Sobre gênero e preconceitos: Estudos em análise crítica do discurso. ST 2 Andréa Mazurok Schactae Polícia Militar do Paraná Universidade Estadual de Ponta Grossa Palavras chaves: polícia feminina, representação da mulher policial, masculino e feminino na polícia militar do Paraná. Policial Feminina: A representação do feminino na legislação da PMPR O quartel da Polícia Militar do Paraná passou, a partir do final da década de 1970, a abrigar mulheres policiais. Até aquele momento usar a farda, a arma e dirigir viaturas da PMPR eram uma prática de homens, logo eram elementos construídos e construtores da masculinidade daqueles que as realizavam. O poder de ser policial era um poder de homens e com o ingresso de mulheres ocorreu uma ruptura na tradição da exclusividade masculina em espaços símbolo da masculinidade, os quartéis. Em 20 de outubro de 1977 1 foram incluídas as primeiras mulheres na PMPR. Eram quarenta e duas (42) que iniciaram o processo de formação policial no Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP), na Academia Policia do Guatupê, em São José dos Pinhais. Em novembro de 1978 ingressaram na PMPR mais quarenta e duas (42) mulheres que participaram do 1 º Curso de Formação de Sargentos Feminino, realizado pelo CFAP. Em dezembro de 1977 foi publicada uma Diretriz do Comando Geral da PMPR que definia o papel das mulheres policiais na instituição. Documento esse que não foi encontrado nos arquivos da PMPR. Todavia há um espaço de tempo entre o ingresso das primeiras mulheres, que ocorreu em outubro e a publicação da diretriz. Isso é um indicio de que a instituição não tinha noção de qual seria o papel das policiais mulheres. Em 27 de novembro de 1979, foi revogada a diretriz de 1977 e passou a vigorar uma outra identificada como: Finalidade e emprego da organização da policia feminina. 2 Esse texto pode ser lido como uma representação 3 do feminino para os homens que forjaram a lei. Tornando-se um elemento construtor da policial militar. Ao escreverem a lei os oficiais da PMPR expressam representações construídas e construtoras da instituição policial e da sociedade com a qual ela se relaciona. Ao analisar a lei que definiu a finalidade e o emprego da policia feminina, se identifica que a policial deveria ter o mesmo papel que deveriam pertencer às mulheres naquele momento. Pois com relação à finalidade básica a diretriz definia que era função das policiais: orientar, proteger e informar a população especialmente o menor, a mulher, e o ancião na situação de
abandono. 4 Esse trecho do documento define a função das mulheres e junto a qual população deveria atuar. A mulher policial foi construída a partir do papel da mulher na sociedade. As mulheres cabem o espaço privado, a proteção e a orientação. Aos homens eram destinados os espaço público, a violência e a força. A existência dessa diferença entre as finalidades dos policiais possibilita aos homens manter o domínio sobre as práticas que marcam a masculinidade. Pierre Bourdieu, expressou de forma clara sobre a relação de reprodução das estruturas estruturadas e estruturantes do habitus. Sendo o produto da inscrição no corpo de uma relação de dominação, as estruturas estruturadas e estruturantes do habitus são o principio de atos de conhecimento e reconhecimento práticos da fronteira mágica que produz a diferença entre os dominados, isto é, sua identidade social, inteiramente contida nessa relação. Esse conhecimento através do corpo é o que leva os dominados a contribuir para sua própria dominação ao aceitar tacitamente, fora de qualquer decisão da consciência e de qualquer manifestação da vontade, os limites que lhe são impostos, ou mesmo produzir ou ao reproduzir por sua prática, limites abolidos na esfera do direito. 5 O discurso da portaria que dispunha sobre a Organização das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares, 6 também traz em seu texto elementos da diferença entre o espaço masculino e feminino nas polícias militares. Segundo o texto, nas atividades normais de policiamento verificam-se acentuadas dificuldades para a efetiva ação no trato com menores delinqüentes ou abandonados e com mulheres envolvidas em ilícitos penais. (...). Após a adoção de instrumentos legais, poderão ser criadas organizações de Polícia Feminina com determinados graus hierárquicos, assemelhados ao da hierarquia militar. 7 Havia uma preocupação de se criar uma outra organização, que ficaria subordinada a organização já existente. Os graus hierárquicos deveriam ser assemelhados e não iguais, pois a igualdade resultaria em transmissão do poder simbólico da instituição para as mulheres, dessa forma ocorreria uma perca do domínio masculino sobre a instituição. Com relação a contradição dentro do referido texto identifica-se o discurso com relação a finalidade básica da policia feminina, que em um momento aparece como trabalhar com menores, mulheres e anciãos, e em outro essa atividade deveria ser apenas de caráter complementar. Isso demonstra a dificuldade que os próprios relatores tinham em compreender a necessidade da presença da mulher em um meio masculino No entanto diz o texto devem ser exigidos os mesmos padrões de desempenho profissional atribuídos ao policial-militar do sexo masculino, todavia as mulheres não poderiam portar arma ostensivamente.
