CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA VARIABILIDADE DA HEMOGLOBINA GLICADA NUMA POPULAÇÃO PEDIÁTRICA

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Transcrição:

ARTIGO ORIGINAL Acta Med Port 2011; 24: 913-918 CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS DA VARIABILIDADE DA HEMOGLOBINA GLICADA NUMA POPULAÇÃO PEDIÁTRICA Maria Inês SANTOS, Catarina RESENDE, Frederico ROSÁRIO, Joana CAMPOS, Graça CARVALHO, Cecília FIGUEIREDO R E S U M O Introdução: A diabetes mellitus tipo um é a segunda doença crónica mais frequente da infância, apresentando graves consequências quando mal controlada. O parâmetro mais útil para avaliar o controlo metabólico é a hemoglobina glicada (HbA1c), sendo essencial conhecer as causas da sua variabilidade. Objectivos: Avaliar o efeito da idade e tempo de doença no valor de HbA1c; Avaliar a relação entre o valor de HbA1c e os valores de lipidémia e microalbuminúria. Material e Métodos: Estudo observacional, transversal e analítico, com base nos dados obtidos da consulta dos processos de todos os doentes da Consulta de Diabetologia Infantil. As variáveis estudadas foram: sexo, idade actual, idade de diagnóstico, controlo metabólico e complicações crónicas. O tratamento dos dados foi efectuado com os programas Excel2003 e SPSS 15.0. Adoptou-se o nível de significância de 5%. Resultados: Obteve-se uma população de 96 diabéticos. A média do valor de HbA1c no último ano foi de 8,3%, sendo que em um terço era inferior ou igual a 7,5%. Constatou-se que o valor de HbA1c nos adolescentes (8,4%) foi mais elevado do que nas crianças (7,8%) (p=0,03). Verificou-se ainda que os que tinham doença com mais de cinco anos de evolução apresentavam valores mais elevados de HbA1c (9% vs 7,8%; p<0,01).verificou-se ainda a existência de microalbuminúria em 9% e de dislipidémia em 10%. Constatou-se um valor de HbA1c mais elevado nos que tinham dislipidémia (9,7% vs 8%; p=0,001) e naqueles em que se desenvolveu microalbuminúria (10% vs 8%; p <0,001). Conclusão: Neste estudo verificámos que os adolescentes e os que têm doença com maior duração apresentam valores de HbA1c mais elevados. Verificámos ainda que as consequências de um controlo metabólico inadequado, como a dislipidémia e a microalbuminúria, podem manifestar-se ainda em idade pediátrica. M.I.S., C.R., J.C., G.C., C.F.: Consulta de Diabetologia Infantil. Serviço de Pediatria. Hospital de São Teotónio. Viseu. Portugal. F.R.: Unidade de Cuidados de Saúde Primários Quinta da Lomba. Portugal. 2011 CELOM S U M M A R Y CAUSES AND CONSEQUENCES OF GLYCATED HEMOGLOBIN VARIABILITY ON PEDIATRIC POPULATION Background: Type one diabetes mellitus is the second most frequent disease in childhood, presenting with serious complications when inadequately controlled. The most useful measure of metabolic control is hemoglobin A1c (HbA1c), being essential the awareness of the causes of its variability. Aim: to evaluate the effect of age and time of disease on HbA1c; to evaluate the relationship between HbA1c and serum lipid and microalbuminuria values. Methods: Observational, transversal and analytic study, based on data obtained in the files of all patients that attain the Pediatric Diabetic Consult. The studied variables were: sex, actual age, Recebido em: 19 de Maio de 2010 Aceite em: 11 de Abril de 2011 913 www.actamedicaportuguesa.com

diagnostic age, metabolic control and chronic complications. Statistical analysis was made with Excel2003 and SPSS 15.0. A significance level of 5% was adopted. Results: a 96 diabetic population was obtained. Last year HbA1c average was 8,3% and was less than 7,5% in one third of the cases. Adolescent s HbA1c (8,4%) was significantly higher than in children (7,8%) (p=0,03). Diabetics with a disease longer than five years presented higher HbA1c values (9% vs. 7,8%; p<0,01). Microalbuminuria was present in 9% and lipid abnormalities in 10%. The ones with dyslipidemia had a significantly higher HbA1c (9,7% vs. 8%; p=0,001) as well as the ones with microalbuminuria (10% vs. 8%; p<0,001). Conclusions: In this study it was verified that adolescents and diabetics with a longer time of disease have higher HbA1c. It was also verified that the consequences of a poor metabolic control, such as microalbuminuria and lipid disorder, can be observed even at pediatric age. INTRODUÇÃO A diabetes mellitus tipo 1 (DM1) é uma doença