FICHA TÉCNICA Título: Data: Propriedade: Equipa de Pesquisa:



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VIOLÊNCIA CONTRA MENORES EM MOÇAMBIQUE REVISÃO DE LITERATURA MAPUTO, JUNHO DE 2008

FICHA TÉCNICA Título: Violência Contra Menores em Moçambique - Revisão da Literatura Data: Junho de 2008 Propriedade: Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) Equipa de Pesquisa: Adriano Biza, Sandra Gonçalves, Chagas Levene e Henriqueta Tojais (KULA Estudos e Pesquisas Aplicadas, Ltda)

ÍNDICE ABREVIATURAS... 5 I. INTRODUÇÃO... 6 II. OBJECTIVOS DO ESTUDO...7 III. METODOLOGIA... 8 IV. TEORIZAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA MENORES... 9 IV.1. O CONCEITO DE VIOLÊNCIA... 9 IV.2. DEFININDO O MENOR...11 IV.3. A GÉNESE E RECONHECIMENTO DO PROBLEMA...12 V. TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA MENORES...14 V. 1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/OU NA FAMÍLIA...14 NEGLIGÊNCIA E SUPER PROTECÇÃO...16 ABUSO SEXUAL...16 V.2. A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS...17 V.3. A VIOLÊNCIA NA COMUNIDADE...19 PROSTITUIÇÃO INFANTIL...19 CASAMENTOS PREMATUROS...21 TRÁFICO E VENDA DE CRIANÇAS...22 V. 4. VIOLÊNCIA NA ESFERA DO TRABALHO: O TRABALHO INFANTIL...24 V. 5. VIOLÊNCIA SISTÉMICA OU INSTITUCIONAL: AS CRIANÇAS EM CONFLITO COM A LEI...26 VI. CAUSAS DA VIOLÊNCIA CONTRA MENORES...28 VI.1. FACTORES HISTÓRICOS E CULTURAIS...28 CRENÇAS MÁGICO RELIGIOSAS...30 VI.2. FACTORES SÓCIOECONÓMICOS...31 VI.3. FACTORES INSTITUCIONAIS...35 VI.4.RELAÇÃO COM HIV E SIDA...36 VI.5.FACTORES TRANSNACIONAIS: TURISMO SEXUAL E EXTRACÇÃO DE ÓRGÃOS...37 VII. MAGNITUDE E CONTORNOS DE ALGUMAS FORMAS DE VIOLÊNCIA CONTRA MENORES...39 VII.1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA FÍSICA E PSICOLÓGICA...39 VII.2.ABUSO SEXUAL...42 VII.3.GRAVIDEZ PRECOCE...44 VII.4. CASAMENTOS PREMATUROS...47 VII.5.TRABALHO INFANTIL...48 VII.6.TRÁFICO DE MENORES...49 3

VIII. DINÂMICA DA RESPOSTA À VIOLÊNCIA DE MENORES...51 VIII.1. O QUADRO LEGAL DE PROTECÇÃO DA CRIANÇA...51 VIII.2. POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS DO GOVERNO...55 VIII.2.1. OPERACIONALIZAÇÃO DE POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS...56 VIII.2.2. OS GABINETES DE ATENDIMENTO À MULHER E CRIANÇA...57 VIII.3. ACÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL...58 ADVOCACIA E LOBBYNG...58 CAMPANHAS DE CONSCIENCIALIZAÇÃO...58 VIII.4. RESPOSTA COMUNITÁRIA...60 IX. EXPERIÊNCIA DOS PAÍSES DA REGIÃO...61 IX.1.VIOLÊNCIA FÍSICA E SEXUAL...61 IX.2.CASAMENTOS PRECOCES...63 IX.3.TRÁFICO DE CRIANÇAS...64 X. CONCLUSÃO...65 XI. RECOMENDAÇÕES...67 PREVENÇÃO...67 RESPOSTA...67 PESQUISA, DOCUMENTAÇÃO E MECANISMO DE COLECTA DE DADOS, MONITORIA E AVALIAÇÃO...68 XII. BIBLIOGRAFIA...70 4

ABREVIATURAS AMODEFA ADDC COV FMI ILO/OIT INFOTRAB INE ISRI MIMAS MINT MEPT MULEIDE NU PNAC OIM OMS ONG OTM OMM ONP OSISA PES PARPA PACOV PES UNICEF UNICRI RSA SADC SANTAC UA WLSA Associação Moçambicana para o Desenvolvimento da Família Associação dos Defensores dos Direitos da Criança Crianças Órfãs Vulneráveis Fundo Monetário internacional Organização Internacional do Trabalho Inquérito sobre a Força de Trabalho Instituto Nacional de estatísticas Instituto Superior de Relações Internacionais Ministério da Mulher e Acção Social Ministério do Interior Movimento Educação para Todos Mulher Lei e Desenvolvimento Nações Unidas Plano Nacional de Acção para a Criança Organização Internacional de Migração Organização Mundial da Saúde Organizações Não Governamentais Organização dos Trabalhadores Moçambicanos Organização da Mulher Moçambicana Organização Nacional dos Professores Iniciativa da Sociedade Aberta para a África Austral Plano Económico e Social Plano de Acção para a Redução da Pobreza Absoluta Plano Nacional de Acção para as Crianças Órfãs e Vulneráveis Plano Económico e Social Fundo das Nações Unidas para a Infância Instituto das Nações Unidas de Pesquisa Inter-regional de Crime e Justiça República da África do Sul Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral Campanha Regional da África Austral contra o Abuso Sexual e Tráfico Ilegal de Crianças União Africana Women and Law in Southern Africa 5

