O PROBLEMA DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL 81/2014 RESUMO

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Transcrição:

O PROBLEMA DO TRABALHO ESCRAVO NO BRASIL CONTEMPORÂNEO À LUZ DA EMENDA CONSTITUCIONAL 81/2014 Kesia Peres de Carvalho 1 RESUMO Essa pesquisa tem por escopo analisar o problema do trabalho escravo no Brasil, com destaque para o avanço proporcionado pela Emenda Constitucional (EC) 81/2014 que prevê como sanção aos responsáveis pela submissão de indivíduos a condição análoga a de escravo, a expropriação de suas propriedades. Para tanto, é usado o materialismo dialético como corrente metodológica a fim de conhecer o que representa a escravidão para cada sistema de produção vigente em dado momento, e o método dedutivo de conhecimento. Relatórios recentes da OIT estimam que cerca de 12,3 milhões de pessoas são vítimas de trabalho escravo, apesar de sua vedação absoluta no âmbito do direito internacional e dos mecanismos jurídicos existentes para combatê-lo. A partir disso, é possível verificar o avanço que representa a EC 81/2014 na busca de se erradicar o trabalho escravo. Entretanto, o progresso só será possível caso seja afastada qualquer iniciativa de mudança da conceituação de trabalho escravo, dada perfeitamente pela legislação penal. Palavras-chaves: trabalho escravo, dignidade humana, emenda constitucional, expropriação de propriedade. ABSTRACT THE PROBLEM OF THE SLAVE LABOR IN THE CONTEMPORARY BRAZIL IN THE LIGHT OF THE CONSTITUCIONAL AMENDMENT N. 81/2014 This research paper analyzes the issue of slave labor in Brazil and the legal instruments to fight against this practice, highlighting the advances brought by the approval of the Constitutional Amendment that provides, as a sanction, the expropriation of the properties of the people responsible for the submission of individuals to conditions analogous to slavery. For that, dialectical materialism is used as a methodological stream in order to know what slavery represents to each current production system at a given moment, and the deductive method of knowledge. Recent reports from the ILO estimate that about 12.3 million people are victims of slave labor, despite its absolute forbiddance on the scope of International Law and the existing legal mechanisms in each State to fight against it. Thus, it is possible to verify the innovation that the new Constitutional Amendment represents on the attempt to eradicate slave labor. However, progress will only be possible if any attempt to change the definition of slave labor, which is perfectly given by the criminal law, is repelled. Keywords: slave labor, human dignity, constitutional amendment,, expropriation of property. 1 Aluna do 6o. semestre do Curso de Direito do Centro Universitário Salesiano de São Paulo (UNISAL), em 2016, e-mail: kesia_carvalho@yahoo.com.br.

1 INTRODUÇÃO Embora a escravidão no Brasil tenha sido abolida no final do século XIX, muitas relações de trabalho em diversas regiões brasileiras são marcadas por práticas degradantes que denotam a presença do trabalho escravo no Brasil do século XXI. O cenário, observado tanto em propriedades rurais como nos centros urbanos, é reflexo da desigualdade social predominante no país, e atenta contra a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os principais documentos normativos, que vedam expressamente qualquer forma de escravidão. A escravidão moderna fere alguns dos fundamentos sobre os quais está alicerçado o Estado Democrático de Direito, previstos na Constituição da República Federativa do Brasil: a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho (incisos II, III, IV). Apesar disso, inúmeras relações de trabalho ainda são marcadas pelo regime escravocrata, e cerca de duas mil pessoas são resgatadas todos os anos de situações análogas a de escravo no país. Visando coibir a prática, diversos organismos internacionais e órgãos internos tem se engajado na luta contra o trabalho escravo através da implantação de programas sociais voltados para o tema, bem como a aplicação de medidas de caráter repressivo judicial ou extrajudicialmente. A própria legislação brasileira tipifica como crime a conduta de reduzir o individuo a condições análogas a de escravo, sujeitando o infrator a pena de reclusão de dois a oito anos e multa. Na esfera trabalhista, os mesmos responsáveis são condenados a indenizar os trabalhadores por dano moral em valores cada vez mais elevados, pelo desrespeito às normas justrabalhistas. Ainda assim, o trabalho escravo persevera no território nacional, o que demostra a necessidade de um mecanismo jurídico de combate paralelo à sanção penal, que auxiliasse a atuação repressiva do judiciário. Neste contexto, foi apresentado o Projeto de Emenda Constitucional n 438/2001, que prevê a expropriação da propriedade rural e urbana, em que houver a presença de trabalho escravo, as quais serão destinadas, respectivamente, à reforma agrária e a programas de habitação popular, segundo a alteração dada ao artigo 243 da Constituição Federal. Em maio de 2014, a proposta foi aprovada e uma nova possibilidade de condenação foi inserida ao ordenamento jurídico

