PULSANDO A SEMIÓTICA STANDARD E TENSIVA ATRAVÉS DA CANÇÃO 1

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Transcrição:

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 1 PULSANDO A SEMIÓTICA STANDARD E TENSIVA ATRAVÉS DA CANÇÃO 1 Rafael Batista Andrade 2 RESUMO Neste artigo temos o objetivo de analisar uma canção para problematizar a relação entre a significação e a recepção dos gêneros poema e canção. Isso nos permitirá refletir sobre até que ponto as condições de produção destes gêneros podem interferir em âmbitos gerais da recepção dos mesmos. Os pressupostos teóricos provem de diferentes vertentes da Semiótica Francesa, como a Semiótica Standard, a Semiótica da Canção, a Semiótica das Paixões e a Semiótica Tensiva. Esperamos que a presente análise possa contribuir para uma melhor apreensão da possibilidade e até mesmo da necessidade de articulação entre essas vertentes teóricas conforme o texto que o analista pretende analisar. Também esperamos contribuir para reflexões em torno da interferência de possíveis graus de complexidade de significação entre o poema e a canção e a forma de recepção desses gêneros. Palavras-chaves: canção, poema, texto, significação RESUMEN En este artículo tenemos el objetivo de hacer un análisis de una canción para problematizar la relación entre la significación y la recepción de los géneros poema y canción. Eso nos permitirá reflexionar sobre hasta cual punto las condiciones de producción de esos géneros pueden interferir en ámbitos generales de la recepción de los mismos. Los presupuestos teóricos vienen de distintas ramificaciones de la Semiótica Francesa, como la Semiótica Standard, la Semiótica de la Canción, la Semiótica de las Pasiones y la Semiótica Tensiva. Esperamos que el presente análisis pueda contribuir para una mejor comprensión de la posibilidad e incluso de la necesidad de articulación entre esas ramificaciones teóricas de acuerdo con el texto que el analista quiera analizar. También esperamos contribuir para reflexiones sobre las interferencias de posibles 1 Esta pesquisa foi orientada pela professora Drª.Gláucia Muniz Proença Lara - FALE/UFMG. 2 Mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos Linguísticos - POSLIN - FALE/UFMG.

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 2 grados de complejidad de significación entre el poema y la canción y la forma de reopción de esos géneros. Palabras-claves: canción, poema, texto, significación. 1. INTRODUÇÃO Não é raro, na atualidade da juventude brasileira, encontrar queixas sobre a leitura de poemas. Encontramos frequentemente como justificativa dessas reclamações, o fato desse gênero ser tomado como muito complexo. Entretanto, paradoxalmente, a canção é um gênero de grande aceitabilidade entre os jovens brasileiros e, às vezes, ela é composta por artistas que também são poetas, além de serem naturalmente compositores e intérpretes. Arnaldo Antunes é sem dúvida um desses artistas cuja produção perpassa esses dois gêneros discursivos 3. Mas, então, por que poema e canção não possuem a mesma repercussão pelo menos em casos como esse? Será que o poema tem mesmo como característica a exigência de um maior grau de compreensão do que a canção e, por isso, a preferência mais recorrente dos jovens brasileiros recai sobre esta última? Valendo-nos de algumas categorias da Semiótica Francesa, propomos uma análise da canção O pulso, composta por Arnaldo Antunes em parceria com Marcelo Fromer e Tony Belloto. Objetivamos com isso promover a elaboração de possíveis respostas para os questionamentos feitos acima, além de demonstrar a necessidade de articulação de categorias de diferentes fases dessa teoria que apresenta um quadro peculiar de evolução desde sua primeira elaboração proposta por Algirdas Julien Greimas. 3 Neste trabalho tomamos os termos gêneros discursivos e gêneros textuais como sinônimos.