metabólica caracterizada por hiperglicémia crónica devida a secreção deficiente ou inapropriada de insulina. É a segunda doença crónica mais frequente na infância, não afectando apenas a criança, mas também a sociedade envolvente 1,2. O número de crianças e adolescentes com DM1 tem vindo a crescer de forma regular por todo o mundo, observando-se uma maior incidência nos países com maior poder sócio-económico 2-4. Aparentemente, este crescimento está relacionado com factores ambientais 1,5. O sucesso do controlo da DM1 depende da aptidão e motivação para o controlo. Contudo, para o atingir, os diabéticos e as suas famílias têm de compreender a complexidade desta condição e aprender a controlá-la nas mais diversas circunstâncias 1. É essencial que, desde o primeiro dia, haja um trabalho conjunto dos profissionais de saúde com experiência nesta patologia, de modo a apoiar e educar não só os doentes, mas também as suas famílias 1,6. A investigação tem destacado as graves consequências de um controlo deficitário da DM1 as quais são frequentemente negligenciadas pelos diabéticos e suas famílias 7. A Hemoglobina glicada (HbA1c) é a medida mais útil para o controlo metabólico e a única a demonstrar boa correlação com as complicações vasculares 1,8,9. O Diabetes Control and Complication Trial (DCCT) demonstrou que quando a HbA1c é superior a 7,5%, o risco de complicações aumenta significativamente 1,8,9. A International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes (ISPAD) 7 define como 7,5% a HbA1c alvo. Porém, é também referido que este valor não deve servir para culpabilizar, mas ser utilizado como veículo de discussão das causas da sua variabilidade de forma a implementar estratégias para melhorar o controlo metabólico, minorando as complicações a longo prazo 7. Este estudo teve como objectivos avaliar o efeito da idade e tempo de doença no valor de HbA1c e analisar a relação entre o valor de HbA1c e os valores de lipidémia e microalbuminúria. MATERIAL E MÉTODOS Efectuou-se um estudo observacional, transversal e analítico numa Consulta de Diabetologia Infantil. Para tal, recolheram-se informações constantes nos processos clínicos de todos os doentes que frequentavam a consulta. A recolha de dados foi efectuada entre Maio e Junho de 2008. As variáveis estudadas foram: sexo, idade actual, idade de diagnóstico, controlo metabólico e complicações crónicas. Formaram-se grupos etários de acordo com os gruposalvo educacionais formados pela ISPAD 7 : inferior a um ano lactente; um a cinco anos pré-escolares; seis a nove anos escolares e maiores de nove anos adolescentes. Para avaliação do controlo metabólico consideraram-se as médias dos valores de HbA1c do último ano, excluindose os dados relativos aos que tinham diagnóstico há menos de um ano, considerando-se como valor ideal os 7,5% 7. A HbA1c foi avaliada através da colheita de sangue capilar no dia da consulta, utilizando a DCA2000. As complicações crónicas foram avaliadas de acordo com as normas da ISPAD 7. Para avaliar a retinopatia, os diabéticos com mais de 11 anos e com dois anos de doença ou com mais de nove anos e com cinco anos de doença, são avaliados anualmente em consulta de oftalmologia. Relativamente à lesão renal, foi considerada microalbuminúria a presença de valores entre 30 e 300 mg/24 horas, em duas ou mais amostras repetidas, num período de três a seis meses. O rastreio dos factores de risco para doença macrovascular foi efectuado com recurso ao perfil lipídico e à medição de tensão arterial. Os valores limite foram de 2,6 mmol/l (100 mg/dl) para o LDL e 1,7 mmol/l (150 mg/dl) para os triglicéridos. O HDL deveria ser idealmente superior a 1,1 mmol/l. Foi considerada hipertensão arterial valores de tensão arterial acima do www.actamedicaportuguesa.com 914

