A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM SALA DE AULA: A INTERPRETAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA

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Transcrição:

A PRODUÇÃO DE SENTIDOS EM SALA DE AULA: A INTERPRETAÇÃO NUMA PERSPECTIVA DISCURSIVA Camila Borges dos Anjos RESUMO: O propósito deste estudo é apresentar e discutir propostas de ensino no ambiente escolar que privilegiem a produção de sentidos à luz da teoria da Análise do Discurso de linha francesa, estruturada por Michel Pêcheux. Para tanto, apresenta-se uma reflexão sobre os impedimentos que o ensino tradicional impõe ao trabalho de interpretação a partir do espaço dominado pela gramática normativa no meio escolar, bem como o papel que exerce o Livro Didático nas práticas de ensino. Nesse movimento, parte-se do princípio de que as noções de sujeito, língua e sentido podem contribuir para a prática pedagógica do ensino de língua, ao deslocar o trabalho com a interpretação de um lugar de contemplação de verdades, para o espaço de verdades possíveis. PALAVRAS-CHAVE: Interpretação. Análise do Discurso. Sujeito. Língua. Sentido. 1 Introdução O ensino de Língua Portuguesa, em tese, tem-se ancorado a conceitos gramaticais. E, assim, apesar da gramática normativa ser algo importante no estudo da língua, ela, por si só, não garante que o aluno domine a língua em situações de interação verbal. Restrita ao estudo da gramática normativa, a língua e tudo que ela convoca, leitura, escrita, interpretação, acabam se resumindo a regras de bem dizer. Neste sentido, dar-se-á início a esta pesquisa fazendo-se uma análise da interpretação do ponto de vista do ensino tradicional, visto que o processo de ensino e de aprendizagem nas aulas de Língua Portuguesa precisa ser repensado. E tal necessidade se dá porque a escola parece não conhecer que o aluno já é um falante de sua língua materna, ou seja, que ele já possui conhecimentos prévios da estrutura que organiza sua língua. Entende-se, desta forma, que o aluno não pode limitar-se a um ensino de língua pautado em regras e classificações. Neste âmbito, busca-se, à luz da teoria da Análise do Discurso 1, pensar um aluno, enquanto sujeito, com capacidade para produzir sentidos a partir dos conteúdos vivenciados em sala de aula. Para delimitar este estudo, discutir-se-á o papel que assume a gramática normativa em sala de aula, de modo a verificar como os alunos estão realizando seu trabalho de interpretação. Neste contexto, verificar-se-á a posição que ocupa o livro didático 2 na escola. Na sequência, estabelecer-se-á uma ponte entre a AD e o ensino tradicional. Neste percurso, a escola será entendida como um espaço que abriga sujeitos afetados pelo social, histórico, ideológico. A partir deste campo teórico, buscar-se-á entender sujeito, língua e sentido de modo que possam nos ajudar a retirar daí contribuições para pensar o ensino de língua na escola. A partir desta abordagem, concebida pela AD, julga-se ser possível perceber o ensino de língua como algo que possibilita o aluno a pensar acerca dos textos, orais e escritos, Artigo apresentado no VI Simpósio sobre Formação de Professores (SIMFOP) da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL. Estagiária Parfor da Unisul. Graduada em Letras Português/Inglês. E-mail: ingles_camila@hotmail.com 1 Análise do Discurso será entendida como AD. 2 Livro Didático, a partir daqui, será tratado como LD.