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 3 2. OS PRIMEIROS PULSOS DA ANÁLISE O primeiro aspecto que salta aos olhos em relação à canção O pulso é o fato de seus versos, com exceção do refrão, serem compostos por palavras que aparentemente não possuem uma organização textual ou uma coerência textual: Peste bubônica câncer pneumonia / Raiva rubéola tuberculose anemia / Rancor cisticircose caxumba difteria / Encefalite faringite gripe leucemia 4. Entretanto, essa aparência de texto incoerente pode ser quebrada a partir deste conceito de coerência: a coerência se constrói por meio de processos cognitivos operantes na mente dos usuários, desencadeados pelo texto e seu contexto, razão pela qual a ausência de elementos coesivos não é necessariamente, um obstáculo para essa construção (KOCH, 2009, P. 46). Assim, vemos que seria perfeitamente plausível adotar como quadro metodológico para a análise da canção O pulso abordagens propostas pela Linguística Textual. Entretanto, não vamos analisá-la desse ponto de vista. Optamos partir de ferramentas teórico-metodológicas da Semiótica Francesa por estas razões: a) o fato de textos literários serem tomados frequentemente como corpus dessa teoria; b) as suas ferramentas teórico-metodológicas nos permitirão chegar a certos pareceres de sentido levando em conta os planos de conteúdo e de expressão. Antes de apresentarmos o quadro metodológico proposto para a analise da canção, já vamos apresentar a noção de texto adotada por essa teoria. Para a Semiótica greimasiana, texto é um todo significativo, resultado da junção dos planos de conteúdo e de expressão. O objetivo dessa vertente teórica é, portanto, descrever e explicar os procedimentos de composição discursiva, que se manifestam textualmente (FIORIN, 2008, p. 125). Para isso a semiótica criou alguns procedimentos metodológicos que, ao longo de seu percurso, sofreram influências de diferentes disciplinas, como a 4 O fato de se ter o conhecimento dessas palavras serem substantivos, por exemplo, não diz nada sobre uma análise textual. Substantivo é uma categoria gramatical e não textual. Com o conhecimento tradicional e problemático dessa categoria, o máximo que se poderia aproveitar para uma possível análise textual seria a de que os elementos em questão podem ser núcleos de um sintagma nominal.

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 4 antropologia, a fenomenologia e a linguística, com objetivos diferentes. Os seus princípios metodológicos estão voltados para os elementos intradiscursivos e, por isso, algumas vezes ela recebe críticas de ser uma disciplina estruturalista. O problema dessa designação é que ela tem recebido atualmente um valor pejorativo. O termo estruturalista nem sempre é compreendido até mesmo entre alguns especialistas, uma vez que para eles esse termo aciona automaticamente as estruturas da língua, como as divisões de classes de palavras, o que não ocorre em nenhuma das fases da Semiótica Discursiva. Segundo Cruz (2008, p. 5), em estudo sobre a mais recente fase dessa disciplina a Semiótica Tensiva, a Semiótica continua sendo estruturalista e a noção de estrutura continua sendo central na teoria. Ele lembra ainda que a noção de estrutura vem de Hjelmslev: estrutura é uma entidade autônoma de dependências internas (HEJELMSLEV apud CRUZ, 2008, p.5). Esse conceito ficará mais claro após a contextualização de algumas ramificações da Semiótica Discursiva e da aplicação de algumas categorias à canção O pulso. 3. O PERCURSO METODOLÓGICO E EVOLUTIVO DA SEMIÓTICA DISCURSIVA Por possuir diversas fases em seu rico processo de evolução, a teoria em questão não tem uma metodologia, mas metodologias, sendo que a base de todas elas está calcada em grande parte na noção de estrutura de Hjelmslev apresentada anteriormente. Para simplificar, tais metodologias serão revisadas a partir das nomenclaturas Semiótica Standard, Semiótica da Canção, Semiótica da Paixão e Semiótica Tensiva, derivadas das práticas semióticas contemporâneas, sempre ancoradas, de alguma forma, nos princípios fundadores postulados por Algirdas Julien Greimas. A Semiótica Standard estabeleceu uma metodologia dividida em dois planos, o plano do conteúdo e o plano da expressão. O primeiro pode ser apreendido por meio do percurso gerativo de sentido, que simula a geração do sentido em três níveis: o nível