brasileiro. Todavia, a aplicabilidade da emenda tem enfrentado resistência diante da controvérsia em torno da definição de trabalho escravo. Dada a contribuição possibilitada pela nova emenda constitucional e as controvérsias surgidas, esse artigo enseja uma análise do problema do trabalho escravo contemporâneo no Brasil, passando por um breve histórico da escravidão no país e no mundo, até as causas geradoras do problema, bem como os instrumentos de combate dessa prática, ressaltando a evolução social e jurídica dada pela recente emenda constitucional e as problemáticas que surgiram a partir da sua aprovação, principalmente no que diz respeito à definição da escravidão contemporânea. 2 HISTÓRIA DA ESCRAVIDÃO O instituto da escravidão sempre esteve presente nos diversos períodos históricos, seja como modo de produção vigente, seja como práticas secundárias legais ou ilegais. Embora, atualmente, haja a vedação da escravidão e de qualquer relação de trabalho marcada por condições análogas a de escravo, pelas Constituições modernas e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, no passado, essa instituição foi amplamente aceita por se apresentar vantajosa ante as necessidades econômicas, sociais, políticas e culturais de cada época. Diversos argumentos em diferentes momentos da história foram usados para justificar a escravidão e legitimá-la: Alguns escravagistas a concebiam como um fenômeno natural por estar presente na maioria das sociedades e estar relatada em documentos históricos sagrados, apresentando-a como uma tradição ou um costume. O filósofo grego Aristóteles já defendia a naturalidade da escravidão em seu livro Política (384-322 a.c), afirmando que cada ser tem seu lugar na organização da sociedade definido a partir da tese da inferioridade daqueles tidos como escravos. Assim, perpetuar o sistema escravagista seria uma proteção contra a desgraça e a ruína (PÉTRÉ-GRENOUILLEAU, 2009). Outros estudiosos a viam como um mal necessário diante de inúmeras razões de ordem econômica, social ou política.

Nas sociedades antigas, a escravidão teve distintos significados a depender do sistema de produção vigente à época. Apesar disso, o fenômeno sempre esteve agregado à estrutura socioeconômica de cada modelo de organização social, diante da vantagem econômica da sua manutenção. Apenas com o surgimento do Estado de Direito e com as reivindicações das revoluções burguesas, os ideais de liberdade se consolidam formalmente nas principais Constituições modernas, pelo interesse social e econômico em assegurarlhe. Contudo as primeiras relações de trabalho pós-revolução industrial foram marcadas por práticas desumanas e degradantes que afrontavam a dignidade humana e se assemelhavam as condições de escravos. Dado os abusos e as reivindicações por melhores salários e condições de trabalho, houve a necessidade de intervenção estatal nas relações trabalhistas para assegurar um mínimo de igualdade entre os proprietários dos meios de produção e os empregados.(martins,2014, p. 07). Somente a partir do século XX, consolidam-se nas principais constituições modernas os direitos e garantias do trabalho, decorrente do constitucionalismo social que surge em defesa dos preceitos sociais. Em 1919 é criada a Organização Internacional do trabalho (OIT), cuja incumbência é garantir a proteção das relações de emprego, evitando abusos e a exploração do trabalhador. Após as duas grandes guerras e o anseio da humanidade em preservar a dignidade do homem, é redigida a Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo artigo 4 prevê que Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos. 2 Todavia, os mecanismos internos de cada Estado para que seja efetivamente assegurado este direito se mostram falhos, diante da existência, ainda hoje, de relações de trabalho marcadas pela submissão do homem à condição análoga a de escravo. Relatórios recentes da OIT estimam que, atualmente cerca de 12,3 milhões de pessoas são vitimas de trabalho escravo, cuja incidência maior se dá nos países subdesenvolvidos. 2.1 Breve histórico da escravidão no Brasil 2 Artigo 4 da declaração universal dos direitos humanos.