2 e visualizar um professor que não segue apenas prescrições normativas, mas que avista a língua nas suas inúmeras possibilidades para formulação de sentidos. E, desta forma, não se fundamente nas verdades ditadas por várias atividades dos LDs, tais quais não permitem que ambos, aluno e professor, consigam avançar neste percurso. Considera-se, por ora, que este percurso, pode nos ajudar a chegar a algumas respostas a partir das questões inquietantes que nos apresenta Furlanetto (2003) 3 : [...] como são os discursos que atravessam o espaço de uma aula? Como o saber científico é representado aí? Qual o papel do professor em relação ao conhecimento? E o dos alunos? Quais as regras de funcionamento do discurso nesse espaço? Procura-se a homogeneidade do conhecimento e das relações pessoais? Como se apresentam os sujeitos? Há conflitos? Como eles emergem? Há alguma coisa que se possa detectar como ensino diferente? (2003, p. 6). Não se pretende, aqui, e também não seria possível, esgotar tais perguntas, todavia parte-se agora em busca de possíveis respostas. 2 A gramática normativa no ensino tradicional O ensino de Língua Portuguesa durante muito tempo esteve ancorado a conceitos gramaticais. E, assim, apesar de a gramática normativa desempenhar um importante papel no estudo da língua, ela não deve ser estudada como a única teoria linguística existente, afinal, por si só, não garante ao aluno dominar a língua em situações comunicativas de interação verbal. A língua excede a dimensão gramatical e pensar nisso já equivale a uma mudança nas práticas de ensino. Os alunos atualmente têm acesso aos mais diversos textos que circulam na mídia, entretanto constantemente se ouve no contexto escolar que eles apresentam dificuldades de leitura e escrita e que não sabem interpretar. Isto acontece, em tese, porque a tradição gramatical ainda se encontra muito presente nas aulas de Língua Portuguesa, embora as propostas de atividades tenham assumido outra postura visando às práticas discursivas. É o ensino dessa língua, estruturado pelas nomenclatura gramaticais que, para Antunes (2007), deveria acontecer de forma maleável, versátil, sujeita a efeitos especiais, por vontade do falante (2007, p. 50). Desta forma, seria possível que o seu estudo não fosse tão embasado nas categorias gramaticais, mas sim no que isso tem a ver com os usos reais da língua, o que permitiria maior interação entre o sujeito e a linguagem, já que, de acordo com Bagno (1999), não se deve incorrer no erro milenar dos gramáticos tradicionalistas de estudar a língua como uma coisa morta, sem levar em consideração as pessoas vivas que a falam (1999, p. 09). Esta coisa morta, da qual trata Bagno, a partir das concepções de uma nova abordagem de língua, que levasse em conta o sujeito aluno, foi sendo modificada e, recentemente, tem sofrido inúmeras alterações, pois se está percebendo que a valorização excessiva dos compêndios gramaticais não combina com o verdadeiro movimento da língua. Esta, portanto, deve ser compreendida como um instrumento de comunicação que está em constantes mudanças devido às diferentes situações de interação verbal que ocorrem entre as pessoas. A estabilização linguística, decorrente do ensino voltado, em tese, durante muito tempo apenas para gramática normativa, tornou a escola um lugar em que se aprende o necessário, mas não o suficiente para interagir com a língua. Esse panorama linguístico, no 3 No texto Análise do Discurso e ensino: como a teoria situa a prática, apresentado na mesa-redonda Análise do discurso e ensino de línguas, durante a II Semana Integrada das Licenciaturas UNISUL. Setembro 2003.

3 entanto, aos poucos vem assumindo um novo espaço no ambiente escolar à medida que avista a língua em suas inúmeras possibilidades para formulação de sentidos. 