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 5 fundamental, o nível narrativo e o nível discursivo, sendo que todos eles têm uma sintaxe, que é uma maneira de organizar os conteúdos, e uma semântica, que são os investimentos de sentidos estruturados pela sintaxe (FIORIN, 2008, p.127). Ressalte-se que essas organizações não possuem relação com as práticas de análise, sobretudo as sintáticas, da gramática tradicional. Ao contrário, esses termos são ferramentas teóricoanalíticas para análises do texto enquanto um todo significativo. O nível fundamental é o mais profundo e nele são analisadas as categorias mais gerais que organizam o sentido do texto. Assim, postula-se que existe uma ou mais de uma categoria semântica de base dois termos que se opõem que se submete(m) a uma aplicação de axiologização: eufórico (positivo) e disfórico (negativo), o que resulta na apreensão de uma organização lógica, que pode ser representada pelo quadrado semiótico. Por sua vez, o nível narrativo é o nível intermediário. Privilegiam-se nesse patamar da análise as relações entre sujeitos e objetos, ou mesmo entre sujeitos e sujeitos, sob o ponto de vista do estabelecimento e ruptura de contratos. Postula-se a criação de simulacros da ação do homem no mundo, baseando-se nas modalizações do sujeito, como a potencialização, a virtualização, a atualização e a realização. Foi a partir de um dos desdobramentos desse nível, a análise das modalizações do ser, que se chegou aos estudos das paixões. Denominada hoje Semiótica das Paixões, a proposta dessa vertente é estudar os estados afetivos dos sujeitos em decorrência de suas relações com os objetos e/ou com outros sujeitos. Por fim, no nível discursivo, o mais superficial do percurso gerativo de sentido, são analisadas as relações argumentativas que se instauram entre enunciador e enunciatário e as projeções enunciativas de pessoa, tempo e espaço. Além disso, analisam-se ainda nesse nível as figuras, os temas e as isotopias. Vale lembrar que são os elementos desse nível que evidenciam a especificidade de cada texto, uma vez que os diferentes textos podem ter um mesmo arranjo narrativo, mas relações discursivas diferentes. Por exemplo, nas canções de amor temos frequentemente uma mulher como objeto de desejo e um sujeito modalizado pelo querer. Entretanto, temas e figuras diferentes

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 6 podem realçar esse arranjo, pois em uma canção pode-se ter temas como a solidão, enquanto outras podem ter temas como a fidelidade, a idealização e o sexo. Também ressaltamos que a influência dos estudos linguísticos no nível discursivo foi modificada de Saussure para Benveniste a linguística enunciativa. De acordo com Bertrand (2003, p. 18) a Semiótica Francesa longe de permanecer num puro formalismo apreendendo o sentido através de suas descontinuidades e centrando-se na análise das estruturas enunciadas independente do sujeito do discurso ela foi progressivamente integrando em seu desenvolvimento as pesquisas em linguística da enunciação, ilustradas principalmente pelos trabalhos de É. Benveniste. A concepção semiótica do discurso, visto como uma interação entre produção (sujeito enunciador) e apreensão (ou interpretação, por um outro sujeito enunciador), foi pouco a pouco se aproximando da realidade da linguagem em ato, procurando apreender o sentido em sua definição contínua e estreitando cada vez mais o estatuto e a identidade de seu sujeito. Até aqui os mecanismos de análise estão voltados para o plano do conteúdo. Em alguns casos, isso será suficiente, pois há textos cujo plano de expressão simplesmente veicula o conteúdo. Entretanto, nos casos em que este é recriado pelas formas de expressão verbal e/ou não verbal, o plano de expressão será analisado tendo em vista as relações semissimbólicas que às vezes podem ocorrer e podem enriquecer a significação do texto analisado. É o que pode acontecer, por exemplo, com algumas canções, alguns poemas e com algumas telas de pintura. A preocupação em articular o plano do conteúdo com o plano de expressão pode ser vista de forma bastante nítida na Semiótica da Canção, que passamos a contextualizar agora. Denomina-se Semiótica da Canção a prática semiótica desenvolvida por Tatit, entre outros, para a análise de canções. O autor parte tanto de noções da Semiótica Standard como da Semiótica Tensiva, além de propor metodologias próprias, levando em consideração o plano de expressão musical, além da especificidade da canção enquanto texto sincrético. Para este trabalho, vale a retenção deste postulado: a canção temática simula a corporificação do tempo, enquanto a canção passional simula sua dissolução (LARA; MATTE, 2009, p. 118). Essa distinção será muito relevante para a análise que nos