O trabalho escravo significou no Brasil colonial fonte de lucratividade para a metrópole portuguesa, que inicialmente utilizou-se da mão-de-obra indígena para satisfazer suas necessidades de expansionismo e exploração do território conquistado. Contudo a escravidão indígena mostrou-se dispendiosa e pouco lucrativa frente à possibilidade de vantagens econômica maiores devido ao tráfico negreiro. A combinação desses dois fatores levou ao surgimento do trabalho escravo negro no Brasil. Constata-se, portanto, que a escravidão não significava mais o modo de produção dominante, mas um elemento articulador capitalista que permitia a metrópole obter maior lucro com a exploração da colônia, como o que se deu no Brasil. Entretanto, a atividade que até a segunda metade do século XVIII mostravase extremamente lucrativa, passa a ser um empecilho ao desenvolvimento industrial que se iniciou com a revolução industrial em 1750. A manutenção de pessoas como escravas torna-se desinteressante, pois com a maior demanda do capitalismo industrial houve a exigência de um maior consumo dos produtos produzidos e como os escravos não eram sujeitos de direitos e deveres, não lhes era permitido consumir. Assim, a abolição da escravatura foi uma decisão de cunho econômico que se mostrou extremante viável, principalmente para a Inglaterra que na época era uma potência industrial, cujo lucro seria maior caso os escravos se transformassem em trabalhadores assalariados, e consumissem protudos britânicos. A pressão britânica para combater a escravidão e o tráfico negreiro juntamente com outros fatores internos, tal como a expansão dos movimentos abolicionistas, deram ensejo à criação de inúmeras leis que pouco a pouco combateram a escravidão no Brasil. Somente em maio de 1888 é editada a lei Áurea, proibindo qualquer forma de escravidão no país, a qual a partir de então se torna antijurídica. Analisando a lei, constata-se ter sido esta uma estratégia puramente econômica, porquanto não houve qualquer preocupação em garantir um mínimo necessário à subsistência dos ex-escravos. Muitos, inclusive, voltavam a se submeter ao trabalho escravo em busca da sua sobrevivência. Assim, pode-se afirmar que a extinção da escravidão só se deu no plano jurídico-formal.

3 O TRABALHO ESCRAVO E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 significou um marco histórico na busca incansável do homem em assegurar direitos e garantias mínimas que preservassem sua natureza como ser humano. Embora não tenha sido o primeiro documento a estatuir direitos considerados essenciais, precedido por inúmeras outras declarações e cartas, foi, nas palavras de José Gregori (1998, p. 37), o primeiro documento que estabeleceu um ideal comum a ser atingido por todos os povos e nações. Apesar de inúmeros autores defenderam que não há um único fundamento absoluto, sobre o qual se baseia os direitos humanos, é possível a afirmação de que esses são decorrentes da dignidade da pessoa humana, porquanto asseguram o individuo contra todo ato desumano e degradante, garantindo-lhe condições existenciais mínimas. Em dado momento histórico, devido às modificações dos anseios da humanidade, foi considerado determinado rol especifico de direitos como essenciais, catalogando-os em gerações, cuja evolução jamais representa a superação e o esquecimento dos direitos já conquistados, uma vez que todas as dimensões estão voltadas ao mesmo objetivo comum, qual seja o de possibilitar o alcance e a proteção da dignidade da pessoa humana. Assim os direitos de cada dimensão não são antagônicos entre si, mas uma unidade indivisível, em que cada geração reafirma os direitos daquela antecedente, tornando-os harmônicos entre si (PIOVESAN, 1998). Nessa perspectiva e visando garantir a dignidade da pessoa humana, é vedada expressamente nos principais documentos sobre direitos humanos qualquer forma de trabalho escravo, proibição que representa regra cogente no âmbito internacional, inserindo-se no núcleo do jus cogens cláusula pétrea do direito internacional cuja violação não comporta qualquer exceção, nem mesmo em caso de guerra ou outra circunstancia de caráter emergencial. Isso demonstra que o direito a não ser submetido a praticas marcadas pela escravidão é absoluto e inflexível pela valoração dada a liberdade e o repúdio social das condições que caracterizam o trabalho forçado.

4 CARACTERÍSTICAS DO TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO Embora haja sua vedação expressa, absoluta e inderrogável pelos sistemas jurídicos contemporâneos, inúmeras relações de trabalho ainda são marcadas por práticas que caracterizam o trabalho escravo da contemporaneidade, em suas diversas modalidades. O problema é verificado principalmente nos países subdesenvolvidos onde a desigualdade social predominante e a carência de políticas públicas, que garantam uma estrutura socioeconômica mínima, corroboram para que haja o aliciamento de indivíduos em situações de extrema miséria. Concomitantemente a esse cenário, o trabalho escravo contemporâneo se mostra economicamente vantajoso e altamente lucrativo para grandes proprietários de terra e empresários, o que permite afirmar ser a escravidão contemporânea um elemento articulador do meio de produção capitalista. Acerca dessa representatividade do trabalho escravo para o sistema capitalista, esclarece Valena Jacob Chaves: [...] o fenômeno da escravidão moderna surge no seio do sistema capitalista de produção em que predomina a racionalidade econômica do cálculo que visa à otimização e a maximização dos seus lucros. Ou seja, os trabalhadores, que vivem no limite do assalariamento normal, trabalham em atividades inseridas, ainda que, marginalmente em setores e processos da economia capitalista, [...] porque a dinâmica na prática do trabalho escravo acompanha a dinâmica econômica da reprodução de capital. (2011, p. 115-119). Ao se comparar a representatividade lucrativa do trabalho escravo atual com aquele visto em outros períodos históricos percebe-se que apesar de se afirmar ser o escravo fonte de lucratividade em todas as épocas, inclusive atualmente, a vantagem econômica se dá por motivos distintos no passado e na contemporaneidade. A escravidão antiga significava para a classe dominante de cada época fonte de lucratividade por estar o escravo situado na base da estrutura de sustentação da economia. Já o trabalho escravo da atualidade não gera qualquer lucro ou riqueza de forma direta para os seus interessados, os quais insistem em preservar essa prática somente por esta significar a redução de seus custos com mão-de-obra, sendo, assim indireta a vantagem econômica obtida. E uma vez que o escravo atual não possui valor agregado à produção, ou seja, não exerce influência para a sustentação econômica da estrutura social, ele se torna descartável e

