ACADEMIA NACIONAL E IMPERIAL DOS GUARDAS-MARINHA:

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Transcrição:

ACADEMIA NACIONAL E IMPERIAL DOS GUARDAS-MARINHA: normatização da formação militar naval no período de construção do Estado Imperial brasileiro (1831-1858). LUANA DE AMORIM DONIN* O Brasil oitocentista sempre foi um marco histórico muito visitado pelos pesquisadores, e os cenários político, econômico e cultural do tempo imperial se apresentam nos mais diversos estudos que recheiam o mundo acadêmico. Dentro deste rol de conhecimentos, esse estudo visa contribuir com os debates históricos acerca do século XIX brasileiro a partir da análise de uma instituição militar naval voltada para a educação dos oficiais de Marinha a Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha. A Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha foi uma instituição de ensino militar, que durante os anos do Império do Brasil ficou encarregada da formação do oficialato da Armada Imperial. Contudo, apesar de ser nomeada assim no contexto da Independência do Brasil, esta instituição militar, na verdade, derivou da instituição de ensino militar transferida de Portugal para o Brasil junto com a Corte joanina, que era denominada Real Companhia e Academia dos Guardas-Marinha. Instalada no Rio de Janeiro, no Mosteiro de São Bento, a Academia transladou para o Brasil uma cultura militar portuguesa formada num amplo processo de organização do aparato militar, que se inicia no Reinado de D. José I (1750-1777). (SILVA, 2011, p. 1). A criação desta escola naval em Portugal esteve associada a dois movimentos importantes do governo português em um período de transformação do aparato imperial, um movimento que envolvia mudanças na organização militar e o outro ligado a própria constituição de um novo modelo educacional (SILVA, 2012, p.29). Ambos voltados pela busca de introdução dos novos conhecimentos trazidos pela ilustração. Entretanto, as tentativas de modernização da carreira militar em fins do século XVIII, iniciadas em Pombal, tiveram pouco impacto sobre a estrutura da Marinha, o que acabou tornando possível a transferência da Real Companhia dos Guardas-Marinha para o Brasil ainda com traços de uma noção militarizada aristocrática, herdada do antigo regime (SILVA, 2012, p.4). * Universidade Federal Fluminense. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História. Capes.

2 Sabe-se que o período setecentista foi permeado por uma prática militar associada ao amadorismo aristocrático, onde a entrada ao oficialato e ao serviço militar era balizada pelo status social e os bens dos indivíduos. A expansão de poder das monarquias nacionais nesse período possibilitou a formação de instituições militares mais consolidadas, entretanto ligadas as buscas por poder e privilégios empreendidos pela nobreza que cercava o rei (HUNTINGTON, 1996). Em Portugal esta noção aristocrática tinha uma pulsação mais forte devido a certas características particulares que associaram com mais força a nobreza e o oficialato militar. Características essas fundadas ainda nas Guerras de Restauração, que possibilitaram uma identificação da carreira militar como espaço que traduzia muito mais a sua posição no corpo social do reino do que as suas incertas habilitações bélicas (LOPES, 2012, p. 42). Essa estrutura militar da lógica de Antigo Regime, onde a carreira militar estava associada aos laços de nobreza, status social e redes de sociabilidade foi uma herança do império português, potencializada pela presença da Corte Joanina no Rio de Janeiro, e que permaneceu fator preponderante no Brasil até meados de Século XIX (SOUZA, 2008). Ao se tornar luso-brasileira, vinda com a Corte Joanina, a Academia dos Guardas- Marinha continuou aqui a exercer sua função de ensino superior voltado à formação dos oficiais militares que ocupariam os navios de guerra da Marinha. Entretanto, a entrada na escola não significava que os indivíduos seriam promovidos a Guarda-Marinha, primeiro posto da hierarquia militar-naval (BOITEUX, 1940). A trajetória dos alunos dentro da Academia não dependia apenas da aprovação nas matérias, mas de inúmeros outros fatores como disponibilidade de vagas nos anos letivos, cartas de aprovações dadas pelos Lentes e Comandantes que acompanharam o ensino, e que permitiriam o assentamento no posto de aspirante a Guarda-Marinha, e para promoção também passavam pelo Conselho do Almirantado e referendo do Monarca (SILVA, 2012, p. 130). Esse aparato ficou intacto no período joanino, demonstrando ainda existir traços de uma cultura militar baseada na conquista de privilégios e mercês, e menos de uma noção meritória. Após a Revolução do Porto em Portugal, temos um novo contexto histórico conturbado que levou ao rompimento do Brasil com o Império português, e em meio aos episódios, a Academia dos Guardas- Marinhas recebeu ordens de retorno a Portugal juntamente com seu cartório e Biblioteca.