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 7 propomos a fazer, uma vez que o ritmo musical passa a ser analisado em conjunto com o texto verbal. Por fim, a última vertente da Semiótica Francesa que vamos contextualizar neste trabalho é o que vem se denominando Semiótica Tensiva. O surgimento recente da Semiótica Tensiva deve-se à necessidade de articulação entre a análise dos estados de coisas e dos estados de alma. Assim, Fontanille e Zilberberg (2001) propõem que a categoria de base no nível fundamental, que é uma oposição e um tipo de gerenciamento de valores, seja desmembrada em duas valências, uma na profundidade extensa e outra na profundidade intensa (LARA; MATTE, 2009, p. 106). O sentido passou a ser visto, então, como um contínuo, o que é essencial em algumas análises, como é o caso de O pulso. 4. PULSANDO A SEMIÓTICA STANDARD E TENSIVA ATRAVÉS DA CANÇÃO A canção O pulso não apresenta uma organização que tem por finalidade explicitar uma tese defendida, como muitas vezes outros textos possuem. Nesse sentido, algumas categorias do percurso gerativo de sentido da Semiótica Standard são essenciais para revelar a construção do sentido da canção. Assim, pode-se perceber o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz. Para iniciarmos essa análise, apresentamos as noções de tema e figura presentes na Semiótica Standard. Para Barros (2008, p. 69), tematizar um discurso consiste em formular os valores de modo abstrato e organizá-los em percursos [...] para examinar os percursos devem-se empregar princípios da análise semântica e determinar os traços ou semas que se repetem no discurso e o tornam coerente. Ainda segundo a autora, pelo procedimento de figurativização, figuras do conteúdo recobrem os percursos temáticos abstratos e atribuem-lhes traços de revestimento sensorial (BARROS, 2008, p.72). Uma análise dos temas e figuras, através da recorrência de traços sêmicos presentes no texto, revela que essa canção é predominantemente figurativa, pois todos

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 8 os versos possuem figuras que são organizadas por um único tema: doença. Entretanto, há entre essas figuras alguns elementos que funcionam como desencadeadores de isotopia 5, uma vez que eles propõem um novo plano de leitura: <rancor, estupidez, ciúmes, culpa>. Através deles, o sentido de doença é ampliado. Já não se trata apenas de infecções biológicas do corpo ou da mente de um sujeito, mas também de seu estado afetivo em decorrência das relações entre sujeitos. Segundo Fiorin (2008, p. 128) a articulação das relações humanas se dá por meio de polêmicas ou de contratos. Isso revela que os riscos de vida não são decorrentes somente dos desequilíbrios do estado de saúde por fatores biológicos -, mas também por problemas político-afetivos que desencadeiam estados passionais, no caso da canção. Esses problemas político-afetivos são decorrentes da forma de organização de nossa sociedade atual. Sabemos que o sujeito imerso numa sociedade tão complexa como a de hoje se sente às vezes menor que os problemas sociais e políticos impostos pela sociedade, já que os contratos que garantiriam a cidadania muitas vezes sofrem rupturas. Temos que nos lembrar que o século XX, contexto da canção analisada, foi marcado por doenças como a depressão que é desencadeada, entre outros fatores, por problemas de relações humanas. Assim, postulamos que os estados passionais ativados pela canção (como indignação e culpa) foram desencadeados por problemas políticoafetivos. Para chegarmos ao que foi exposto no parágrafo anterior, partimos da análise das paixões, que passamos a explicitar. Na Semiótica greimasiana, as paixões são vistas como efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito. Há que se considerar a distinção metodológica entre o sujeito de fazer e o sujeito de estado. O primeiro age. Ele transforma os estados, altera a junção conjunção ou disjunção do sujeito de estado. Este é o que sofre as paixões. Na canção o pulso, o sujeito de fazer quer entrar em conjunção com o objeto vida 6. Entretanto, o sujeito desta canção é um sujeito virtual 5 Para a Semiótica Francesa a isotopia é definida como a recorrência de categorias sêmicas ao longo de um texto, sejam elas temáticas (abstratas) ou figurativas (LARA, p.70) e o desencadeador de isotopia é um elemento que obriga a proposta de um novo plano de leitura. 6 Como veremos mais a frete, na realidade o sujeito de fazer quer entrar em conjunção com o objeto vida abundante. No entanto, a percepção desse contínuo é vista por meio da Semiótica Tensiva. Por isso,