I. INTRODUÇÃO O presente relatório apresenta os resultados do estudo bibliográfico sobre a situação da violência contra menores em Moçambique para a Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC). A FDC pretendeu realizar esta análise com o objectivo de obter informação detalhada que lhe permita conhecer a sua situação sobre as causas, motivações, tipologias e perfil sócio cultural assim como ter informação actualizada dos aspectos particulares que catalisam o fenómeno em diversos contextos do país. A violência contra menores é um problema de saúde e de violação dos direitos humanos ao nível global e de crescente preocupação na África Sub-Sahariana. Na África Austral e em Moçambique em particular, mesmo com estudos limitados sobre a violência sexual de menores, os dados disponíveis mostram que ela constitui um dos problemas de saúde pública e social preocupante. Em resposta a esta situação, o UNICEF e a Agência Sueca para o Desenvolvimento Internacional (ASDI) iniciaram um programa conjunto, em parceria com a sociedade civil Moçambicana, a fim de promover os direitos da criança em Moçambique. A Fundação para o Desenvolvimento da Comunidade (FDC) é um dos 13 (treze) parceiros do programa e está a implementar o seu projecto em parceria com 8 (oito) redes que trabalham em prol da criança. Entretanto, como forma de informar e desenvolver estratégias efectivas de prevenção, é necessário ter informação mais completa sobre a ocorrência de violência infantil. É nesta perspectiva que a FDC em colaboração com o UNICEF, pretenderam realizar um estudo, usando fontes de informação secundária, sobre a violência de menores em Moçambique. A análise enquadra-se num pressuposto fundamental de busca de dados que informem a definição de estratégias e também no facto de que se medidas ou acções concretas não forem tomadas com vista a sua prevenção dificilmente se alcançarão os objectivos preconizados nos documentos programáticos do país visando a sua erradicação. O relatório apresenta primeiro as concepções e diferentes tipos de violência tendo em conta o espaço onde ocorrem. Em seguida são mencionados os diferentes factores que motivam esta violência e números que realçam a magnitude do fenómeno em Moçambique e em comparação com alguns países da região. Na parte final são apresentadas experiências de países da região sobre o fenómeno, as diferentes acções de resposta, as conclusões e respectivas recomendações 6

II. OBJECTIVOS DO ESTUDO II.1 Objectivo Geral O estudo teve como objectivo principal fazer uma pesquisa baseada em informação secundária sobre a violência de menores em Moçambique, com particular enfoque para a criança do sexo feminino. II.2 Objectivos específicos Identificar os tipos de violência de menores mais comuns em Moçambique; Analisar os factores socioculturais que favorecem a ocorrência da violência em Moçambique; Mapear as áreas (geográficas e sectores de trabalho) de maior ocorrência da violência de menores em Moçambique; Identificar os potenciais riscos e factores protectivos da violência de menores; Identificar áreas de pesquisa futura; Fazer recomendações de como melhorar e fortalecer as intervenções para melhor identificar, tratar e prevenir a violência de menores em Moçambique. 7

III. METODOLOGIA O estudo foi essencialmente baseado na revisão documental existente sobre a violência de menores. Esta etapa fundamental foi complementada pela realização de entrevistas semi estruturadas junto a actores que intervêm directamente sobre o fenómeno. A revisão da documentação permitiu dispor de dados e conclusões produzidos por outros pesquisadores o que ajudou no refinamento dos tópicos que sustentaram a análise conduzida e principalmente informou sobre o saber produzido local e internacionalmente sobre a violência de menores e compreendeu informação e achados de carácter qualitativo e quantitativo. Nesta etapa pôde-se verificar em que medida o fenómeno foi explorado, e sobretudo identificar as principais fontes de informação que resultaram na produção de um perfil de entidades e tipos de dados a recolher, definir linhas claras de orientação para a definição de ferramenta de busca de dados. A análise foi baseada na recolha de informação em fontes primárias (livros, relatórios de estudo, revistas de artigos especializados, recensões bibliográficas, inquéritos quantitativos e legislação e estratégias programáticas) junto de bibliotecas de instituições de ensino, entidades governamentais e não governamentais que intervêm sobre o fenómeno. A informação documental foi posteriormente complementada com a realização de entrevistas semi-estruturadas. Estas foram dirigidas a informantes chaves representantes de actores institucionais directamente envolvidos em acções programáticas na prevenção e resposta ao fenómeno e, sobretudo na promoção e preservação dos direitos da criança em Moçambique. Estas foram realizadas com a finalidade de obter informação que permitisse caracterizar os contornos e dimensão do fenómeno no país. As entrevistas foram aplicadas usando se um guião que continha aspectos pertinentes para a análise, nomeadamente, tipos de violência; causas para a violência; natureza de aspectos relativos à dinâmica da resposta nacional ao fenómeno (politicas, estratégias e acções específicas); potenciais áreas de intervenção e recomendações para componentes de prevenção e resposta. As entrevistas foram administradas e focalizadas nas entidades da sociedade civil Moçambicana que promove direitos da criança em Moçambique. Estas elucidaram sobre a ocorrência de casos de violência nos contextos em que intervêm, as particularidades nas formas de violência, as tendências e os aspectos que influenciam a ocorrência de actos de violência contra menores. 8

IV. TEORIZAÇÃO E CONTEXTUALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA MENORES IV.1. O CONCEITO DE VIOLÊNCIA Existem várias abordagens teóricas e metodológicas que definem violência de forma geral e violência contra menores, de forma particular. Esta diversidade resulta da multiplicidade de actores distintos que por sua vez fomentam uma variedade de conceitos que se focalizam em realidades distintas buscando as especificidades de cada uma delas. A violência contra a criança é assim uma categoria específica que desperta atenção particular sobretudo por ser canalizada aqueles que não se podem defender dela. A violência é vulgarmente percebida como a acção física com recursos ou não de instrumentos para causar danos a uma pessoa ou grupos. As perspectivas restritas de definição da violência dependem de cada disciplina que a estuda. Por exemplo as ciências penais e jurídicas a estudam de modo a punir o agressor, dando importância por isso a agressão directa visível. 1 A violência contra menores ocorre em diferentes meios e ambientes sociais, nomeadamente na família, nas escolas, em instituições como orfanatos e outros locais de acolhimento, nas ruas, nos locais de trabalho e nas prisões. Ela é geralmente motivada por uma acção conjugada de diferentes factores. Ela pode surgir em consequência de crenças culturais, normas e práticas tradicionais, de factores socioeconómicos e até fruto de causas políticas, em situações de conflito. 2 Uma parte não menos significativa da violência contra as crianças resulta em morte mas a maior parte dela nem sequer deixa marca visíveis. 3 Alguns autores, sobretudo no campo das ciências sociais e comportamentais, devido a sua complexidade, e na tentativa de identificar os seus factores motivadores definiram a violência de modo mais abrangente devido a complexidade da mesma, mesmo que ainda existam alguns que a definam de forma restrita. A Organização Mundial da Saúde (OMS) no seu relatório pioneiro sobre a violência e a saúde publicado em 2002 citado pelo UNICEF aborda este fenómeno de forma abrangente e integrada. A instituição descreve e enfatiza que a violência é um fenómeno extremamente difuso e complexo, que inclui a violência física, sexual, psicológica e ainda a privação e a negligencia. 4 Da definição da OMS percebe-se que a violência pode ser não só aquela directamente identificável por ser directa, física exercida com recursos ou não de instrumentos para causar danos, mas também formas aparentemente subtis de violência, cuja manifestação percebe-se por exemplo pela privação de algo, pela forma de organização da família, da sociedade e também na forma de produção cultural. Nesta linha de concepção da OMS, autores como Galtung tipificam a violência em três categorias: a violência directa e física, a violência indirecta ou estrutural e a violência cultural. 5 Segundo o autor, todas estas formas de violência possuem o potencial de provocar danos ao infligido. Na violência directa e física, subjaz a perspectiva do agressor visível, que quando 1 DIVEP, vigilância epidemiológica das doenças e agravos não transmissíveis dant and vigilância epidemiológica das causas externas. A violência e a saúde, p. 2 2 UNICEF (2004). Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça, p. 100 3 Idem 4 UNICEF 2004- Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça p. 100 5 Galtung (1996). Peace by Peaceful Means.Sage Publications: Oslo, p. 31 9