substituível diante da massa de indivíduos nas mesmas situações de vulnerabilidade (VIEIRA, 2003). O fator propulsor da escravidão contemporânea, diferentemente daquela praticada no passado, tem origem eminentemente econômica. Isto quer dizer que o aliciamento de indivíduos para trabalharem como escravo não é motivado por questões étnicas, físicas ou culturais baseado na teoria da inferioridade 3 mas pela maximização de lucros proporcionada pela redução de custos com mão-deobra e contratos formais. Daí ser a escravidão contemporânea reflexo da desigualdade social. 4.1 Trabalho escravo contemporâneo no Brasil A assinatura da lei Áurea tornou a escravidão antijurídica, vedando o direito de propriedade de uma pessoa sobre a outra. Entretanto, o caráter formalista da nova lei e a concentração de terras produtivas nas mãos de grandes latifundiários 4 levaram à perpetuação da escravidão no país, principalmente nas primeiras décadas após a entrada em vigor da nova lei. Apesar de sua preservação, a mão-de-obra escrava passa por sensíveis transformações, e por ser o trabalho escravo uma prática condenada pelo ordenamento jurídico nacional, a escravidão adquire novas características, sendo praticada, de forma mais sutil e dissimulada, sobretudo a partir da tipificação penal do trabalho escravo pelo Código Penal de 1940. Atualmente, o trabalho escravo ainda persiste no país e, embora o Brasil esteja adiantado na luta para sua erradicação e seja mundialmente reconhecido pelos seus esforços, todos os anos cerca de duas mil pessoas são libertadas em condições análogas a de escravo. 3 Teoria usada para legitimar escravidão nos séculos passados. 4 Em 1850, a Coroa Brasileira estabeleceu uma lei restringindo o acesso à propriedade de terra somente aos detentores de capital, proibindo que escravos, brasileiros pobres, posseiros e imigrantes pudessem se tornar proprietários de terras, estratégia com a qual foi garantida a mão-de-obra necessária, mesmo após a abolição da escravatura, já que para essa parcela da população submeter-se a salários baixíssimos nos grandes latifundiários era a única forma de sobrevivência. Para compreender a chamada lei de terras de 1850, pode ser lido A questão da terra e o trabalho escravo no Brasil: violação do princípio da dignidade da pessoa humana, de Everaldo Tadeu Quillici Gonzalez, disponível em <https://www.metodista.br/revistas/revistasunimep/index.php/direito/article/view/636/193>. Acesso em 14/09/2016.

Elaine Pedroso explica sobre os diversos fatores sociais, individuais e regionais que corroboram para que haja a perpetuação do trabalho escravo no país: [...] A perpetuação do escravismo por meio de características dissimuladas e em sinal de real evolução do sistema servil persiste. [...] Os colaboradores do sistema são claramente identificados: a má distribuição da renda, a educação precária (quando existente) oferecida às classes impossibilitadas de usufruir da rede privada de ensino e a concentração agrária em parcela ínfima da população. (2011, p. 55-57). Assim, é a condição de marginalidade em que se encontram milhares de indivíduos, que proporciona o surgimento de relações de trabalho marcadas pela escravidão. O preço do trabalhador escravo é muito baixo, principalmente se comparado à redução de custos que tem o escravizador ao utilizar essa mão-de-obra, que se torna facilmente substituível frente à massa de indivíduos nas mesmas condições de marginalidade. Daí poder se afirmar ser a escravidão contemporânea mais vantajosa do que o antigo regime escravista negro, época em que o custo de um escravo era muito elevado, devido às dificuldades para adquiri-lo (SAKAMOTO, 2006). Os responsáveis pela perpetuação desse fenômeno não são os que estão diretamente relacionados ao processo de aliciamento de trabalhadores. É, na verdade, toda a estrutura estatal a responsável por esse problema em dois sentidos: ao negligenciar direitos individuais e sociais mínimos, e ao ser ineficaz no combate ao trabalho escravo por meio de punições pouco severas e da aplicabilidade falha dos instrumentos jurídicos de repressão. Criticando não apenas o descuido do Estado brasileiro, mas também a falta de colaboração da sociedade para erradicação da escravidão contemporânea, Lelio Bentes Corrêia argumenta: O fenômeno do trabalho escravo resiste ao tempo, alimentado por uma singular combinação de elementos, dentre os quais se destacam de um lado a passividade da sociedade diante de uma relação de produção tão arcaica quanto desumana e, de outro, a ineficiência da atuação repressiva do Estado, conduzindo a um inevitável clima de impunidade adequada à perpetuação desse fenômeno de parasitismo social de nocividade extrema. (1999, p. 78-79). 5 TRATAMENTO JURÍDICO-PENAL CONFERIDO AO TRABALHO ESCRAVO O Código Penal, em seu artigo 149, prevê como crime submeter alguém ao trabalho escravo. Inserido na parte especial do código, na parte que trata sobre os