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 9 ou virtualizado. Ele é um sujeito em disjunção com a vida, o que pode ser visto através de uma sanção pressuposta, em que alguém 7 o julga e o castiga por meio de doenças, ao invés de vida. Por isso afirmamos que o sujeito de estado desta canção sofre de paixões como a indignação e a culpa. No nível fundamental, chega-se à seguinte organização mínima do sentido. De O pulso ainda pulsa tira-se o primeiro termo do membro do par de oposição semântica, que é vida, o que revela o outro par como morte, sendo que o primeiro é eufórico e o segundo disfórico. Ou seja, há uma valorização da vida e uma desvalorização da morte. Assim, tem-se esta representação lógica. Vida Morte Não morte Não vida Entretanto, como postulam Lara e Matte (2009, p. 105) o quadrado semiótico é operacional e dá conta da análise de muitos textos e mesmo de muitas preocupações analíticas, mas não de todas. Por isso, é preciso avançar para algumas categorias da Semiótica Tensiva para que se possa ver a passagem de um termo (morte) a outro (vida) como gradações dentro de um (campo) contínuo. O grande número de doenças presente na canção revela um campo de presença favorável à morte. Em outros termos, a canção está baseada na operação sintática de aumentar um aumento. Essa operação faz parte da sintaxe intensiva. Nela o sujeito pode aumentar um aumento ou uma diminuição ou diminuir um aumento ou uma diminuição. optamos por dizer aqui somente vida. Justamente para percebermos a necessidade da articulações entre essas vertentes. 7 Como esse alguém não é explicitado na canção, partimos para uma análise do contexto social feita anteriormente. No entanto, ressaltamos que o contexto para a Semiótica Francesa é compreendido como um diálogo entre textos, numa acepção muito próxima à de intertextualidade. Para nós, no entanto, trata-se do contexto sócio-histórico-ideológico que permitiu a emergência dos textos em foco, como propõem, entre outras, a teoria bakhtiniana e a Análise do Discurso de linha francesa.

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 10 De acordo com Cruz (2008, p. 25) os aumentos dos aumentos, assim como as diminuições das diminuições, estariam, de alguma forma, fora da normalidade e pertenceriam à categoria do exagerado, do desmedido, do que se tornou muito intenso. Assim, com o aumento das doenças, ter-se-ia, por implicação, a morte. Nesse caso, a sua ocorrência se tornou bastante intensa e a sua não ocorrência passou a ser vista como algo fora da normalidade. Algo bastante exagerado, já que culturalmente temos estabelecido que as doenças estão correlacionadas com a morte. Mas nessa canção não há implicação, e sim uma concessão, o que abala nossas convicções causais entre doença e morte, pois, apesar do aumento das doenças, tem-se vida. E é nesse ponto que se percebe algo que o quadrado semiótico não deu conta, porque, embora a vida seja axiologizada positivamente, ela é evidenciada sob sua condição mínima: o pulso ainda pulsa. Isso revela interpretações de crítica social, pois muito se discutiu e se discute sobre os níveis de vida dos brasileiros: extrema pobreza, viver com dignidade, viver bem, viver em abundância. E essa revelação é ainda mais intensa, pois há que se lembrar que a qualidade de vida é de responsabilidade política, a qual é ineficaz, como se viu anteriormente pelo desencadeamento passional. Levando em conta que a canção é um texto literário e sincrético, como o faz a Semiótica da Canção, cabe, por fim, um olhar sobre o seu plano de expressão, tanto em seus elementos verbos-visuais como em seus elementos rítmicos (musicais). No encarte do Cd, a letra dessa canção apresenta uma quantidade significativa de versos com quatro sílabas tônicas ou mais, enquanto o refrão apresenta somente duas. Isso quer dizer que há um sincretismo sobre a concessão da vida conforme tinha sido dito anteriormente, pois o número maior de doença é re-significado pelo número maior de sílabas tônicas em contrapartida de um número menor, que se relaciona com a vida. Isso também acontece com o ritmo (rapidez vs lentidão), em que a canção, por ser temática, simula a corporação do tempo: o batimento mais acelerado, enfatizado pelo número maior de sílabas tônicas, aproxima-se da morte, enquanto o batimento mais equilibrado aproximase da vida.

