a peculiar imprecisão e inconsistência que o caracteriza - se esquece-se que o corpo biopolítico, que constitui o novo sujeito político fundamental, não é uma quaestio facti (como, por exemplo, a identificação de um corpo biológico) nem uma quaestio iuris (a identificação de uma certa norma a ser aplicada), mas a aposta de uma decisão política soberana que opera na indiferenciação de fato e direito. (AGAMBEN, 2010, p. 167). 74

O campo como estado permanente de exceção, no qual a lei é suspensa e o indivíduo, despojado de toda humanidade, apresenta agora uma localização deslocante, em que toda forma de vida e toda norma podem ser virtualmente capturadas: O campo como localização deslocante é a matriz oculta da política em que ainda vivemos, que devemos aprender a reconhecer através de todas as suas metamorfoses, nas zones d attente de nossos aeroportos bem como em certas periferias de nossas cidades. (AGAMBEN, 2010, p. 171). Enganamo-nos profundamente se pensamos que essa prática política-jurídico foi uma peculiaridade da segunda guerra mundial. Agamben é claro ao afirmar que o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma do governo dominante na política contemporânea (AGAMBEN, 2004, p. 13). Se o estado de exceção era fundamentalmente uma suspensão temporária do ordenamento, torna-se uma nova e estável disposição espacial, na qual habita a vida nua. O sistema político passa a se pautar como um espaço que não ordena mais formas-de-vida e normas jurídicas em sentido determinado, mas contém intrinsecamente em seu interior uma localização deslocante que o excede, no qual todas as formas-de-vida e normas podem ser capturadas. O plano civilizatório ocidental, capitaneado por uma lógica econômica que se transformou num fim em si mesmo, e que por conta disso submete à política, à condição de sua dinâmica e justificação, implicou que a: modernidade e contemporaneidade que têm na racionalidade instrumental da técnica, a condição do pleno controle dos hábitos, costumes, da vida dos seres humanos, que habitam o campo de concentração global, com suas ilhas de prosperidade, de liberdade, de produção, de consumo, mas também de miséria, de violência, de morte cotidiana de milhares de vidas nuas. Dentro desse panorama, ainda permanece alguma perspectiva para se pensar a política que possa romper com a dinâmica estrutural da cultura ocidental? Todo o esforço de Agamben consiste em mostrar que a suspensão democrática da lei não é um fenômeno localizado, mas uma tendência hegemônica da modernidade, um fenômeno mundial. Agamben, 2010, é claro ao afirmar que o estado de exceção tende cada vez mais a se 75

apresentar como o paradigma do governo dominante na política contemporânea. O que dizer das reações desencadeadas pelo governo norte-americano diante doa atentados de 11 de setembro? Numa investida global, contra os chamados inimigos da civilização ocidental o governo norte americano sistematizou e tornou lei, em 26 de outubro de 2001, um documento que autoriza invasão de lares, espionagem de cidadãos, interrogações e torturas de possíveis suspeitos de espionagem ou terrorismo, sem direito a defesa ou julgamento. Agamben, portanto, não se reporta ao campo de concentração de Auschwitz como um acontecimento histórico e determinado restrito ao passado. Mas ao contrário é o mais absoluto espaço biopolítico. É o próprio paradigma do espaço político no ponto em que a política se torna biopolítica e o homo sacer se confunde virtualmente com o cidadão. Portanto, em Agamben presenciamos uma releitura dessa perspectiva que aponta para uma reinterpretação da natureza própria do âmbito político-jurídico. A questão da deposição da lei precisa ser compreendida no sentido não de uma destruição do direito, mas de desativação. Isto é, trata-se de torná-la inoperante, ou em outras palavras, significa utilizá-la de outra forma que a estrutura jurídico-política do mundo ocidental tem utilizado. Considerações finais Após breves apontamentos feitos, cabe-nos situar algumas considerações finais, evidentemente, sem pretensão de esgotar o tema, uma vez que os temas filosóficos são sempre dinâmicos e precisam de novas interpretações ou narrações para manterem-se vivos e atuais ou ainda pertinentes com a realidade de cada contexto ou época. Uma primeira consideração é o paradoxo posto entre a estrutura jurídica-política, isto é, a figura jurídica paradoxal captura a vida humana pela exclusão ao mesmo tempo em que a inclui pelo abandono, por isso, o campo ainda é a matriz oculta, o nómos do espaço político em que vivemos. O campo é o espaço em que o ordenamento jurídico está suspenso e em seu lugar se coloca a vontade soberana, afetando sempre o povo oprimido, mais frágil, ou seja, no campo a vida cai fora do direito. Podemos dizer também que direito e fato se confundem sem resí- 76