crimes contra a liberdade pessoal, o dispositivo sofreu algumas alterações no ano de 2003, sendo apresentado de forma mais analítica com o propósito de viabilizar um melhor entendimento das situações que caracterizariam o trabalho escravo. Tipifica o artigo: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitandoo a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. 1o Nas mesmas penas incorre quem: I cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I contra criança ou adolescente; II por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. 5 As alterações feitas pela Lei 10.803/2003, visando proporcionar maior segurança jurídica vez que ensejava controvérsias acerca de quais circunstâncias se encaixavam no tipo penal transformaram um crime que anteriormente era de forma livre em crime especial, isto é, crime de forma vinculada, cujas formas de execução se restringem aquelas objetivamente tipificadas. Assim, para se configurar o crime é indispensável que haja um vínculo empregatício entre sujeito ativo e passivo, e seja executado com os meios e conforme as formas previstas no caput e no 1. Essa mudança ampliou o rol dos bens jurídicos tutelados e esclareceu seu foco principal de proteção (2013, p. 68-69). Observa-se, no entanto, que a mudança, apesar de esclarecer as situações que reduz alguém à condição de escravo, restringiu o tipo penal, não abrangendo relações que se amoldava ao tipo penal aberto anterior. Assim, o crime que antes podia lesar qualquer pessoa, limita-se a uma relação de prestação de serviço entre sujeito ativo e passivo. Embora o trabalho escravo esteja tipificado, difícil são os casos em que haja uma condenação efetiva dos responsáveis pelo fenômeno, devido à dificuldade em se enquadrar determinada situação no dispositivo e principalmente ao conflito de 5 BRASIL, DECRETO-LEI N 2848/1940. Código Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm>. Acesso em: 30/06/2015.

qual justiça é competente para julgar o crime. Ademais, a pena aplicada na maioria dos casos concretos não coaduna com extensão do dano social e individual causado. Uma vez que o crime é um atentado contra o atributo mais intrínseco do ser humano, sua dignidade, a conversão da pena privativa de liberdade em pena restritiva de direitos direito público subjetivo do condenado segundo o artigo 44 do CP não exerce de maneira plena o caráter repressivo da própria sistemática penal, principalmente diante do poder socioeconômico e politico dos infratores (SAKAMOTO, 2006). 6 COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO Tanto a sociedade internacional quanto o Estado brasileiro tem feitos grandes avanços no que diz respeito ao combate do trabalho escravo e de qualquer forma de servidão, figurando o Brasil como pioneiro nessa empreitada pelas políticas públicas de enfrentamento do problema. No âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho, desde a sua criação, tem adotado duas convenções relativas ao trabalho forçado, ambas ratificadas pelo Estado brasileiro ao longo do século XX. Mesmo com a força normativa desses documentos no ordenamento jurídico interno, o problema era pouco exposto, e até a década de 1970, quando houve a primeira denúncia e o surgimento de uma entidade dedicada ao tema a CPT muitos casos caracterizados como trabalho escravo ocorreram no território nacional, principalmente nas regiões rurais, fruto da falta de consciência social acerca da prática e da não atuação governamental no sentido de prevenir e reprimir o fomento da celeuma (NOCCHI, VELLOSO, FAVA, 2011). Somente a partir de 1994, ano em que o país é denunciado para a Organização dos Estados Americanos OEA e processado pelo não cumprimento dos tratados e preceitos internacionais aos quais aderiu, há uma efetiva mobilização social e um real engajamento governamental para instituir parcerias entre órgãos públicos e entidades não governamentais com o propósito de erradicar o problema (NOCCHI, VELLOSO, FAVA, 2011). Em 1995, é criado o Grupo Especial Móvel de Fiscalização, sob a coordenação do Ministério do Trabalho e Emprego, responsável pela identificação,