No decorrer do texto foram citadas as atividades que deveriam ser realizadas pelas policiais femininas, que deveria ser cuidar de crianças e velhos. Essa atividade de assistência é parte da representação do feminino na sociedade. Cabe a mulher ser mãe e cuidar das crianças e dos idosos. Todavia a policia feminina não é um grupo fardado de assistentes sociais, embora faça uso destes instrumentos em benefício das atividades polícias. Ao se referir as ações a serem realizadas pelas mulheres estão empenhadas em praticamente todas as formas de policiamento: ostensivo a pé; ostensivo motorizado, ostensivo de postos (terminais de transporte rodoviário e ferroviário, posto de saúde, aeroporto, estádios de futebol etc.). Todavia a atuação das policiais deveria ser com relação a menores e mulheres, registro de desaparecimento de pessoas, administração de primeiros socorros, informações, entre outras. A diretriz também ser refere ao ensino durante o curso de formação das policiais. Esse deveria ser adaptado de forma a atender às diferenças bio-psicológicas da mulher, bem como às características específicas das missões básicas estabelecidas na presente Diretriz. No entanto deveriam ser mantidas turmas mistas. Como manter turmas mistas quando se busca marcar diferenças? Com relação ao ingresso na policia militar a Diretriz determina as características que as candidatas devem apresentar para poderem pleitear uma vaga. Segundo a diretriz, As candidatas ao ingresso na Polícia Feminina, além de outras exigências, devem possuir padrões de conduta moral e de bons costumes insuspeitos, sendo requisitos exigidos, neste aspecto: 1. Não haver sido condenada por crime, contravenção ou faltas que afetam a ordem, a moral e os bons costumes; 2. Possuir conduta pessoal, honorabilidade, antecedentes de família e relacionamentos irreprováveis, circunstâncias que se comprovam por intermédio de investigação social e de outros instrumentos de avaliação; 3. Ser solteira, não admitindo o ingresso na organização de mulheres desquitadas ou divorciadas, viúvas e amasiadas, mesmo que anteriormente à pretensão de ingresso na Corporação, ainda que não possuam encargos de família. Esses requisitos firmam o perfil das mulheres que poderiam ingressar na polícia militar. As palavras grifadas (desquitadas, divorciadas, viúvas) referem a mulheres que não possuem padrões de conduta moral e de bons costumes requisitados pela corporação. Esse perfil expressa a representação da mulher policial, na visão daqueles que escreveram a diretriz e de do grupo do qual eles são construídos e construtores. Todavia as exigências apresentadas no item 1. e 2. da citação a cima, são subjetivos e estão relacionados com o padrão daqueles que a forjaram. Não há definição para o significado de ordem, moral e bons costumes, antecedentes de família, relacionamentos
irreprováveis. Os significados desses padrões só poderão ganhar sentido a partir de um estudo da masculinidade do grupo e das representações do feminino presente nas relações dos membros do grupo. A leitura, do texto da Lei de Organização das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, de junho de 1977, possibilita identificar que não havia referências a padrões de conduta moral e bons costumes, para o ingresso nas instituições. A Lei 1.943, de 23 de junho de 1954, o Código da Polícia Militar do Estado do Paraná, nos artigos 19 ao 22, são encontradas referências às condições para o ingresso na corporação, entre as quais estão: ser brasileiro; ser reservista das forças armadas; ser alfabetizado; ter comprovada moralidade; ter capacidade física comprovada pelo serviço de saúde da corporação; ter no máximo 30 anos de idade. 