3 (ALBUQUERQUE, 1979, p. 208). Ordens que não foram cumpridas pelo então Príncipe D. Pedro, e a maioria dos Lentes e alunos aderiram a causa brasileira ficando no Brasil (BOITEUX, 1940, p. 95).Tornava-se assim parte de um novo país que no período tentavam lidar com as heranças e inovações para formação de um Império brasileiro. Esta breve apresentação da Academia dos Guardas-Marinhas ajuda a estabelecer um quadro da instituição que passou por modificações em sua estrutura organizacional e conceitual a partir de 1831 e que de certa forma se encerraram em 1858. É dentro deste amplo recorte cronológico que encontraremos mudanças de formas e impactos variados que permitiram uma evolução da Academia, de seu ensino e de seu papel diante do Estado que se montava. Foi no período do pós-independência que a Academia foi renomeada no sentido de garantir a incorporação da instituição aos sentimentos brasileiros: passou a se chamar Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha, nome esse que representava o espírito de afirmação de filiação a causa do Brasil (BOITEUX, 1940, p.101). Entretanto, o período do Primeiro Reinado não representou um tempo de muitas modificações, estas começaram a acontecer mesmo no período regencial e se estenderam até os tempos da Conciliação. A partir de 1831 com a abdicação de D. Pedro I temos uma nova virada no contexto histórico político do Império do Brasil, uma nova onda de transformações que se assemelhavam muito aos debates que circulavam no início da década de 1820 (MATTOS, 2009). Todavia, os movimentos de 1831 e dos anos que se seguiram à consolidação do Estado Imperial atingiram a Academia dos Guardas-Marinhas, que passou a também ser alvo de preocupação dos projetos políticos em disputa. A preocupação central deste estudo se concentra em três fatos ocorridos na Academia em períodos distintos, mas que foram reflexos de dois grandes movimentos históricos: um interno, voltado à formação do Estado Imperial brasileiro e seu projeto político que acabaram por formular um projeto militar naval; e outro externo, ligado à própria transformação da concepção militar ocidental ligada às noções mais profissionais da carreira. São esses dois pontos centrais, que se relacionam e se completam,