rastreada pode ser identificado o actor ou actores praticantes da mesma. Para o mesmo autor esta violência pode ser dividida em física e verbal, na qual a primeira tem consequências directas no corpo e a segunda na mente e no espírito. Ambas combinações de violência levam ao trauma que podem durar por muito mais tempo. 6 Para além da violência directa e física, o autor identificou a violência estrutural ou indirecta, que provêm da estrutura social, seja de carácter familiar, estatal ou de alianças de Estados, entre outras. As duas maiores formas de violência estrutural são a repressão política e a exploração económica. 7 A violência estrutural é de carácter subtil para alguns autores e constitui uma das formas mais expressivas de violência por ocorrer com permissão de normas de ordem social, e só pode ser percebida considerando o contexto social e histórico no qual ela é produzida, tendo em conta os interesses e valores concretos, que caracterizam cada sociedade ou cada grupo social, num determinado momento histórico 8. Por sua vez a violência cultural é considerada como se expressando de forma simbólica em alguns aspectos de uma religião e ideologia, linguagem e arte, ciência e lei, imprensa educação. Ela pode ser usada para legitimar a violência directa ou a estrutural, de modo a que seja vista como certa ou pelo menos não errada. 9 Tendo em atenção a amplitude em que se manifesta a violência a Convenção Sobre os Direitos da Criança definiu a violência também de forma mais ampla, como se depreende do artigo 19: Artigo 19 da Convenção sobre os Direitos da Criança refere-se a violência contra a criança, como todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevicia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive violência sexual, violência contra crianças e o uso intencional da forca. 6 Galtung (1996). Peace by Peaceful Means. Oslo: Sage Publications, p 31 7 Idem 8 Macedo (s/d). Violência doméstica contra crianças e adolescentes: Sentidos e significados, p. 5 9 Galtung (1996). Peace by Peaceful Means. Oslo: Sage Publications, p. 2 10

IV.2. DEFININDO O MENOR Não existe uma definição consensual da categoria considerada menor. Para esta revisão bibliográfica a categoria será assimilada à criança. Para a sua definição concorrem critérios da idade (cronológica) e outros de carácter social e cultural particulares a cada uma das sociedades. Na perspectiva dos direitos humanos largamente defendida pelas associações que lutam pelos direitos humanos das crianças e menores, o critério central para a definição de criança adoptado também pela Convenção sobre os Direitos da Criança é a idade cronológica. No entanto existem outros critérios, enraizados na crença popular e hábitos e costumes, que limitam a prática da defesa dos direitos humanos das crianças. Na maioria dos casos a idade cronológica não coincide com critérios de natureza social e cultural para definir menores e/ou crianças, e muitas das vezes as definições locais de menor têm implicações na salvaguarda e preservação dos direitos de menores, constituindo como foi referido anteriormente em quadros permissivos e legitimadores da violência contra menores. Em muitos contextos de Moçambique, por exemplo, existe a crença de que criança é aquele individuo que vai dos zero aos cinco anos, porque depois disso é considerado adulto, na medida em que passa a lhe ser atribuído a responsabilidade pelos cuidados dos irmãos mais novos e de outras tarefas domésticas. 10 Neste sentido, mais do que a idade cronológica, o critério da responsabilidade social e o tipo de papeis que são suposto desempenhar constituem o marco referencial da definição de menor e/ou criança. Vários estudos corroboram com este ponto de vista. Uma pesquisa feita em Mopeia e Murrumbala pela Save the Children UK, 11 constatou que para se destinar/distinguir: Características físicas: as comunidades dão importância às mudanças físicas ocorridas nas crianças na puberdade, e para as mulheres a ocorrência do primeiro ciclo menstrual; Ritos de iniciação: que faz parte da socialização e muda o estatuto da criança, de modo que a partir do momento das primeiras regras a rapariga deve participar nos ritos para ser respeitada pela comunidade como mulher ou pai; A ajuda nos trabalhos domésticos: em ambos sexos se mostrarem capacidade de trabalho na ajuda aos pais nos seus afazeres diários; Comportamento sexualmente orientado: a demonstração da sexualidade principalmente no rapaz se começa a se interessar pelo sexo oposto; Posse do julgamento: a capacidade de tomar decisões consideradas autónomas ou maduras; Frequência escolar: uma criança que deixa a escola é considerada apta a trabalhar e a manter relações sexuais. 10 Jornal Noticias. 20 de Junho de 2008. 11 Save the Children UK (2007). Proteger as Crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas zonas rurais de Moçambique. Maputo, p. 4/5. 11