3 Livro Didático: um condutor de verdades ou um campo de sentidos? O ensino de língua na escola, ao longo dos anos, como se observou na seção anterior, não vinha contribuindo satisfatoriamente para se compreender o funcionamento da língua. A escola, muitas vezes, como cita Antunes (2007), esteve atada a um único modo de atuação. Sem relativizações; sem atenuações. Sem qualquer coisa como: Depende! (2007, p. 73), o que limitou o aluno às regras e classificações, impedindo-o em suas construções textuais, pois sua concepção de língua e de sentido estava amarrada a uma ideia de verdade, de literalidade. Falar do ensino de língua na escola é falar também de como o Livro Didático apresenta essas questões. O LD, a partir da implantação do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático) pelo MEC, passou a ser objeto de estudo crescente por parte de teóricos da área, que refletem sobre sua metodologia educacional, organização, estrutura e fundamentação para o efetivo ensino da Língua Portuguesa. O LD atua como um poderoso instrumento de ensino da língua nas escolas, o qual tem sido utilizado intensamente pelos elementos-chave da sala de aula, o professor e o aluno. Esse instrumento, no entanto, desde o início do processo de ensino e de aprendizagem de língua na escola, primeiramente denominado cartilha e logo, LD, tem monitorado ou mesmo limitado o trabalho dos alunos em sala de aula, a partir de modelos e respostas prontas que, geralmente, não exploram as possibilidades diferentes de produção dos sentidos, apenas conduzem para um único sentido, fiel ao que o manual dita. Não há, conforme Ota (2009, p. 218), [...] uma preocupação com a construção da textualidade, com a construção do sentido, com os mecanismos de dizer. Assim, [...] a preocupação em identificar os elementos da comunicação cede lugar à preocupação em identificar a estrutura do texto. A proposta atual do material didático, entretanto, tem vivido um período de transição, uma vez que um novo olhar para trabalhar a língua está sendo lançado, procurando abordá-la no campo do discurso. O modo como os manuais didáticos produzidos recentemente estão percebendo a língua aponta para outra perspectiva de ensino, diferente daquela concebida anteriormente, voltada essencialmente à construção frásica. O LD, nesse viés, se dirige para um ensino de língua desvinculado da inflexibilidade que obstrui a chance do aluno construir o seu texto de uma forma ou de outra, ao possibilitá-lo, conforme cita Antunes (2003), a fazer um trabalho crítico, diferenciado e comunicativamente relevante (2003, p. 170). Para isso, o material traz atividades que convidam o aluno a interpretar, a produzir sentido, ao abrir espaço para novos dizeres, para outras respostas, sem a exigência de uma única possibilidade de construção e sem a culpa de escrever dessa ou daquela forma por que há apenas uma maneira correta de se expressar. Todavia, essa nova abordagem do manual didático ainda é recente, há ainda LDs que, como trata Coracini, se constituem como [...] um texto fechado, no qual os sentidos já estão estabelecidos (pelo autor), para ser apenas reconhecido e consumido pelos seus usuários (professor e alunos) (1999, p. 68). Nesse âmbito, verifica-se que há, no contexto em questão, LDs que [ainda] não excederam a prática estrutural da língua, e continuam a legitimar dizeres, que passam a representar uma verdade inquestionável, reduzindo o ensino a um mero acúmulo de informações já dadas. E, da mesma maneira, há manuais didáticos que estão atentos às transformações que a língua vem sofrendo em seu uso social e, assim, têm abarcado um estudo de língua que não segrega o que é da fala, o que é da escrita e o que é da comunicação,

4 ao promover uma vivência da língua que não acontece separadamente, desassociada, isolada dos elementos que são próprios de sua organização. 3.1 O estudo do texto no Livro Didático Alguns exercícios dos LDs não fornecem subsídios para que os alunos tenham liberdade em suas produções, pois eles já trazem suas respostas pré-estabelecidas, e a versão do professor já vem com a resposta definida, mesmo enquanto atividades de interpretação em que os sentidos sejam abertos. Já, outros exercícios dão abertura a outras dimensões da língua, principalmente no que se refere ao texto e ao discurso, sem, neste caso, demolir tudo o que a gramática normativa construiu. No que tange ao estudo do texto, parte-se, então, para uma análise de alguns exercícios, a fim de verificar como os LDs de Língua Portuguesa têm encarado esse novo tratamento linguístico com base na teoria do discurso. Figura 1 Atividade Livro Didático Figura 1 - Português: linguagens 2, Ensino Médio. Fonte: Cereja, William Roberto (2009, p. 32). A atividade anterior propõe uma produção textual e o tema abordado é a dengue, assunto bastante discutido no quadro atual brasileiro. Este, portanto, já é um ponto positivo, uma vez que a pertinência do assunto do qual se irá tratar estimula na construção do texto. Outro critério importante dessa campanha proposta é o público-alvo ao qual se destina, pois faz com que o aluno pense como escrever a partir do conhecimento de para quem o texto será. Essa proposta da campanha contra a dengue também contribui para que o aluno esteja em contato com o ambiente em que vive, assim, além de desenvolver a fala e a escrita com base no tema em questão, o aluno também tem a oportunidade de agir em prol de um