denúncia dos casos de trabalho escravo e reunião de provas para a atuação do Poder Judiciário e do Ministério Público do Trabalho no que diz respeito à sanção aplicável aos escravizadores. A iniciativa obteve sucesso frente às outras tentativas de combate ao trabalho escravo do governo brasileiro, sendo o principal meio pelo qual os trabalhadores são resgatados e encaminhados aos órgão para as devidas providências a serem tomadas segundo a legislação brasileira. Em 20 anos de atuação foram resgatados 49 mil trabalhadores em 1785 operações 6. Uma das punições econômicas que mais coibiram a pratica no setor empresarial foi a criação do Cadastro de Empregadores Infratores, conhecido como Lista Suja, em 2004, que consiste na privação das pessoas físicas e jurídicas que exploraram a mão de obra escrava do acesso a financiamentos, empréstimos ou qualquer outra assistência financeira em bancos públicos. Desde a sua criação, o cadastro tem sido utilizado não apenas por bancos públicos, mas também por bancos privados, empresas nacionais e internacionais, as quais firmaram compromisso com o Pacto Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo criado em 2005 cortando de sua cadeia produtiva produtos e/ou serviços que foram desenvolvidos por trabalhadores em condições de escravo (NOCCHI, VELLOSO, FAVA, 2011). Diante do cenário apresentado, é possível compreender o destaque dado ao esforço brasileiro em erradicar o trabalho escravo do seu território. A articulação e a integração dos órgãos públicos juntamente com o empenho dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário é o principal motivo pelo qual está sendo possível dar máxima efetividade aos planos idealizados, bem como a mobilização social acerca da relevância da persecução do princípio da dignidade da pessoa humana, base principiológica e fundamental na qual está fundado e sustentado o Estado Democrático de Direito. A partir dessa harmonização foram preenchidas as lacunas legais, administrativas e politicas no sentido de prevenir o arcabouço gerador da celeuma. Outra evolução jurídica no combate ao trabalho escravo foi a recente aprovação do projeto de Emenda Constitucional, que prevê a expropriação da propriedade urbana e rural, em que houver a existência comprovada de trabalho 6 Dados disponíveis em <http://portal.mte.gov.br/imprensa/mte-apresenta-balanco-do-trabalhoescravo-nos-20-anos-de-atuacao-do-grupo-movel/palavrachave/traabalho-escrvo-combate.htm >. Acesso em 05/08/2015.

com mão de obra escrava, a qual será destinada para fins de reforma agrária e programas de habitação popular. 7 A EMENDA CONSTITUCIONAL 81/2014 Em 1999, foi apresentado a Proposta de Emenda à Constituição n 438 pelo ex-senador Ademir Andrade (PSDB-PA), propondo a expropriação da propriedade em que for comprovada a existência de relações de trabalho marcadas pela utilização da mão de obra escrava. A PEC que altera a redação do artigo 243 da Constituição Federal tramitou durante dois anos no Senado Federal, sendo aprovada em 2001. Na Câmera dos Deputados a matéria foi aprovada em primeiro turno no ano de 2004, após a qual tramitou pela Casa durante 8 anos até sua aprovação em segundo turno em 2012. A proposta alterada em alguns aspectos pela Câmera dos deputados voltou a tramitar Senado Federal e em 27 de Maio de 2014 foi aprovada por unanimidade nos dois turnos, passando o dispositivo da lei suprema a vigorar com a seguinte redação: As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei. 7 A constitucionalidade da nova emenda constitucional está pautada nos princípios que fundamentam o Estado democrático brasileiro, previstos no artigo primeiro da Constituição, e nos princípios que norteiam toda a ordem econômica, tendo por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social. A República Federativa do Brasil está alicerçada em fundamentos constitucionais positivados no artigo 1 da CF, dentre os quais, o princípio supremo da dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre-iniciativa 7 BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm>. Acesso em 20/08/2015.

(incisos III e IV). Por serem dispositivos constitucionais fundamentais, irradiam seus efeitos em todo o ordenamento jurídico, o qual só recepciona determinada lei caso essa esteja em total conformidade com esses ditames basilares, que são também o norte para a validação de uma norma. Assim, todas as práticas que os ferem, devem ser reprimidas pelo Estado a fim de assegurar-lhe seu próprio fundamento de existência. Ao se pautar nos valores sociais do trabalho, o Estado brasileiro consagra que as relações trabalhistas devem ser norteadas por ditames que valorizem o trabalhador e a sua dignidade, de forma a não coisificá-lo a pretexto da lucratividade capitalista. José Afonso da Silva explica que a Lei Maior, embora institua o modo de produção capitalista baseada na iniciativa privada, dá prioridade aos valores do trabalho humano em detrimento a outros princípios da ordem econômica (2015, p. 802). Isso dá ao Estado o poder de intervir na economia e na propriedade privada caso haja o afrontamento desses valores, podendo, por consequência, prever a desapropriação da propriedade onde houver a utilização da mão de obra escrava. Por sua vez, o direito de propriedade, garantido pelo artigo 5, inciso XXII, da Constituição Federal, é condicionado à sua função social, que é cumprida quando a propriedade rural atende simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos requisitos previstos no artigo 186 da CF, dentre os quais a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, o que não é cumprido quando há a presença de trabalho escravo (REIS; PAIVA, 2014). Já a função social da propriedade urbana é cumprida quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (artigo 182, 2, CF), o qual certamente não estipulará nenhuma meta baseada no desrespeito à dignidade humana, sob pena de ser inconstitucional. Ademais, a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano, é regida por alguns princípios elencados no artigo 170 da CF, dentre os quais se insere o da livre-concorrência (inciso IV), que é ferido dentre outras circunstâncias, quando há o aumento arbitrário dos lucros. (artigo 173, 4 ). É evidente que, os empregadores ao obter maiores lucros baseados na utilização da mão de obra escrava, estão pautados em uma concorrência desleal, vedada constitucionalmente, frente àqueles que respeitam as normas trabalhistas, o que não harmoniza com a ordem econômica e prejudica a própria dinâmica capitalista.