Não obstante esta complexidade, vários actores institucionais com acções no campo dos direitos humanos da promoção dos direitos das crianças, em particular em Moçambique usam a definição contida na Convenção sobre os Direitos das Crianças, que será igualmente usada para este trabalho. A criança de acordo com o artigo 1 da Convenção sobre os Direitos da Criança, entende-se como todo o ser humano menor de 18 anos salvo se nos termos da lei que lhe for aplicável atingir a maioridade mais cedo. Neste contexto, a violência contra menores será aqui entendida como todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevicia, abandono ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive violência sexual, violência contra crianças e o uso intencional da força, aplicadas a todo o ser humano ou indivíduo menor de 18 anos. Esta definição para além de explorar diferentes dimensões do problema, está em consonância com os dispositivos normativos internacionais e nacionais. IV.3. A GÉNESE E RECONHECIMENTO DO PROBLEMA A preocupação pela violência contra menores emerge na agenda política e programática na sua primeira enunciação jurídica ocorrida através da Convenção Internacional para a Supressão do Trafico de Mulheres e Crianças de 1991 rubricada em Genebra, 12 seguida pela Declaração de Genebra de 1924 sobre os Direitos da Criança, 13 adoptada pela Liga das Nações para garantir protecção especial da criança. Posteriormente, instrumentos subsequentes elaborados procuraram seguir a mesma abordagem, como as cartas regionais sobre a matéria, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 igualmente aplicável ás crianças. O consenso de que havia necessidade de um instrumento específico que estivesse direccionado à protecção da criança fez com que em 1989 a Assembleia Geral das Nações Unidas promulgasse a Convenção sobre os Direitos da Criança da qual Moçambique é signatário desde 1990 e que a ratificou em 1994. Outros esforços legislativos e de consciencialização tendentes a defesa dos direitos humanos das crianças foram desenvolvidos regionalmente e globalmente. As Nações Unidas em 2001 tendo em conta a continua degradação das condições das crianças que a remetem à violência extrema, realizou uma sessão especial na sua sede em Nova Iorque de 19 a 21 de Setembro, antecedida da cimeira mundial para as crianças na mesma cidade. Os dados de então mostram que mais de 10 milhões de crianças abaixo de cinco anos morriam todos os anos por doenças preveníveis e mal nutrição; um terço delas não completava cinco anos de escolarização básica; aproximadamente 100 milhões de crianças no ensino primário muitas delas não eram raparigas; que 300.000 delas foram recrutadas para conflitos armados e que aproximadamente 60 milhões trabalhavam nas piores condições possíveis. 14 12 Wiecko, Ela et all (s/d). Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo 13 Serra Jr (2006). O contexto jurídico internacional e nacional do tráfico. Serra, Carlos (edt). Tatá papá, tatá mamã: tráfico de menores em Moçambique. Imprensa Universitária, p. 70 14 UN Special Session on Children. Newsletter. April/May 2001. n 1 12

Como corolário do reconhecimento dos problemas que afectam a criança, Moçambique fez em 1979 pela resolução nº 23/79 de 28 de Dezembro, a Declaração dos Direitos da Criança Moçambicana, uma resposta do governo e da Assembleia Legislativa ao facto de o ano de 1979 ter sido declarado pelas Nações Unidas o ano internacional da criança. Em Moçambique milhares de crianças têm sido vítimas de violência nos seus direitos fundamentais, incluindo as formas mais extremas de violência, como a violência física e sexual, que dificulta o seu desenvolvimento saudável. Alguns estudos já realizados, 15 reforçam as evidências de que a violência nas suas diversas manifestações que se apresentam em seguida são generalizados em Moçambique. Uma das primeiras lições a aprender é que a violência contra menores constitui um dos maiores problemas que enferma a sociedade moçambicana a julgar pelo seu reconhecimento e integração nas agenda governativa do país. Embora o seu reconhecimento como problema tenha ocorrido num período bastante longo com adesão a normas de direitos humanos das crianças em particular a Convenção sobre os Direitos da Criança entre outros instrumentos internacionais, as suas tendências actuais evolutivas e de contínua reprodução faz do sua eliminação e/ou redução um dos maiores desafios das autoridades governamentais e organizações da sociedade civil nacional e internacional. Os esforços até ao presente realizados continuam a ser incipientes sobretudo para limitar os constrangimentos sócio culturais que favorecem o fenómeno. 15 Barros, João Gabriel de e Tajú, Gulamo (1999). Prostituição abuso e trabalho infantil em Moçambique. Maputo; Bagnol, Brigitte e Cabral (2000). Assédio e abuso sexual nas escolas. Maputo e Baleira, Sérgio (2001). Factores de influência na violação dos direitos da criança, prostituição infantil e abuso sexual de menores em Ressano Garcia. Maputo 13

V. TIPOS DE VIOLÊNCIA CONTRA MENORES Como inicialmente demonstrado na conceitualização, existe uma variedade de tipos de violência praticada contra menores. A presente revisão privilegiará as formas mais comuns em Moçambique a saber, a violência doméstica física, violência doméstica psicológica, negligência, super protecção, abuso sexual, prostituição infantil, trabalho infantil, tráfico e venda de crianças e crianças no cativeiro ou em conflito com a lei. A distinção destes tipos de violência é guiada por critérios metodológicos de apresentação da informação e motivos didácticos para permitir comodidade na análise, o que não significa que elas ocorram separadamente. As fronteiras efectivas e critérios de diferenciação como práticas sociais são muito ténues. Por exemplo: a violência doméstica pode ocorrer como violência doméstica física, psicológica, negligência, super protecção, abuso sexual, trabalho infantil entre outras combinações, como resultado do ambiente de violência estrutural existente na família. A separação é apenas por motivos didácticos, para permitir comodidade de análise. No geral as diferentes formas de relacionamento coexistem e se exercem ora dentro das normas, ora fora delas, na interface entre o socialmente legitimado e reprovado. O Estudo das Nações Unidas (NU) sobre Violência Contra Crianças elaborado em 2006 apresenta um cenário global preocupante acerca da violência contra menores. Segundo o estudo, a maioria dos actos de violência contra menores é cometida por pessoas que fazem parte das suas vidas e têm ocorrido mais frequentemente no seio da família, nas escolas e ambientes educacionais, nas instituições de acolhimento e de justiça, nos locais de trabalho e na comunidade. 16 A presente revisão de bibliografia seguirá a mesma estrutura para melhor elucidar as diferentes configurações que o fenómeno assume em espaços variados. V. 1. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E/OU NA FAMÍLIA A família é considerada o primeiro ambiente para o crescimento e bem-estar das crianças e atribui-se maior potencial de proteger crianças e velar pela sua segurança física e emocional. É neste grupo onde é suposto garantir-se os direitos da criança à vida, à sobrevivência, ao desenvolvimento, à dignidade e à integridade física; todavia nem sempre ocorre desta forma. Do nascimento até a idade de 18 anos, as crianças são vulneráveis a diversas formas de violência dentro das suas famílias. A família constitui igualmente o primeiro espaço onde ocorre a violência contra menores. A prevalência da violência contra crianças no espaço familiar ocorre por parte de pais e de outros familiares próximos e assume a forma de violência física, sexual e psicológica, bem como a negligência deliberada. 17 De acordo com Azevedo e Guerra, estudiosas e pesquisadoras do Laboratório de Estudos da Criança, pertencente ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, a Violência Doméstica contra Crianças e Adolescentes caracteriza-se como: 16 PRIMEIRO ESTUDO GLOBAL SOBRE VIOLÊNCIA CONTRA CRIANÇAS APRESENTADO ÀS NAÇÕES UNIDAS EM MAPUTO, CONSULTADO EM WWW.VIOLENCESTUDY.ORG À 22 DE ABRIL DE 2008. 17 NU (2006). Estudo das Nações Unidas sobre a Violência Contra Crianças. Nações Unidas, p. 14 14