4 que expressam a complexidade do processo histórico sofrido pela Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha. Os três fatos aqui escolhidos como representantes de mudanças significativas na Academia dos Guardas-Marinhas que se relacionam tanto com os projetos políticos do Estado Imperial quanto com um novo paradigma militar ocidental se restringem a mudanças de cultura organizacional da Academia em 1832, 1839 e 1858. A primeira modificação ocorrida em 1832 pelo decreto de 09 de Março, assinado pela Regência Trina, visava fundir a Academia dos Guardas-Marinha e a Academia Militar em um mesmo lugar, colocando sobre o mesmo Estatuto e currículo seus alunos (ALBUQUERQUE, 1979, p. 235), ato este revertido um ano depois. Diferente das outras duas mudanças que ocorreram, pelo Decreto de 31 de Janeiro de 1839 e 1 de Maio de 1858, que representaram transformações mais profundas da organização militar naval de ensino, e de certa forma condensaram um programa militar naval criado pelo Império do Brasil. Programa esse que estava intimamente ligada com as problemáticas e disputadas ocorridas ao longo dos anos e que ajudaram na elaboração de um contexto específico brasileiro. O olhar sobre os fatos que levaram as modificações dos estatutos em 1832, 1839 e 1858 revelam ser parte de um processo único e longo de constituição do aparato naval militar imperial. Ao esmiuçar, principalmente, os Relatórios dos Ministros da Marinha apresentados à Assembleia Nacional durante este longo período, encontra-se um mesmo grupo de problemáticas e questões que se inserem neste amplo contexto interno e externo já apresentado, e que sustentam a própria evolução da Academia dos Guardas-Marinha em paralelo à formação do Estado Imperial. No tocante ao contexto internacional de modificação da mentalidade e estrutura militar tem-se, como aponta Huntigton, no Século XIX o início de uma mudança da corporação militar ocidental. Deixa-se uma visão aristocrática do serviço militar associado ao status social e passa-se lentamente a se criar uma concepção profissional da carreira. O longo processo de modificação do caráter militar ocidental esteve ligado à crescente formação do Estado-Nação, dos desenvolvimentos da tecnologia e da industrialização, fatores que

5 colaboraram para a concepção de um novo paradigma mundial. A criação de academias militares direcionadas à educação de um oficialato foi um dos requisitos básicos para abertura de um caminho do profissional militar que se associaria aos novos modelos de política, economia e sociedade (HUNTIGTON, 1996). A Prússia inaugurou uma nova mentalidade militar que acabou por transformar a função militar que estaria cada vez mais ligada ao desempenho técnico de profissão pública burocratizada, especialista na administração da violência e responsável pela segurança militar do Estado (HUNTINGTON, 1996, p.79). Tal conjuntura foi sentida e vivenciada de diversas formas de acordo com as peculiaridades de cada Estado- Nação que se consolidava. Aqui, entre os ministros da Marinha, também se encontra uma preocupação em entender o tipo de formação educacional que se daria a estes indivíduos que escolheram a profissão naval. A escolha correta de um programa militar se relaciona diretamente com essas transformações na mentalidade militar iniciadas no âmbito europeu e semeadas na cultura ocidental. A França e a Inglaterra surgiram neste contexto como representantes de modelos militares a serem seguidos. Nesse sentido, a Inglaterra desponta nos discursos sobre a formação do caráter do oficial naval como exemplo de aprendizado através da experiência nos navios, e a França desponta como um exemplo de formação de índole mais científica acadêmica, como aponta o Ministro José Maria da Silva Paranhos em Relatório apresentado a Assembleia Geral Legislativa em maio de 1854, A Inglaterra diz aos seos homens do mar: - sereis homens do mar antes de tudo, sábios se o quizerdes, ou se o puderdes. A França diz aos seos: -sereis homens do mar se puderdes, mas antes de tudo seres sábios (PARANHOS, 1854, p. 19). A maioria dos relatórios do Ministro da Marinha apresentados a cada ano a Assembleia Geral Legislativa trazia em seu cerne questões referentes ao ensino teórico e prático, e para qual lado o ensino naval brasileiro deveria pender. Como aponta o Ministro Jacinto Roque de Sena Pereira em relatório apresentado no ano de 1840, as questões sobre o ensino militar em meados dos Oitocentos estavam em plena disputa,