percentil 95 para a idade, estatura e sexo em três medições separadas no tempo 10. Os dados, depois de recolhidos e codificados, foram transferidos para uma matriz inserida numa aplicação informática Excel, versão 2003 (Microsoft Corporation, EUA) para tratamento estatístico, realizado com recurso aos softwares SPSS, versão 15 para Windows (SPSS, IL, EUA) e R, versão 2.7.0 (R Development Core Team, Vienna, Austria). O tratamento dos dados teve uma componente descritiva com distribuição de frequências, bem como analítica. Foram utilizados os testes χ 2 e exacto de Fisher para testar associações entre variáveis, teste t para duas amostras independentes e oneway ANOVA para comparação de médias e teste post-hoc de Tukey para determinação de grupos. Para a tomada de decisão adoptou-se o nível de significância de 5%. Quadro 1 - Distribuição por grupos etários na data do diagnóstico Grupo etário Frequência Lactentes 8 1 5 anos 38 6 9 anos 23 Adolescentes 31 Quadro 2 - Distribuição por grupos de duração da doença Duração da doença Frequência <1 ano 13,5 1 5 anos 51 6 9 anos 29,2 10 anos 6,3 Fig. 2 - Diferenças nos valores de HbA1c de acordo com a presença de dislipidémia * Teste t, α=5% Quadro 3 - Distribuição dos valores de HbA1c Valor de HbA1c Frequência 7,5 33,7 7,5 8 15,7 8 9 22,9 >9 27,7 Fig. 1 - Diferenças entre as médias de HbA1c de acordo com o tempo de evolução de doença. * Teste de Tukey, α=5% Fig. 3 - Diferenças nos valores de HbA1c de acordo com a presença de microalbuminúria * Teste t, α=5% 915 www.actamedicaportuguesa.com

RESULTADOS Obteve-se uma população de 96 diabéticos, sendo 52,1% (n=50) do sexo masculino e 47,9% (n=46) do sexo feminino. A idade actual média foi de 12,1 anos (±4,37), com um máximo de 19 e um mínimo de três anos. Dos diabéticos seguidos na nossa consulta, 70,8% são adolescentes, 18,8% têm entre cinco e dez anos e 10,4% têm menos de cinco anos de idade. A idade média de diagnóstico foi de 6,9 anos, com um máximo de quinze anos e um mínimo de nove meses de idade. Foi no grupo etário do um aos cinco anos de idade que se verificou uma maior frequência de diagnósticos (38%) (Quadro 1). Não se verificou um aumento do número de diagnósticos abaixo dos cinco anos de idade ao longo dos anos (teste de Fisher, p=0,539). Relativamente à duração da doença, a média foi de 4,9 anos (±3,5), com um máximo de quinze anos e um mínimo de 1 mês. Analisando o Quadro 2 pode verificarse que mais de metade dos doentes que frequentam a nossa consulta têm a doença há menos de cinco anos. Verificou-se a presença de dislipidémia em cerca de 10% dos doentes, sendo que 4% apresentavam apenas hipercolesterolémia, 3% apresentavam apenas hipertrigliceridémia e 3% apresentavam ambas. Não foi encontrado nenhum caso de retinopatia ou neuropatia periférica. A microalbuminúria estava presente em 9% dos doentes, todos com mais de cinco anos de doença. Um dos doentes apresentava hipertensão arterial. A média do valor de HbA1c foi de 8,3% (±1,5), sendo que em cerca de um terço dos casos era inferior ou igual a 7,5%. (Quadro 3). Verificámos que o valor de HbA1c nas crianças (7,8%) era inferior ao dos adolescentes (8,4%) (teste t, p=0,03). Analisando o tempo de evolução de doença verificou-se que pelo menos um dos grupos considerados diferia significativamente dos outros, relativamente às médias dos valores de HbA1c (oneway ANOVA, p <0,001). A análise post-hoc com o teste de Tukey mostrou a presença de dois grupos com diferenças significativas do valor de HbA1c: os que têm a doença há menos de cinco anos e os que apresentam mais de cinco anos de evolução de doença. Os que têm diagnóstico mais recente apresentam valores de HbA1c menores. (Figura 1). Por fim, verificámos que os valores médios de HbA1c foram significativamente superiores naqueles que apresentavam dislipidémia (9,7% vs 8%) (Figura 2) e naqueles em que se desenvolveu microalbuminúria (10% vs 8%) (Figura 3). DISCUSSÃO No presente estudo constatámos que os adolescentes e os diabéticos que têm a doença há mais tempo apresentam valores de HbA1c mais elevados. Verificámos ainda que as consequências de um controlo metabólico inadequado podem manifestar-se mesmo durante a idade pediátrica, deixando antever complicações futuras a curto prazo. Na nossa consulta, que à data da colheita dos dados compreendia 96 diabéticos, verificou-se que o maior número de diagnósticos foi efectuado entre o um e os cinco anos de idade. No entanto, ao contrário do que tem vindo a ser demonstrado noutras séries 11, o número de diagnósticos abaixo dos cinco anos de idade não tem aumentado nos últimos anos. O número de casos diagnosticados antes do ano de idade foi baixo, o que está de acordo com resultados já publicados 2. O principal objectivo do tratamento da DM1 é atingir um controlo metabólico adequado, sem prejuízo da qualidade de vida imediata, adiando o aparecimento das complicações crónicas. De acordo com as referências para os valores de HbA1c propostas pela ISPAD, 33,7% da nossa população apresentava