Violência doméstica é todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescentes que sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima implica, de um lado, numa transgressão do poder/dever de protecção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento 18 A violência doméstica então, apresenta-se sob diversas tipificações, como se pode apreender do conceito: a violência física, sexual, psicológica e a negligência. A Violência doméstica física resulta do emprego da força no processo de disciplinar a criança ou adolescente por parte dos pais. É a forma mais comum de violência e várias famílias fazem recurso a ela como uma forma de educar e acabam agredindo as crianças no ambiente doméstico. Tal como na maior parte do mundo, em Moçambique os castigos corporais contra os menores não são proibidos, pelo facto de o recurso ao castigo corporal como forma de disciplinar a criança ser cultural e legalmente aceite e praticado. De acordo com o relatório da Global Initiative to End All Corporal Punishment of Children GI, em Moçambique só existe proibição da violência contra menores referente apenas a sentença por crime, mas em casa, na escola e nos centros alternativos de cuidados e educação a menores, a violência vigora como instrumento de punição. 19 O Estudo das NU sobre Violência Contra Crianças elaborado em 2006 reconhece que o infanticídio, a crueldade e humilhação, a punição, a negligência, o abandono, o abuso sexual e outras formas de violência provem de tempos remotos da civilização e reconhece também como um problema global e preocupante em todos os países e está enraizado na cultura, economia e práticas culturais que urge mudar. 20 Segundo o UNICEF citando a Sociedade de Psicologia Britânica, a violência praticada contra menores têm sido considerados pelos psicólogos como base para o futuro comportamento agressivo da pessoa adulta: existem actualmente provas significativas que demonstram a relação entre a exposição a qualquer tipo de violência, por ligeira que seja, ( ) e a aquisição de modos violentos de comportamento 21 Por seu turno a violência doméstica psicológica ocorre quando o adulto constantemente deprecia a criança, bloqueando os seus esforços de auto aceitação, causando-lhe sofrimento mental, tornando a criança medrosa e ansiosa e representando formas de sofrimento psicológico como isolamento emocional, ausência de contacto olho no olho e medo em relação aos agressores. Também considerada de violência emocional, esta tem sido pouco documentada e/ou estudada em contextos moçambicanos. 18 Macedo (sd:5). Violência doméstica contra crianças e adolescentes: Sentidos e significados, p. 5 19 Global Initiative to End All Corporal Punishment of Children(2007). Ending legalised violence against children: Following up the UN Secretary General s Study on Violence against Children, p. 22 19 UN (2006). World Report on Violence Against Children, p. 6 20 Idem 21 UNICEF (2004). Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça, p. 102 15

NEGLIGÊNCIA E SUPER PROTECÇÃO Trata-se de um conceito lato que inclui várias práticas expressivas de violência, desde a incapacidade de ir ao encontro das necessidades emocionais e materiais da criança e a incapacidade de providenciar estímulo físico e intelectual e garantir orientação e supervisão adequadas. A supervisão inadequada é um importante factor de lesões e morte por acidentes no lar e contribui para o envolvimento de crianças em actividades perigosas como o abuso de drogas e a actividade sexual prematura e não protegida. 22 O abandono de crianças e por consequência a sua exposição a situações de risco constitui uma forma extrema de negligência. A decisão de abandonar uma criança pode por vezes ser uma resposta à falta de mecanismos de apoio ou pode ser determinada pelas tradições culturais. 23 É recorrente em Moçambique falar-se de menores objectos desta forma de violência, muitas das crianças na rua o são como resultado da prática deste tipo de violência, em que parte significativa dos progenitores e/ou redes de parentes excluem-se das suas responsabilidades em prover necessidades físicas a uma criança ou adolescente. Este tipo de violência ocorre frequentemente quando os pais e adultos não provêm alguns bens materiais aos seus filhos e/ou dependentes como roupa, calçado e outros bens/serviços não materiais como a educação e supervisão adequada. Por seu turno a super protecção refere-se a excessiva preservação dada ao menor devido ao medo que os pais têm de que as crianças corram perigo, neste tipo de situação, a criança é isolada da sociedade e este risco aumenta se a criança e a família vivem isoladas. Como consequência a criança terá dificuldades de fala e linguagem, timidez acima do normal, poucos amigos ou nenhum e isolamento da criança em relação à sociedade. ABUSO SEXUAL O abuso sexual de menores é principalmente um dos fenómenos que preocupa cada vez mais as autoridades moçambicanas. O reconhecimento (embora político e não efectivo) da questão e a sua inclusão na agenda governativa é evidência desta preocupação. O abuso de menores revela-se um fenómeno complexo na medida em que muitas vezes crianças que sofrem tais abusos não têm noção da situação de abuso ou encontram-se numa posição de dependência em relação aos perpetradores a partir da qual as vitimas têm dificuldade para expor os casos. A definição mais abrangente de abuso sexual inclui: DEFINIÇÃO MAIS AMPLA DE ABUSO SEXUAL Molestar ou atacar sexualmente uma criança ou permitir que uma criança seja sexualmente molestada ou atacada; Encorajar, induzir ou forçar uma criança a ser usada para satisfação sexual de outra pessoa; Usar uma criança ou deliberadamente expor uma criança a actividades sexuais ou pornografia; Induzir ou permitir que se induza uma criança à exploração sexual comercial ou de alguma forma apoiar ou participar na exploração sexual comercial da criança. Fonte: South African Law Commission s Project Commitee 22 UNICEF(2004). Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suíça, p. 105 23 Idem, p. 105 16