5 comum a todos, que é alertar a sociedade dos malefícios que a doença pode trazer. Desta forma, o trabalho não se justifica apenas dentro da escola, mas ganha vida fora dela, à medida que o aluno atribui sentido a essa prática e aprende a língua trabalhando na sua própria realidade. Nesse contexto, é o fazer diferente que transforma o aluno, pois são em produções como essa que o aluno assume um espaço de produtor de textos, de modo a ultrapassar aquele dizer já legitimado e, assim, posicionar-se como um sujeito que de fato interpreta ao assumir o seu próprio discurso e construir o seu próprio sentido. Figura 2 Atividade Livro Didático II Figura 2 - Português: linguagens 2, Ensino Médio. Fonte: Cereja, William Roberto (2009, p. 56). Esse exercício faz uso de um meio exemplar para extrair do aluno a interpretação: o anúncio. O anúncio publicitário acima, como gênero em circulação na mídia social, traz à tona questões de natureza gramatical e também da ordem do discurso. Destaca-se, ainda, o trabalho com a classe gramatical adjetivo, considerando-o na construção do texto, embora a princípio ele tenha sido abordado apenas em sua essência gramatical, nos demais exercícios ele foi concebido a partir da carga semântica que carrega. O anúncio, como já se tratou anteriormente, é de grande valia no ensino de língua, desde que seja explorado de modo a convidar o aluno para um trabalho de interpretação. O anúncio acima, assim como a maioria, traz dois tipos de linguagem, o que também é importante, pois geralmente trabalha-se mais com a linguagem verbal, talvez pelo fato de priorizar-se a escrita, no entanto, Souza (2003) ressalta que A linguagem não verbal possui sentido figurado e admite livre interpretação por todos os membros de uma sociedade; é conotativa (2003, p. 3). Isso, portanto, remete a um trabalho mais significativo de língua, considerando a interpretação, conforme Orlandi (2001), como uma prática simbólica, uma prática discursiva que intervém no mundo, que intervém no real do sentido (2001, p. 25). A interpretação do anúncio, neste caso, volta-se para a utilidade do carro, trazendo à tona toda uma história de tecnologia, evolução, comercialização, sendo atualmente um veículo muito útil na vida das pessoas, que sonham em ter um carro zero, sofisticado, bonito,

6 etc. O anúncio, assim, mexe no ideal de carro que as pessoas têm ou desejam ter, ao divulgar o carro da marca CIVIC, enfatizando que é ótimo e ressaltando suas qualidades. Nesse movimento, essa atividade se aproxima do leitor/aluno, fazendo-o atribuir sentidos outros à propaganda publicitária. Figura 3 Atividade Livro Didático III Figura 3 - Português: linguagens 2, Ensino Médio. Fonte: Cereja, William Roberto (2009, p. 183). 4 O sujeito em Análise do Discurso A língua materna faz parte da vida de cada ser humano que, ao aprender as primeiras palavras, já se torna, em princípio, um conhecedor de sua língua. É esta língua, por sua vez, que é ensinada na Instituição Escola, uma língua que se considera que os alunos já dominam. Para dar início a uma reflexão nesse sentido, Gallo (2008) afirma que: [...] quando a língua materna é disciplina a ser ensinada, ela é uma disciplina particular: o conhecimento da linguagem também é o conhecimento do sujeito. As questões sobre a linguagem fazem intervir questão do sujeito. No nosso ponto de vista, sujeito de um Discurso. (2008, p. 12). Neste sentido, busca-se compreender a noção de sujeito, pensado nessa pesquisa em relação ao aluno, no contexto da sala de aula, que, conforme discutido, encontra-se, muitas vezes, limitado a falar, interpretar, enquanto na perspectiva da AD, abandona-se essa noção idealista, imanente, pois aqui o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas tal como existe socialmente, interpelado pela ideologia. Isso, portanto, vem mexer na concepção de sujeito ideal da sala de aula, que para a escola deve dominar regras e desenvolver competências, ao passo que a teoria do discurso compreende um sujeito que pode incorrer no erro, na falha e nos deslizes que são próprios da língua.