6 O homem do mar, diz um Author celebre, deve ser de uma natureza privilegiada e forte, a sciencia profunda não lhe é absolutamente precisa, bastão-lhe as theorias indispensáveis para o perfeito conhecimento da navegação, da architectura naval, artilharia, e cálculos astronômicos; ter conhecimento das machinas e manobras do uso de bordo e tactica naval; outro author porem de não menor cunho, [...] diz, que sem vastas instrucção, o verdadeiro Official de Marinha terá de tornar-se um ente nullo; está, diz elle, iniciada uma revolução nos conhecimentos marítimos, tanto theoricos como practicos, [...], o verdadeiro Official de Marinha de Guerra não tem só por um objecto a direção [...] dos vasos de guerra, seu destino he amplo mais amplo e elevado, abrange muitas vezes as variadas questões políticas, e quase sempre envolvida com Direito das Gentes e marítimo (PEREIRA, 1840, p. 16). Logo após citar estes autores, sem mencionar o nome deles, se posiciona na questão revelando ser mais adepto da vertente de ensino mais prática, cotidianamente aplicada na Marinha inglesa. Outros ministros neste período também expressaram a preferência pelo exemplo inglês como o Ministro Antonio Francisco de Paula e Hollanda Cavalcanti D Albuquerque em relatório apresentado em 1846, A Respeito da Academia de Marinha, as minhas ideias são as mesmas que expuz no passado Relatório: estou ainda persuadido de que com quanto possa ser extensa a educação scientifica que ali se dá aos que se dedicão à vida do mar, não he ella a mais apropriada para formar verdadeiros Officiaes do Mar; He convicção minha, que melhor resultado tirariamos de conservar algumas Fragatas em constante armamento, e sobre a vela, e admitir n ellas Candidatos (ALBUQUERQUE, 1846, p.12). Entretanto havia também partidários de uma educação cientifica ligada a Escola Naval francesa, como o Ministro José Maria da Silva Paranhos que aponta em 1854 a necessidade de reformas na Academia dos Guardas-Marinha, com o intuito de aproximar tal instituição ao sistema francês, já que existia na própria Academia um ensino já formulado ligado à cientificidade e a teoria. Para ele o Brasil estava longe de adquirir meios materiais para um ensino prático como exigia o sistema naval inglês. Havia um reconhecimento geral da precariedade do ensino prático na Academia dos Guardas-Marinha, devido, principalmente, à falta de materiais e navios disponíveis ao exercício dos aspirantes, como eram chamados os alunos que frequentavam a Academia. Ao enfatizar a trajetória da instituição em comunhão com os movimentos de transformações do profissionalismo militar e as noções deste movimento no seio da classe

7 detentora de poder do Império acaba-se por demonstrar que tal escola não se identificava apenas com o caráter aristocrático do seu oficialato, não se transformou apenas em uma escola da aristocracia, e estava dentro de uma dinâmica de transformação do aparato do ensino militar, sentido em todo o mundo ocidental (SILVA, 2012). A busca por exemplos para implementação de uma direção educacional militar aponta para o fato de existir posições políticas que se asseguravam na nova mentalidade militar, e que forma esta mentalidade se ligaria a composição política e social imperial. O ensino militar ser prático ou teórico ajuda a delinear a formação desses indivíduos e a posição que estes tomaram dentro da dinâmica política do Estado. Pois, como aponta Hungtington, a justificativa para manutenção e emprego de força militar está nos fins políticos do Estado (HUNTINGTON, 1996). Esse processo de profissionalização dos quadros do oficialato, entretanto, não pode ser descolado do próprio projeto político conservador do Estado imperial que tem no seu modelo a busca de novas práticas políticas, econômicas e sociais ligadas ao Liberalismo com a manutenção de tradição e poder herdados por certos grupos desde o período colonial. As organizações militares que tinham como finalidade esse sentido se iniciaram em paralelo à própria constituição do Estado Imperial, apesar de ainda conter certos aspectos de uma noção de antigo regime nos corpos militares. Adriana Barreto define, ao tratar das reformas do Exército e sua relação com o poder civil imperial, que o Exército foi uma corporação incorporada à política conservadora e transformada em braço armado do regime (SOUZA, 2005. p. 55). Relata a proximidade das forças centralizadoras regressistas e os corpos militares, instalando assim reformas centrais para reorganização cada vez mais profissional e militar. Essa transformação do Exército em uma instituição em que a ordem e a disciplina estivessem na base da configuração militar foi incorporada pelos conservadores a partir das experiências de rebeliões sofridas na Regência, causadas pelas mudanças implantadas no Brasil pelas lideranças dos grupos que partilhavam de propostas mais liberais (SOUZA, 2005. p. 80). Como aponta a autora, o projeto político conservador consistiu em uma reunião de críticas surgidas em meio à crise do período regencial. O grupo conservador agregou em torno de um discurso sobre autoridade e ordem um grande número de frações de