De acordo com as definições feitas pelo estudo da SC UK sobre abuso sexual de raparigas nas escolas moçambicanas, o abuso sexual é classificado em dois tipos; o intra familiar que ocorre dentro da família e o extra familiar. O abuso sexual intra familiar, em forma de incesto considera-se o mais comum em todas as sociedades e estratos sociais e envolve menores e um membro da família pai, mãe, irmão, irmã, tios, avós, padrastos e outros parentes. 24 O abuso sexual na família inclui todas as formas de exploração, assédio e sevícias tendentes a satisfação sexual e outras praticas sexuais e envolve a menor com um parente na maioria das vezes de quem o menor depende. 25 O abuso sexual que ocorre dentro da família acarreta danos mais profundos para a vítima, por não permitir a formação de uma estrutura para o ajustamento psicológico do indivíduo. 26 As consequências físicas do abuso sexual podem incluir a gravidez prematura e não desejada, as doenças transmitidas sexualmente e a disfunção sexual. 27 Os protagonistas agressores variam e podem incluir diferentes categorias. Intervir diante deste tipo de violência em particular e outras formas de violência contra crianças no contexto da família representa o maior desafio de todos, considerado que ela é vista pela maioria como a mais privada das esferas privadas, tornando-a camuflada. 28 Em Moçambique o abuso sexual normalmente acontece com as crianças do sexo feminino, o que resulta actualmente no aumento dos casos de DTS s, HIV e SIDA entre as raparigas menores de 18 anos. Para além de serem abusadas sexualmente pelos familiares e desconhecidos, as raparigas também são abusadas pelos seus professores nas escolas. V.2. A VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS As escolas constituem outro espaço onde ocorre a violência embora desempenhem um papel importante na sua protecção. Os ambientes educacionais expõem muitas crianças à violência e podem ensiná-las a praticar actos de violência. A violência nestes ambientes pode ser de vária ordem, é cometida por professores e outros funcionários de escolas e pode incluir castigos corporais, formas cruéis e humilhantes de punição psicológica, violência sexual e baseada no género e intimidação. Os castigos corporais, como bater em crianças com as mãos ou varas, são uma prática comum em muitas escolas de vários países. 29 A violência nas escolas também assume a forma de brigas e atitudes intimidatórias de colegas. Em algumas sociedades, comportamentos agressivos, inclusive brigas, são amplamente percebidos como um problema disciplinar de pouca importância. A violência sexual e baseada no género também ocorre em ambientes educacionais. Em grande parte, é direccionada a meninas por professores e colegas do género masculino. 30 Embora haja evidências das outras formas de violência mencionadas, em Moçambique a forma de violência na escola mais documentada é a violação e/ou abuso sexual, dado as suas implicações para a preservação e garantia de direitos das crianças. 24 Outras Vozes n 20, Agosto de 2007, p 3 25 Idem 26 Idem 27 UNICEF (2004). Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça, p. 103 28 NU (2006). Estudo das Nações Unidas sobre a Violência Contra Crianças. Nações Unidas, p. 14 29 Idem, p. 17 30 Idem, p. 18 17

Em Moçambique a escola constitui um dos espaços institucionais onde ocorre a violência. Um estudo realizado a nível das escolas de cinco províncias de Moçambique revelou que o abuso sexual é um problema generalizado nas escolas e que as formas de abuso sexual envolvendo a força são mais reconhecidas do que as formas verbais. Carícias sem consenso e as insinuações indecentes foram as manifestações de abuso sexual menos reconhecidas. A mesma pesquisa notou que num universo de aproximadamente 950 raparigas 8 a 16% sofreu alguma forma de abuso com relação sexual e, até aproximadamente 35% esteve sujeita ao assédio sexual envolvendo a persuasão verbal. 31 Os resultados das entrevistas dos actores sociais indicam que grande parte de abuso envolve relação sexual (65%), e em geral, o professor é o abusador. Regra geral foram descritos três tipos de cenários comuns associados à exploração e abuso sexual de raparigas estudantes pelos seus professores: no primeiro cenário o professor oferece á rapariga que está com dificuldades na escola, a oportunidade de ser aprovada para o ano seguinte em troca de favores sexuais. O segundo cenário envolve a rapariga a ser chantageada para ter relações sexuais com o professor que a ameaça reprová-la, embora tenha resultados escolares adequados. O terceiro cenário envolve o professor a forçar e assaltar sexualmente e a violar as estudantes do sexo feminino na própria escola ou em sua casa. Embora o primeiro cenário seja considerado o mais comum, pesquisas sobre opiniões de estudantes sobre o fenómeno revelaram que mesmo o facto de ser uma boa estudante não oferece qualquer protecção: se o professor gosta duma rapariga, fará tudo o que for necessário para manter relações com ela. 32 Vários estudos apontam para a existência de um elevado nível de abuso sexual no sistema escolar. Um estudo realizado com o apoio da Save the Children, da CARE International, do MEC e da Rede-CAME/FDC, estimou que pelo menos 8% das crianças a frequentarem escolas tinham sofrido abuso físico sexual. 33 Num Perfil dos Jovens do estudo realizado pelo Ministério da Juventude e Desportos em 2004 e com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), 20% das raparigas que participaram no estudo declararam que o abuso era um problema nas escolas. As estudantes informaram ter sido forçadas a escolher entre fazer sexo, pagar dinheiro ou ser expulsas da escola. 34 Segundo o estudo da Actionaid realizado em 2004, o abuso sexual contra menores ocorre mais nos níveis de ensino inferiores e as suas maiores vitimas são raparigas, os níveis básicos, EP1 e EP2, sendo raro a ocorrência do fenómeno no Ensino Secundário do 1º e 2º Graus respectivamente. 35 O mesmo estudo também salienta que a vulnerabilidade da rapariga nestes níveis poderá estar associado, ao facto da sua personalidade e convicções estarem ainda em processo de desenvolvimento. 36 Este estudo é corroborado por outro realizado pela Save the Children UK realizado em 2005 sobre abuso sexual das raparigas nas escolas moçambicanas, da cidade de Maputo, província de Maputo, Gaza, Inhambane, Sofala, e 31 Matavel, Joaquim (ed) (2005). Relatório do Estudo sobre Abuso Sexual da Rapariga nas Escolas Moçambicanas. Save The Children UK, 2005, p.7 32 Save the Children UK (2007). Proteger as crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas crianças rurais em Moçambique. Maputo: Save the Children UK 33 UNICEF (2006). A Pobreza na Infância em Moçambique Uma Análise da Situação e das Tendências. Maputo, p. 189 34 Idem, p. 22 35 Actionaid (2004). Estudo sobre o Abuso Sexual da Rapariga nas Escolas, p. 25 36 Idem 18