8 A POLÊMICA DO CONCEITO DE TRABALHO ESCRAVO A aplicabilidade da norma constitucional, todavia, tem enfrentado resistências, principalmente por não definir, expressamente, a conceituação da escravidão moderna. Diante disso, foi apresentado o Projeto de Lei n 3842/2012 pela bancada ruralista, propondo a alteração do conceito de trabalho escravo dado pelo Código Penal, que passaria a ser definido como: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, trabalho forçado ou obrigatório, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou obrigatórios mediante ameaça, coação ou violência, quer restringindo a sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador 8. No mesmo sentido, é apesentado o texto que regulamenta a Emenda Constitucional n 81 pela PLS 432/2013, em que há a supressão dos termos jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. Muitos argumentam que o conceito de trabalho escravo não está claro na legislação brasileira atual e que a tipificação penal abrange situações não correlatas a tradicional conceituação de trabalho análogo a de escravo, utilizando expressões que dificultam a objetividade do delito, o que gera insegurança jurídica. Conforme esse novo conceito, não seria caracterizado o trabalho escravo quando houvesse a submissão do trabalhador a jornada exaustiva ou a condições degradantes de trabalho, sendo necessário o uso de violência para a consumação do crime. Segundo os defensores do novo projeto de lei, a supressão dessas elementares traria maior segurança jurídica, porquanto são expressões vagas que mitigam a objetividade necessária para uma persecução criminal eficaz, possibilitando decisões arbitrárias diante da variedade de interpretações jurídicas, o que é incompatível com a sistemática do direito penal. Entretanto os argumentos são falhos. Diante do exposto neste trabalho, evidente é que a escravidão moderna possui novas características que outrora não eram percebidas. Atualmente, o trabalho escravo não suprime apenas o direito de liberdade do trabalhador, mas fere diretamente sua dignidade, o que, na maioria dos 8 BRASIL. Projeto de lei n 3842/2012, disponível em <http://www.camara.gov.br/proposicoesweb/prop_mostrarintegra;jsessionid=2361092890557b1aa84 147FA3161BD42.proposicoesWeb1?codteor=990429&filename=PL+3842/2012>. Acesso em 22/08/2015.

casos, vai além do seu direito de locomoção. Não há grilhões e nem violência física, como ocorria em outras épocas da história. As correntes do escravo contemporâneo são de natureza psicológica, sendo muito comum o desconhecimento de seu estado como escravo e a ilegalidade dessa condição. Neste contexto, inviável é limitar o conceito de acordo com os caracteres da escravidão nos períodos em que a demanda social era outra, o que além de ser um equívoco, não abarca situações em que claramente há a coisificação e a degradação do homem, as quais certamente constituem uma relação de trabalho marcada pela escravidão. Ora, se submeter os trabalhadores a jornadas exaustivas ou a condições degradantes de trabalho não configura o crime de redução à condição análoga a de escravo, nem tão pouco constitui trabalho decente. Assim, suprimir essas condutas do tipo penal seria um retrocesso frente ao bem jurídico violado na escravidão moderna, qual seja a dignidade, já que estaria protegendo apenas a liberdade do trabalhador. Se a polêmica é a objetividade das expressões jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho, a controvérsia estaria superada com a simples explicação objetiva desses termos para os efeitos penais, não sendo necessário retirá-las do tipo penal, que claramente pune situações em que há o desrespeito direto a dignidade do trabalhador violada pelo trabalho escravo da contemporaneidade. Certamente, a retirada das expressões jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho, tal como propõe a regulamentação da emenda e o projeto de lei que altera o tipo penal, significará um retrocesso da proteção conferida aos trabalhadores e uma hipocrisia em relação à emenda constitucional, cuja aplicabilidade ficaria restrita ao plano formal e não abrangeria situações que caracterizam a escravidão dos dias atuais, sendo sua aprovação uma medida eminentemente simbólica de estratégia politica. 9 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo analisou a complexidade do trabalho escravo contemporâneo e constatou que o fenômeno ainda persiste no país, embora de forma mais sutil e dissimulada da época em que não era vedada a propriedade de uma pessoa sobre outra.