7 Fernandes (2005, p. 33) aponta que é necessário considerar que não se trata de indivíduos compreendidos como seres que têm uma existência particular no mundo; isto é, sujeito, na perspectiva em discussão, não é um ser humano individualizado, um sujeito discursivo deve ser considerado sempre como um ser social, apreendido em um espaço coletivo. Desta forma, conforme Brandão (1994), o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala outras falas se dizem (1994, p. 92). Para a AD, o sujeito do discurso é histórico, social e descentrado. Histórico, porque não está alienado/afastado do mundo que o cerca; social, porque não é o indivíduo, mas aquele apreendido num espaço coletivo; e descentrado, pois é cindido pela ideologia 4 e pelo inconsciente. Entende-se, desta forma, que o aluno se inscreve no discurso histórico que o situa frente aos acontecimentos da vivência diária; no discurso social que o faz pensar coletivamente frente ao espaço que está inserido, por exemplo, na escola; e no discurso descentrado que o insere em um universo ideologicamente determinado. Neste contexto, conforme cita Orlandi (2005), o sujeito é [...] afetado pelo real da língua e também pelo real da história, não tendo o controle sobre o modo como elas o afetam (2005, p. 20). Isto, neste caso, implica que, na escola, este aluno se encontre em constante reformulação de dizeres, visto que estes não se originam em suas próprias produções, tais quais se reconstroem a partir dos discursos citados acima que o fazem significar como sujeito. Trazendo esta questão para o processo de ensino de língua, o aluno, que é sujeito, ao ser afetado pela história e pela ideologia, perde sua autonomia em relação à língua e aos sentidos, o que vem mexer na ideia que se tem de autoria. Pensada a partir de Gallo (1995), a autoria [...] tem relação com a produção do novo sentido, e ao mesmo tempo, é a condição de maior responsabilidade do sujeito em relação ao sentido que o produz e, por essa razão, de maior unidade (1995, p. 29). Assim, o discurso do aluno, na escola é seu, mas é também do outro e, nesta soma de muitas vozes, lidar com a produção do novo e ocupar a função de autor também é um exercício relativo. Importante dizer que se está entendendo autoria como o domínio de alguém sobre a originalidade de um texto, mas como a compreende Furlanetto (2009), segundo a qual, autoria: [...] implica a lida cotidiana com um sem-número de práticas sociais e discursivas: fala e escuta, leitura e escrita, reflexão, crítica, análise da linguagem em vários níveis. Não podemos fazer da leitura mera extração de informações que possam ser passadas adiante; ela tem, autenticamente, caráter produtivo e é assim que precisa ser desenvolvida: interpretação também é produção. (2009, p. 8). A escola, conforme já se tratou em capítulos anteriores, por muito tempo esteve focada em classificações gramaticais, o que, de certa forma, acabou negando ao aluno qualquer trabalho de autoria, visto que não o fazia pensar sobre os textos. Com essa nova concepção de língua, tão presente na realidade atual, que já veio mexer na composição do material didático, estima-se um aluno que, neste caso, é autor do seu dizer. Conforme Gallo (1995), a autoria [...] tem relação com a produção do novo sentido, e ao mesmo tempo, é a condição de maior responsabilidade do sujeito em relação ao sentido que o produz e, por essa razão, de maior unidade (1995, p. 29). Para a escola, o sujeito aluno é dono do seu dizer e responsável por suas palavras. Para a AD, o sujeito também se percebe no controle dos sentidos, pois é afetado por dois tipos 4 Ideologia refere-se, aqui, na posição de Orlandi (1999, p. 48) não sendo um conjunto de representações, nem muito menos como ocultação de realidade. Ela é uma prática significativa; sendo necessidade da interpretação, não é consciente ela é efeito da relação do sujeito com a língua e com a história em sua relação necessária, para que se signifique.