Nampula. No EP1 o numero de abusadas correspondeu a 31.6% e na EP2 45.2%, contra 21% do ES 1 e 2.6% para ES2. 37 O mesmo estudo da Actionaid enfatiza a importância das relações de parentesco para a ocorrência de abusos sexuais contra menores. Para o estudo O grau de parentesco entre a vítima e as pessoas com as quais reside, parece ser factor preponderante na propensão ao abuso: 63% das abusadas provém de famílias separadas, umas não vivem com nenhum dos pais e algumas das abusadas vivem com os maridos. As que viviam com os maridos se, se considerar a sua idade dir-se-ia que continuam numa situação de abuso, por serem ainda menores de 18 anos. 38 O estudo da Actionaid também faz uma relação entre o abuso sexual e a área de residência, sublinhando que acima de 80% das abusadas são oriundas de famílias vivendo nas zonas suburbanas das cidades (pais deslocados devido à guerra) ou nas zonas rurais, economicamente pobres; o que revela que a vulnerabilidade económica é um factor que condiciona o abuso sexual. 39 O estudo da Save the Children chega ás mesmas conclusões ao atribuir a ocorrência do abuso nas zonas urbanas em 51% contra 49% nas zonas rurais. O abuso sexual contra menores ocorre também a nível da comunidade sob forma de violação, entendida como forma de violência onde um indivíduo força outro a ter relações sexuais contra a vontade dessa pessoa. O protagonista pode ser conhecido da menor, ou pode ser um estranho que a ataca quando está sozinha em circunstâncias que considere propícias. 40 V.3. A VIOLÊNCIA NA COMUNIDADE A comunidade constitui uma fonte de protecção e solidariedade para as crianças e ao mesmo tempo é ambiente de violência para menores. A violência na comunidade pode assumir a forma de violência física e sexual, raptos e tráfico. A violência pode também estar associada aos meios de comunicação de massa e a novas tecnologias de informação e comunicação. Crianças mais velhas ficam expostas a um risco maior de violência na comunidade e as meninas ficam expostas ao risco da violência sexual e da violência baseada no género também. 41 Em contextos de Moçambique as crianças são vulneráveis à violência sexual e exploração por parte de membros da comunidade. A violência sexual é mais cometida por alguém que a criança conhece, como familiares ou adultos em cargos de confiança mas também pode ser cometida por pessoas que a criança não conhece. Ela assume outras práticas como a prostituição infantil, os casamentos e gravidezes precoces. PROSTITUIÇÃO INFANTIL A prostituição infantil é também um abuso sexual de menores. A prostituição infantil geralmente se define como uma actividade onde actos sexuais com menores são realizados em troca de pagamento e, pode ocorrer de diversas formas: 37 Actionaid (2004). Estudo sobre o Abuso Sexual da Rapariga nas Escolas, p. 25 38 Idem 39 Idem 40 Save the Children UK (2007). Proteger as crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas crianças rurais em Moçambique. Maputo: Save the Children UK, p.8/9 41 NU (2006). Estudo das Nações Unidas sobre a Violência Contra Crianças. Nações Unidas, p. 22/24 19

incentivo ou a coação para que uma criança se dedique a qualquer actividade sexual ilícita; a exploração da criança na prostituição ou outras formas sexuais ilegais; e a exploração da criança em espectáculos ou matérias pornográficos 42. Tendo em conta o conceito de criança, a designação de prostituição infantil é ambíguo porque supõe em princípio que é realizada por alguém que não tem ainda capacidades de juízo ou de decisão. Embora ocorra com o consentimento do menor/criança, a prática da relação sexual é considerada violência não sendo o consentimento válido. Uma pesquisa realizada pela ILO em 2006 alerta para que evite explicações simples do fenómeno da prostituição infantil. Apesar de investigadores e profissionais da área concordarem que geralmente a prostituição infantil é causada por dificuldades económicas, fenómenos específicos devem ser objecto de análises detalhadas. No contexto de rápidas transformações sociais e económicas com consequências directas para as dinâmicas familiares, uma compreensão do fenómeno prostituição infantil tem, também, que olhar para as crianças como agentes. Isto, não significa culpabilizar as vítimas mas, reconhecer a complexidade do fenómeno. Embora atendendo à especificidade de cada fenómeno, pesquisas existentes mostram que há a tendência das raparigas optarem pela prostituição porque acreditam que conseguem ganhar mais dinheiro enquanto que os rapazes geralmente optam pelo comércio informal. A prostituição infantil ocorre envolvendo indivíduos de faixas etárias diferentes. Estudos sobre o fenómeno em Moçambique mostraram que a maioria dos clientes envolvidos na prostituição infantil são adultos com estabilidade financeira, comportando-se como sujeitos activos. Do outro lado encontram-se adolescentes, prostitutas e vitimas que são agentes passivos e cúmplices no processo e acção. Para estes estudos, a prostituição infantil reflecte o comportamento dos adultos porque as crianças não nascem prostitutas, propondo deste modo a designação de crianças prostituídas em vez de crianças abusadas sexualmente ou prostitutas 43. Uma das variantes documentadas do que se pode considerar prostituição infantil para responder a necessidades materiais consumistas é a ocorrência de relações sexuais de carácter transaccional entre adultos e crianças. É cada vez mais frequente a reportagem de casos de sexo transaccional intergeracional onde os homens são adultos e as mulheres são adolescentes e jovens. Termos como titios e catorzinhas ou paga e pisa (Bagnol e Chamo 2003) referem-se a este tipo de relacionamentos que equivale aos sugar dadies da literatura inglesa. Esta é uma realidade crítica num contexto com altas prevalências de HIV. Embora assuma facetas diferenciadas nos vários lugares onde o fenómeno ocorre, a prática de sexo entre pessoas de idades diferentes é genericamente uma prática implicitamente aceite e é sustentada por uma série de argumentos que prescrevem atitudes de aceitação e permissão o que concorre para reproduzir o fenómeno; com destaque para as ideias de que 42 Convenção sobre os Direitos da Criança, editada pelo UNICEF e MIMAS, p. 24 43 Prostituição, Abuso Sexual e Trabalho Infantil em Moçambique: O Caso Específico das Províncias de Maputo, Tete e Nampula. Campanha Contra o Abuso Sexual de Menores. Terre des Hommes. Maputo, p. 17 20