controlo metabólico óptimo e 49,4% apresentavam valores de HbA1c até 8%. Estudos nacionais apresentam valores que vão desde 9% dos doentes com valores de HbA1c inferiores a 7,6% 12 até 47,6% dos doentes abaixo com valores inferiores a 8% 13. Para obter um controlo metabólico adequado há que conhecer as diversas condicionantes que o afectam, de forma a desenhar estratégias de intervenção dirigidas a grupos problemáticos. Fomos então verificar se algumas características que, de acordo com a literatura, afectam o controlo metabólico a idade e o tempo de duração de doença também o eram nos diabéticos da nossa consulta 7. Desta forma verificámos que no grupo dos adolescentes o valor de HbA1c era significativamente mais elevado (8,4%) em relação ao das crianças (7,8%). No DCCT 8,9, os adolescentes sob insulinoterapia intensiva apresentavam um valor médio de HbA1c de 8,1%. De todos os grupos etários, os adolescentes são os que actualmente se encontram mais longe do objectivo proposto pela ISPAD, reflectindo o controlo inadequado que frequentemente acompanha uma maior independência nos seus cuidados, bem como as mudanças a nível psicológico e hormonal 7. Para além da idade, verificámos ainda que a duração da doença também influencia o controlo metabólico, ou seja, na nossa população, quando estava presente há mais de cinco anos, o valor de HbA1c foi significativamente mais elevado. Há que tomar atenção redobrada a estes doentes, investindo mais tempo na motivação que provavelmente se vai perdendo com os anos. O controlo metabólico inadequado é conhecido www.actamedicaportuguesa.com 916

como potenciador de lesão de órgão alvo 7,14. Entre os mais afectados estão o rim e o sistema vascular. A nefropatia diabética constitui uma das principais causas de insuficiência renal terminal, tendo como indicador precoce a microalbuminúria 6,14. Verificámos a presença de microalbuminúria em 9% dos casos, apresentando estes diabéticos valores de HbA1c superiores aos que não desenvolveram esta complicação. Cerca de 10% dos doentes apresentavam dislipidémia, associando-se a este grupo valores de HbA1c maiores do que os que apresentavam um perfil lipídico normal. Tendo em conta estas constatações poderá utilizar-se esta informação para demonstrar aos diabéticos e suas famílias que o início das complicações crónicas frequentemente se encontra ainda durante a idade pediátrica, quando o controlo metabólico é inadequado. O presente estudo tem algumas limitações, nomeadamente o facto de realizado apenas numa consulta hospitalar, não sendo representativo, pelo que não se pode inferir os resultados para outras populações, sem estudos mais alargados. Relativamente à análise do impacto da idade e do tempo de doença no valor de HbA1c há também que ter atenção o facto de poder haver alguma sobreposição na análise destas variáveis, uma vez que parte dos que têm doença há mais tempo, são também adolescentes. Em estudos futuros seria interessante determinar outros factores que influenciam o controlo metabólico, bem como avaliar o impacto da implementação de estratégias destinadas a melhorar os indicadores de controlo metabólico e das complicações subsequentes. CONCLUSÃO Verificámos que as crianças que actualmente são seguidas na nossa Consulta de Diabetologia Infantil apresentam valores de HbA1c muito próximos dos obtidos em estudos internacionais. Constatámos que, na nossa população, os adolescentes e os diabéticos que têm a doença há mais tempo apresentam valores de HbA1c mais elevados. Verificámos ainda que as consequências de um controlo metabólico inadequado podem manifestar-se mesmo durante a idade pediátrica, deixando antever complicações futuras a curto prazo. A informação obtida neste estudo poderá ser utilizada como base de discussão nas consultas e de motivação dos diabéticos e suas famílias com vista a atingir um controlo metabólico mais adequado. Conflito de interesses: Os autores declaram não ter nenhum conflito de interesses relativamente ao presente artigo. Fontes de financiamento: Não existiram fontes externas de financiamento para a realização deste artigo. BIBLIOGRAFIA 1. HANAS R: Diabetes Tipo 1 em Crianças, Adolescentes e Jovens Adultos. 3ª edição. Lisboa: Lidel 2007 2. International Society for Pediatric and Adolescent Diabetes (ISPAD) Clinical Practice Consensus Guidelines 2006-2007. 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