Os interesses das classes sociais dominantes aliado às condições de vulnerabilidade que levam o trabalhador a se submeter a certas situações são determinantes para que haja a perpetuação do trabalho escravo no Brasil, que representa na atualidade fonte de lucratividade, porquanto a utilização da mão de obra escrava proporciona a redução de custos da cadeia produtiva. Dado ser o fenômeno vantajoso economicamente, os grandes proprietários insistem em manter os trabalhadores em condições análogas a de escravo, as quais não se caracterizam pelos mesmos elementos da escravidão antiga, mas por práticas adaptadas que dissimulam a sujeição desses indivíduos a uma situação desumana. Dessa forma, a violação que a escravidão da contemporaneidade enseja vai além da liberdade, ferindo a dignidade do trabalhador. Diante da perpetuação do instituto, e a pouca eficácia dos meios jurídicos penais e trabalhistas de repressão, nota-se a importância da inserção da nova emenda constitucional no ordenamento jurídico brasileiro. Prever a expropriação como sanção ao empregador que utiliza a mão de obra escrava, sem se atentar a dignidade do trabalhador é atingir seu bem mais fundamental: sua propriedade, sua fonte de lucratividade. Considerando que a sua função social da propriedade não é cumprida com a manutenção do trabalho escravo por esse atentar contra os direitos humanos, o confisco da propriedade é uma pena totalmente proporcional à gravidade dessa prática, já que aquilo que é mais intrínseco ao ser humano é atingido em nome do aumento de lucros do empregador. Assim, é justificado restringir o direito de propriedade do empregador. Porém, sua aplicabilidade tem enfrentado resistência. A maior problemática em torno da nova emenda diz respeito à definição de trabalho escravo, que segundo alguns não é suficientemente clara e objetiva na legislação penal. Entretanto, a conceituação trazida pelo tipo penal coaduna com a violação ao bem jurídico mais fundamental do homem e com a realidade brasileira, já que em seu bojo o crime procura ir além da proteção da liberdade do trabalhador. Neste sentido, a regulamentação da norma constitucional deve se ater ao processo de expropriação da propriedade, garantido todos os direitos constitucionais e processuais de defesa conforme o Estado Democrático de Direito assegura, e se basear na delimitação conceitual dada pelo artigo 149 do Código Penal. Caso contrário, a emenda terá um valor apenas simbólico e não representará uma evolução na luta pela erradicação do trabalho escravo. Deve,

portanto, ser afastado qualquer iniciativa de modificação do conceito de trabalho escravo sob pena de se haver um retrocesso jurídico e social. REFERÊNCIAS ABREU, Débora Rocha. Trabalho escravo contemporâneo. Disponível em: <http://siaibib01.univali.br/pdf/debora%20rocha%20de%20abreu.pdf>, acesso em 30/09/2014. BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal 2- parte especial: dos crimes contra a pessoa. 12 Ed. São Paulo: Saraiva 2012. BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Trabalho decente. 3 Ed. São Paulo: LTr, 2013. COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Trabalho escravo no Brasil contemporâneo. São Paulo, CPT, 1999. FIGUEIRA, Ricardo Resende et al.(org.). Trabalho escravo contemporâneo no brasil: contribuições críticas para sua análise e denúncia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2008. GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quillici. A formação histórica dos direitos humanos. Rio Claro: Biblioética Editora, 2014. GONZALEZ, Everaldo Tadeu Quillici. A questão da terra e o trabalho escravo no Brasil: violação do princípio da dignidade da pessoa humana. Disponível em <https://www.metodista.br/revistas/revistasunimep/index.php/direito/article/view/636/193>, acesso em 15/06/2015. GREGORI, José. A declaração universal e a cultura dos direitos humanos. In: MARCÍLIO, Maria Luiza; PUSSOLI, Lafaiete (Coords.). Cultura dos direitos humanos. São Paulo, LTr, 1998. LICKS, Terezinha Matilde. Combate ao trabalho escravo - a atuação do ministério público do trabalho. Disponível em: http://www.oit.org.br/sites/all/forced_labour/brasil/documentos/trabalho_escravo_red uzido.pdf, acesso em 01/07/2015. MARTINS, Sergio Pinto. Direito do trabalho. São Paulo. Editora Atlas, 30 edição, 2014. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 6 Ed. São Paulo: Atlas, 1999. NOCCHI, Andrea Saint Pastous; VELLOSO, Gabriel Napoleão; FAVA, Marcos Neves. (Org.) Trabalho escravo contemporâneo: o desafio de superar a negação. São Paulo. LTr, 2011

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