8 de esquecimentos: o esquecimento 1 e o esquecimento 2. Para tratar destes esquecimentos, é importante compreender a noção de formação discursiva, que Pêcheux traz como um espaço de reformulação-paráfrase onde se constitui a ilusão necessária de uma intersubjetividade falante pela qual cada um sabe de antemão o que o outro vai pensar e dizer..., e com razão, já que o discurso de cada um reproduz o discurso do outro [...] (2009, p. 161). Neste entendimento, Pêcheux (2009) afirma que no esquecimento 1 [...] o sujeito falante não pode, por definição, se encontrar no exterior da formação discursiva que o domina (2009, p. 162). Isso representa dizer que nesse esquecimento, o sujeito assume uma determinada formação discursiva, posicionando-se e, nesse sentido envolve-se num processo parafrástico, definido por Orlandi (2001, p. 20) como aquele que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz de linguagem), num movimento de retomada de dizeres à medida que reproduz o discurso do outro. O esquecimento número 1, também chamado esquecimento ideológico, de acordo com Orlandi (2001), dá a ilusão de que somos donos do que dizemos, quando na verdade, retomamos sentidos já existentes (2001, p. 35). Segundo Orlandi (2001), o esquecimento número 2 é da ordem da enunciação, em que, em meio a famílias parafrásticas (diferentes formulações do mesmo dizer), escolhe-se entre uma forma de falar ou outra (2001, p. 35). Essas famílias parafrásticas indicam que há várias maneiras de dizer. Para Pêcheux (2009), o esquecimento 2 é aquele em que [...] todo sujeito-falante seleciona no interior da formação discursiva que o domina, isto é, no sistema de enunciados, formas e sequências que nela se encontram em relação de paráfrase um enunciado, forma ou sequência, e não um outro, que, no entanto, está no campo daquilo que poderia reformulá-lo na formação discursiva considerada. (2009, p. 161). O esquecimento 2, neste caso, ao tratar das famílias parafrásticas, oportuniza o sujeito a falar diferente, a mexer em seu próprio dizer, tendo aí uma certa margem de manejo da língua. 5 O sentido para a Análise do Discurso Considerando os estudos em AD, a partir do momento em que desloca a noção de discurso como um processo de produção de sentido e de sujeito como cindido pela ideologia e pelo inconsciente, o interesse está em buscar entender a noção de sentido neste campo do saber. Nos últimos tempos, com os avanços das ciências relacionadas à linguagem, o ensino da Língua Portuguesa é algo que vem sendo discutido por gramáticos, linguistas e docentes. Considera-se que, nesta discussão, a AD e suas bases teóricas podem ajudar a pensar novos rumos para o estudo da língua na escola, pois esta área reivindica um estudo de língua que leve em conta suas condições históricas, culturais e ideológicas. Nesta perspectiva, a AD pode proporcionar ao aluno diferentes possibilidades de explorar a língua em seus diferentes efeitos de sentido, nas diferentes situações da prática oral e escrita. Sob esse ponto de vista, o sujeito, ao estudar a língua, passaria a compreendê-la não só por meio das nomenclaturas da gramática normativa, mas também através da leitura que ele fará a partir do seu conhecimento de mundo, suas vivências diárias e a intervenção/participação da escola para esta construção do saber. Assim, o aluno/intérprete seria possibilitado a produzir sentidos diversos que não se resumem apenas à decodificação do texto.