primeiro é uma forma de demonstração de masculinidade e até de poder económico e segundo, um estratégia de reprodução individual e colectiva num contexto de falta de oportunidades económicas e de consumismo exacerbado. A prática desta forma de prostituição é muitas vezes associado á pobreza, mas dados da realidade mostram que a motivação para se envolver nestes relacionamentos está também ligada à procura de bens considerados supérfluos (celulares, roupas de marca), satisfação de caprichos ou mesmo de vontade de distinção no grupo. A nível do código penal moçambicano a questão da prostituição infantil é tratada como abuso de menores. O código penal em vigor segundo Malate consagra o princípio da protecção absoluta de crianças menores de doze anos contra todas formas de abuso sexual : 44 Por isso por mais que uma menor de doze anos dê consentimento para uma relação sexual o código penal penaliza como crime de violação ao autor. 45 A reforçar a protecção absoluta de menores de doze anos não existe o artigo referente ao crime de lenocínio e corrupção de menores, o qual incorrem todos aqueles familiares ou encarregados de educação, professores, ou outra pessoa que porventura tenham obrigado a menor a manter relações sexuais 46. Ainda para a protecção de menores mesmo sem ser um capítulo específico que trate do assunto, existe a tipificação de crime de violação, consagrado no código penal, que segundo Malate que pode ser usado para julgar casos que inclui: (1) relações sexuais conseguidas contra a vontade da mulher, (2) relações sexuais conseguidas com emprego da violência física ou de forte intimidação, (3) relações sexuais conseguidas com recurso a qualquer fraude que não seja sedução e (4) relações sexuais realizadas quando a mulher ou rapariga se encontre privada do uso da razão 47. Outro artigo que pode ser usado para a protecção de menores é sobre o atentado ao pudor, pois inclui apalpar ou acariciar as nádegas, seios, pernas ou outras partes do corpo de uma mulher ou rapariga sem o consentimento dela. Introduzir, encostar ou colocar o órgão sexual masculino, no ânus, nas coxas, na boca, nos ouvidos ou em qualquer parte do corpo do homem ou da mulher sem o consentimento da pessoa visada, entre outras situações 48. CASAMENTOS PREMATUROS A Convenção dos Direitos da Criança (CDC) não aborda especificamente a questão de casamentos precoces mas nas suas ligações directamente relacionadas com outros direitos, como por exemplo o direito a liberdade de expressão, o direito de protecção contra todas as formas de abuso, o direito à sobrevivência e ao desenvolvimento e consideração dos melhores interesses da criança, os casamentos de menores podem ser considerados como estando a violar as estipulações da CDC. Os casamentos prematuros, forçados, arranjados e gravidez na adolescência são questões intimamente inter-relacionadas e constituem outra forma de violência de menores. Estas práticas são consideradas violência porque na sua quase totalidade, a sua ocorrência não tem como base o livre consentimento dado por ambas as partes. Por esse facto, estes casamentos 44 Malate, Teles (s.d). Abuso Sexual de Menores é Crime, Ministério para a Coordenação da Acção Social, Maputo, p. 4 45 Idem, p. 4 46 Idem, p. 10 47 Idem, p. 5 48 Idem, p. 12. 21

violam os direitos das pessoas em causa sejam homens ou mulheres e independentemente da sua idade. 49 Moçambique é um dos países com dados preocupantes sobre o fenómeno. Segundo o IDS de 2003 (citado pela SC UK 2005) quase um quarto (23%) das mulheres moçambicanas estão casadas quando atingem 15 anos de idade, e mais de metade das mulheres (56%) estão casadas quando atingem os 18 anos de idade. Em contrapartida, somente 3% da população nacional masculina é casada com 15 anos de idade, e mesmo com 20 anos de idade, somente 32% possuem esposa. De acordo com o estudo, ao casar-se, espera-se que a menor renuncie á sua infância e muitas vezes a escola para assumir o seu papel de mulher e esposa, incluindo manter relações sexuais com um homem mais velho e que pode não ter sido ela a escolher. É nesta perspectiva que o casamento prematuro é visto como violência ou forma de legitimar o abuso sexual das crianças. A prática pode constituir igualmente uma forma de exploração sexual das crianças num contexto que pais casam as menores para obter benefícios económicos, sociais ou para puder sustentar a família. 50 A grande maioria de pessoas que casam na adolescência são mulheres, são comuns estes casamentos em sociedades onde a subserviência da criança e mulher estão fortemente enraizados. Os casamentos precoces não só negam o direito das partes escolherem se querem ou não casarem e com quem, mas também implicam riscos a saúde das raparigas, sejam ou não casadas. O casamento prematuro constitui um factor de risco porque implica quase inevitavelmente relações sexuais. Nas sociedades onde tal se consuma existe a forte pressão para se ter filhos logo após o casamento e a taxa de concepção de mulheres jovens casadas é muito baixa 51 Noutra vertente das consequências, existe uma correlação entre o casamento prematuro e a saída do sistema de educação, por se cuidar de outros afazeres, com consequências para a privação do direito à educação e no desenvolvimento social e humano das raparigas envolvidas. A aparente apatia do sistema de educação e as normas permissivas como o Despacho nº 39/GM/2003 do Ministério da Educação, que prescreve a mudança de turno para a rapariga grávida e apenas o processo disciplinar para o protagonista concorrem para aumentar a tolerância em relação a estes tipos de violência e á sua reprodução. TRÁFICO E VENDA DE CRIANÇAS O tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e de meninas, não constitui nada novo. Historicamente, este realizou-se sob diferentes formas, mas no contexto da globalização, adquiriu novas configurações. É um fenómeno complexo, multifacetado e constitui uma actividade comercial, orientada pela procura, com um mercado enorme para mão-de-obra barata e sexo comercial. O tráfico de menores é fenómeno complexo e tem a sua origem na interacção entre a pobreza, a migração de mão-de-obra, conflitos ou convulsões políticas que provocam deslocamentos populacionais. O tráfico e a venda de crianças têm sido uma das formas pelas quais as crianças são retiradas violentamente dos seus lares para vários destinos de exploração. Geralmente onde há o 49 UNICEF (2004). Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça, p 92 50 Save the Children UK (2007). Proteger as crianças: atitudes comunitárias em relação ao abuso sexual de crianças nas crianças rurais em Moçambique. Maputo: Save the Children UK, p. 6 51 Proteção da criança: Manual para Parlamentares, n 7, União Inter parlamentar, Suiça p. 93 22