8 Todavia não há explicação para o que significa ter comprovada moralidade. Considerando os dois textos citados se identifica uma diferença, entre as duas polícias, a masculina e a feminina. O homem poderia ser casado ao ingressar na PMPR, todavia a mulher deveria ser solteira. Com relação a moral e aos bons costumes como requisitos para o ingresso na instituição, no caso da Diretriz que se referia a policial mulher havia um detalhamento no texto, diferente das exigências para os homens, que se restringia o texto da Lei 1.943. Ao invadirem um espaço da masculinidade, as mulheres poderiam se apropriar do espaço e (re)construír de outra forma. Criar uma instituição para mulheres dentro da instituição de homens permitiu que elas não se apropriassem do poder de policia masculino, mas seriam obrigadas a forjarem outro poder que as identificaria. Com uma legislação própria e com um espaço próprio para policia militar feminina, os símbolos da masculinidade que eram propriedades dos homens continuava em suas mãos. Os homens eram policiais militares, já as mulheres eram policiais militares femininas. A palavra feminina impedia que elas tomassem o espaço dos homens e continuavam subordinadas a eles, pois o pico da pirâmide hierárquica se manteria nas mãos dos homens. A análise do discurso da diretriz que definiu o papel da mulher na PMPR, a qual, teoricamente, permanece em vigor até os dias atuais, tendo em vista que em momento algum foi revogada ou substituída, é uma possibilidade para se compreender as relações de gênero dentro do grupo e no contexto social com o qual o grupo se relaciona. Algumas partes do discurso dessa diretriz podem ser identificadas como contraditórias. Todavia as transformações nas relações de gênero precisam ser lidas como resultado da contradição entre a permanência e o novo. É a partir da contradição presente nas relações entre o que é ser masculino e o que é ser feminino, são forjadas diferentes identidades. Dessa forma não se pode falar em feminino e masculino, mas em femininos e masculinos. O significado do feminino e do masculino estão
relacionados com a cultura do grupo que a forjou, do qual as relações de gênero são construídas e construtoras dos espaços e dos papéis ocupados pelos homens e mulheres do grupo. Referências: BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. In: Educação e Realidade. 20 (2), p. 133-184, jul/dez, 1995. BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. CHARTIER, Roger. A historia cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990. GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das Letras, 1989. MATOS, Maria Izilda S. de, SOLER, Maria Angélica (orgs.). Gênero em debate: trajetória e perspectivas na Historiográfia Contemporânea. São Paulo: EDUSC, 1997. SCOTT, Joan. Gênero uma categoria útil de análise histórica. In: Mulher e realidade: mulher e educação. Porto Alegre, Vozes, v. 16, n.2, julho/dez, 1990. Notas: 1 POLICIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÀ. Boletim Geral n. 205, 20 de out. de 1977. Curitiba, Pr. 2 POLICIA MILITAR DO ESTADO DO PARANÁ, Diretiz n. 076, 27 de novembro de 1979, Estado Maior da PMPR, Curitiba, Pr. 3 CHARTIER, Roger. As representações do mundo social assim construídas (...) soa sempre determinadas pelo interesse do grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza.. A historia cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990, p.17. 4 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, Portaria 027, 16 de jun de 1977. Inspetoria Geral das Policiais Militares, Brasília, DF. 5 BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. In: Educação e Realidade. 20 (2), p. 133-184, jul/dez, 1995, p. 146. 6 MINISTÉRIO DO EXÉRCITO, Portaria 027, 16 de jun de 1977. Inspetoria Geral das Policiais Militares, Brasília, DF, p.16. 7 Idem, p.16. 8 Lei no. 1943, 23 de junho de 1954, Código da Polícia Militar do Paraná, artigo, 22.