9 Neste contexto, o aluno, em seu trabalho de interpretação, não faria de seu discurso um simples sistema de decodificação das ideias que um texto pode conter. Ele estaria, neste caso, interpretando, o que, para a AD, vai muito mais além que a decifração do que já está dito, pois submete o trabalho dos sentidos às determinações da exterioridade. Sendo assim, não se busca, do ponto de vista da interpretação discursiva, o que o texto quer dizer, mas como ele significa nas condições em que aparece. Neste percurso, é possível perceber que, para a AD, um enunciado pode assumir diferentes sentidos. É neste âmbito que entra a noção de interdiscurso que nas palavras de Orlandi (2005) é: Todo conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o anonimato, possa fazer sentido em minhas palavras. (2005, p. 33, 34). Um discurso nunca é novo, o mesmo é transformado por diferentes indivíduos em diferentes situações, retomando sempre o que já foi dito. Com isso, o processo de ensino e de aprendizagem da língua que ocorre em sala de aula passa por outros dizeres de indivíduos distintos, assim, a palavra dos sujeitos que falam é modificada de modo que o aluno a adapte ao seu próprio discurso e produza os seus sentidos. Sentidos estes que, por sua vez, recuperam os sentidos já existentes e fundamentam-se ao inserir novas ideias no contexto em que se encontram. É o que Orlandi (2005) fala como o mesmo e o diferente interagindo no discurso. Diante da teoria estudada, acredita-se que a AD é parte essencial na prática pedagógica, pois nos dá condições de reconstruir sentidos, visto que, como já foi dito, os sujeitos, em AD, são possibilitados a gerar seus próprios sentidos com base naqueles que já estão expostos no texto. Assim fazendo, o aluno relaciona-se com a linguagem à sua exterioridade, contexto sócio-histórico no qual se insere e torna-se sujeito de seu dizer à medida que, ao pensar o texto a partir do que já está em sua superfície, ele produz sentidos seus que delimitam o seu entendimento acerca da língua. 6 A língua para a Análise do Discurso A noção de língua é marca permanente de investigação dos estudiosos da linguagem e, no campo da AD, conforme Orlandi (2005, p. 15), ela pode se significar de diversas maneiras à medida que a formulação do discurso dá abertura para que os sentidos se constituam. Sendo assim, para Orlandi (1996, p. 45), o que interessa para AD é a ordem da língua, não enquanto uma organização interna, sistêmica, mas como forma material atingida pela história. E, trazendo esta concepção para o ensino de língua na escola, verifica-se que esta materialidade histórica afeta os sujeitos envolvidos no contexto escolar, o que faz com que eles, enquanto alunos em sala de aula, tenham a ilusão de que são donos de seu dizer, ilusão esta dada pelos esquecimentos 1 e 2. Nesse entendimento, para Orlandi, a palavra não é um mecanismo que, quando utilizada por nós, é possível afirmar ser nossa, pois ela é afetada pela história e pela língua, por isso ressalta Orlandi que uma mesma palavra, na mesma língua, significa diferentemente, dependendo da posição do sujeito e da inscrição do que diz em uma ou outra formação discursiva (2001, p. 60). Nesta perspectiva, a AD estuda a língua em funcionamento, observando a fala do homem e procurando extrair sentidos em sua materialidade linguística e histórica, numa relação língua-discurso-ideologia.

10 Assim, para confirmar a influência da história na construção dos sentidos e do funcionamento da língua, Orlandi (2003) apresenta que: [...] a questão da história é colocada na base da reflexão sobre a linguagem, tanto na compreensão do seu funcionamento, como da representação que os sujeitos se fazem da língua e da constituição das disciplinas que tentam explicá-la ao mesmo tempo, a AD se institui como uma teoria semântica: explicar como os sentidos são produzidos na/pela materialidade da língua é seu principal objeto. (2003, p. 43). Vale ressaltar que esta história que também determina a língua não é a história que estuda os acontecimentos históricos da humanidade, uma história linear, cronológica. Para AD, a história intervém como exterioridade, transmitida pela materialidade do texto, em que se estabelece a língua. Isto, portanto, faz pensar que, à luz da AD, o sujeito aluno é afetado ideologicamente pela materialidade histórica que trabalha nele a possibilidade da construção de sentidos outros formados a partir do que está disposto no texto e implica, neste caso, a origem de gestos de interpretação que ocorrem na relação entre língua e exterioridade. Diante do exposto, entende-se que a língua para AD se constitui em torno de uma materialidade histórica e, porque pela historicidade é atingida, é que não se pode pensar em língua perfeita, já que, segundo Orlandi (2001, p. 60), a língua é algo que está sujeito a falhas, imperfeições e equívocos, nos quais tanto o sujeito quanto o sentido