duos. Nas palavras de Agamben quem entrava no campo, movia-se em uma zona de indistinção entre externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito. Não apenas se suspendia a lei, mas confundia-se fato e direito e sem entender essa diferença ou imbricação, tudo o que aconteceu dentro do campo permanece ininteligível (2010, p. 166). No campo não existe discernimento entre fato e direito, entre norma e aplicação, entre exceção e regra, no entanto, ele decide. Ele é uma técnica operativa que explica a lógica de controle, repressão e extermínio de grupos populacionais ou pessoas que se tornam perigosas. E essa técnica, método, segundo Agamben está presente na sociedade atual, inclusive em sociedades democráticas. Por isso é preciso dar voz à testemunha, pois, no testemunho está a potencialidade política da linguagem, sua função simbólica de ressignificação dos fatos desde a perspectiva das vítimas. A testemunha é em si mesma um acontecimento que narra o sentido do acontecimento e tal peculiaridade lhe confere um estatuo de verdade. Mas para chegar a este estatuto de verdade é importante também imprimir uma noção de razão que não seja instrumental, denunciada por Adorno. É preciso evitar a administração da vida e procurar novas perspectivas políticas, jurídicas, econômicas para promover ou preservar a alteridade e o mundo das ideias em forma de constelações. Referências ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995.. Dialética negativa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009.. Mínima moralia. 2. ed. São Paulo: Ática, 1992. ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985. AGAMBEM, Giorgio. Homo sacer. O poder soberano e a vida nua I. 2. ed. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: UFMG, 2010.. Estado de exceção. Trad. Iraci D. Poleti. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. 77

. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.. O reino e a glória: uma genealogia teológica da economia e do governo. Trad. Selvino José Assmann. São Paulo: Boitempo, 2011. CASTRO, Edgardo. Introdução a Giordio Agamben: uma arqueologia da potência. Trad. Beatriz de Almeida Magalhães. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. DUARTE, André. De Michel Foucault a Giorgio Agamben: A trajetória do conceito da biopolítica. In: SOUZA, Ricardo Timm de; OLIVEIRA, Nythamar de. (Org.). Fenomenologia hoje III: bioética, biotecnologia, biopolítica. Porto Alegre: Edipucrs, 2008. FOUCAULT, Michel. Nascimento da biopolítica. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008. MATE, Reyes. Meia-noite na história: comentários às teses de Walter Benjamin Sobre o conceito de história. Trad. Nélio Schneider. São Leopoldo: Unisinos, 2011.. Memórias de Auschwitz: atualidade e política. Trad. Antônio Sidekum. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005. NASCIMENTO, Daniel Arruda. Do fim da experiência ao fim do jurídico: percurso de Giorgio Agamben. São Paulo: LiberArs, 2012. RUIZ, Castor. O Campo como paradigma biopolítico moderno. Revista IHU, ano XI, n. 372, set. 2011.. A sacralidade da vida nua na exceção soberana, a testemunha e sua linguagem: (re)leituras biopolíticas da obra de Giorgio Agamben. Cadernos IHU, ano 10, n. 39, 2012. 78