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 11 5. CONCLUSÃO Há algo notável nessa análise. A canção analisada possui uma complexidade, em termos de significação, muito grande. Perceber o seu caráter crítico não é uma tarefa simplória, pois exige um profundo mergulho textual. Isso pode ser feito, por exemplo, através de categorias de teorias que se o ocupam da significação, como é o caso da Semiótica Discursiva. Mas, ressalte-se que o texto exigiu elementos analíticos de várias fases dessa teoria. Isso revela a importância de sua evolução e acentua o seu caráter geral: a possibilidade de se analisar os mais diversos textos de forma clara, objetiva e com a precisão do rigor científico. Assim, não se pode dizer que a complexidade de sentido é um fator inerente ao gênero discursivo poema, pois como podemos observar a canção também pode ter um alto grau de complexidade no seu processo de significação. A frequência do uso gênero discursivo poema parece estar muito além da questão da significação. Embora haja indícios de que a falta de compreensão do poema faz com que este tenha pouca recepção entre os jovens brasileiros, há que se atentar para um fato essencial: esses indícios originam-se no contexto escolar. Nesse sentido, cobram-se do aluno níveis de compreensão do poema que muitas vezes não lhe são cobrados para a canção. Tudo indica, então, que o problema dos jovens com o poema está ancorado na forma de sua recepção. Alguns níveis de compreensão do poema parecem estar demasiadamente didatizados, o que nem sempre ocorre com a canção. Seria pertinente cobrar desse público o nível de compreensão de O pulso exposto neste trabalho? O que acontece é que O pulso, por exemplo, é um texto a que certamente muitos jovens brasileiros tiveram acesso por outros meios, como Cd, rádio, TV, celular. Mas e os poemas, por exemplo, do próprio Arnaldo Antunes? Será que estes estão esperando um parecer do sentido da escola para então serem lidos com frequência e de forma voluntária?

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 12 REFERÊNCIAS BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2008. BERTRAND, Denis. Caminhos da semiótica literária. Bauru: São Paulo: EDUSC, 2003. FERREIRA DA CRUZ JUNIOR, Adilson. Semiótica tensiva: princípios básicos. São Paulo: 2008. FIORIN, José Luiz. A semiótica discursiva. In: LARA, G. M. P.; MACHADO, I. L. EMEDIATO, W. Análises do discurso hoje. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. v. 1. KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Introdução à lingüística textual: trajetória e grandes temas. São Paulo: Martins Fontes, 2009. LARA, G. M. P; MATTE, A. C. F. Ensaios de semiótica: aprendendo com o texto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009; TITÃS. O pulso. Intérprete: Titãs. In: Titãs Acústico MTV. Rio de Janeiro: Wagner Music Brasil Ltda, 1997. 1 CD. Faixa 6. ANEXO O PULSO Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Tony Belloto O pulso ainda pulsa O pulso ainda pulsa Peste bubônica câncer pneumonia Raiva rubéola tuberculose anemia Rancor cistircicose caxumba difteria Encefalite faringite gripe leucemia

ReVeLe - nº 3 - Agosto/2011 13 O pulso ainda pulsa O pulso ainda pulsa Hepatite escarlatina estupidez paralisia Toxoplasmose sarampo esquizofrenia Úlcera trombose coqueluche hipocondria Sífilis ciúmes asma cleptomania O corpo ainda é pouco O corpo ainda é pouco Reumatismo raquitismo cistite disritmia Hérnia pediculose tétano hipocrisia Brucelose febre tifóide arteriosclerose miopia Catapora culpa cárie câimbra lepra afasia O pulso ainda pulsa O corpo ainda é pouco