não são completos. E isto vem trazer a questão da incompletude que, segundo Orlandi (2001), [...] é o índice da abertura do simbólico, do movimento do sentido e do sujeito, da falha, do possível (2001, p. 93). Para elucidar esta ideia, para Orlandi (2001): [...] os enunciados da língua podem sempre escapar à organização da língua, ao trabalho da razão e da lógica sobre a linguagem. É neste espaço que se localizam os furos e as faltas que são estruturantes e próprios a ordem da língua. É o lugar enfim da incompletude da linguagem, onde tudo e tanto acontece. (2001, p. 24). No âmbito desta discussão, apesar de haver várias maneiras de se dizer, o que configura, neste caso, a construção dos sentidos, o ensino, em tese, não traz para a sala de aula todas estas possibilidades de interpretação, ou seja, o sujeito/aluno encontra-se tão contagiado pelos preceitos ideológicos que interpreta da maneira que lhe foi solicitado. Nesta perspectiva, nota-se que, para a AD, a língua é o material em que acontecem os efeitos dos sentidos, como forma instável, a qual não se fecha em si mesma. Portanto, ela não pode ser tomada como um todo fechado, cujos sentidos já sejam dados de antemão. Para Orlandi (2001), a AD: [...] não trabalha com a língua enquanto um sistema abstrato, mas com a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeito, seja enquanto membros de uma determinada forma de sociedade. (2001, p. 15, 16). Neste entendimento, a língua se constitui no dia-a-dia, analisada pelo contexto social do homem e da história. Assim, não se pode analisar a língua fora da sociedade, pois seu sistema se estabelece pelo histórico-social. Desta forma, destaca-se que, para a AD, a língua não é somente um sistema de signos a ser decodificado e analisado. Trata-se de um processo muito mais complexo que precisa levar em conta vários fatores de seu funcionamento. Neste âmbito, o trabalho de interpretação em sala de aula, se não pressupor questões ideológicas que afetam o sujeito exterioridade, materialidade histórica, ilusão encontra-se desvinculado do quadro que a AD

11 propõe. É por isso que a nova abordagem do material didático e de todo o ensino de língua tem apontado para a possibilidade de gestos de interpretação, imprimindo, assim, a ordem do discurso. CONSIDERAÇÕES FINAIS A prática da interpretação em sala de aula é crucial para o desenvolvimento de competências linguísticas e interacionais dos alunos. Ao longo do tempo, a língua ensinada na escola não autorizou o aluno a envolver-se efetivamente em práticas discursivas que lhe possibilitassem pensar sobre o que lê, ouve e escreve. Atualmente, no entanto, com a incidência do discurso, produzindo efeitos de sentido diversos, teóricos em geral passaram a considerar o texto como prática discursiva nos materiais didáticos. O lugar, neste caso, ocupado pelo aluno, à luz da teoria da AD, pode ser transformado, visto que ele pode pensar em estudar a língua sem restringir-se à língua enquanto sistema de códigos, buscando um ensino que os faça interagir, refletir e dialogar com os diferentes discursos. Por este viés, a AD procura compreender um sujeito que, ao estar envolvido com a língua e a história, constrói sentidos, definindo-os e inscrevendo-os a partir da relação com os sentidos já existentes, o que o permite constituir outros discursos nesta prática enunciativa/discursiva. Desta forma, é necessário perceber a língua como algo que está sujeito a efeitos de sentido produzidos a partir de sua materialidade linguística e histórica. A AD, ao tratar a língua como algo aberto para a constituição de dizeres, vai desmistificar as evidências do sentido, possibilitando pensar que há sempre mais de um sentido possível, que não só o que a escola traz, por exemplo, que seria o único correto. Referências ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAGNO, Marcos. Dramática da língua portuguesa: tradição gramatical, mídia & exclusão social. São Paulo: Edições Loyola, 1999. BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. Campinas: Unicamp, 1994. CEREJA, William Roberto. Português: linguagens. São Paulo: Editora Atual, Ensino Médio, 2009. CORACINI, Maria José Rodrigues Faria. Interpretação, autoria e legitimação do livro didático: língua materna e língua estrangeira. São Paulo: Pontes, 1999. FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do Discurso: reflexões introdutórias. Goiânia: Trilhas Urbanas, 2005. FURLANETO, Maria Marta. Análise do Discurso e ensino: como a teoria situa a prática. Mesa-redonda Unisul: setembro de 2003. GALLO, Solange Leda. O Discurso da escrita e ensino. 2ª ed. Campinas, SP: Unicamp, 1995. GALLO, Solange Leda. Como o texto se produz: uma perspectiva discursiva. Blumenau: Nova Letra, 2008. MARCUSHI, Luiz Antônio. Da fala para escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Editora Cortez, 2003.

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