8 poder, o que lhes permitiu formular projetos políticos que davam tom de coesão ao partido e força política a um determinado grupo da classe senhorial. O Exército, então, foi resgatado como parte importante do braço da administração central. Apesar de haver poucos estudos historiográficos recentes 1 com a temática de reformas na Marinha Imperial, principalmente nesse momento de construção do Estado Imperial, pode-se mapear também um movimento parecido com esse do Exército nas organizações militares componentes do organograma naval brasileiro. Herick Caminha ao esboçar a trajetória da organização e administração do Ministério da Marinha no Império, demonstra que o Império do Brasil foi um contexto de evolução e expansão do quadro marítimo militar (CAMINHA, 1986). Existiu um salto quantitativo de órgãos subordinados ao poder ministerial, e que em sua maioria eram voltados para o andamento administrativo de uma Marinha subordinada a um Estado-Nação consolidado. Além de novos organismos que compunham a rede disciplinar e hierárquica da Marinha, outros estabelecimentos provindos do período joanino ganharam novos contornos de acordo com o contexto político. O entendimento desta formação política e social imperial advinda de um processo híbrido de coexistência de um novo projeto de Estado amparado pela noção liberal e dos velhos projetos políticos e sociais herdados do Antigo Regime, permitem entender que o Oitocentos foi um espaço temporal de disputas. A formação do Estado Imperial e seu aparato apoiador burocrático estavam rodeados de possíveis projetos formulados por diferentes grupos de poder. Os anos que se iniciam em 1831 e se estendem até a década de 50, são considerados neste trabalho, tempo histórico de disputa e escolha de um projeto vencedor de configuração do Estado Imperial brasileiro, e consequentemente do aparato militar incorporado pelos anseios modernos. Esta conjuntura histórica apresentada nos mostra o 1 Sobre a Marinha Imperial ver: Revista Navigator: subsídios para a História Marítima Brasileira. Rio de Janeiro: Diretoria do Patrimônio e Documentação da Marinha. Anual. ISSN 01001248. ; NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A ressaca da marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001; PAULA, Eurípedes Simões de. A Marinha de Guerra. In: HOLANDA, Sérgio Buarque (Dir.). História geral da civilização brasileira. São Paulo: Difel, 1974, Tomo II, Vol. 4; CARVALHO, José Murilo de. As Forças Armadas na Primeira República: O Poder desestabilizador. In: Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

9 caminho para uma gama de questões envolvendo o Estado e configuração das diversas instituições trazidas em seu bojo. A montagem do aparato de governo e da administração imperial podem ser caminhos reveladores de uma disputa de projetos estatais levantadas por diversos grupos de poder. A Academia Nacional e Imperial dos Guardas-Marinha compunha o aparato militar do Estado Imperial que se consolidava, e não pode ser encarada como um espaço neutro: a decisão de reformas e o lugar de ocupação dentro de uma hierarquia administrativa governamental estiveram ligados ao próprio jogo de poder e de projetos políticos que circulavam entre os diversos grupos da elite política. A constituição de um projeto de oficial naval estava inserida nos diversos entendimentos sobre as Forças Armadas que circulavam pelo mundo ocidental. Entendendo a relação entre pensamento e ação política, pode-se enxergar como as decisões e pensamentos referentes ao aparato das Forças Armadas, que abarcam imposto, recrutamento, recurso, tecnologia e ensino militar, ligavam-se à política do Estado. O entendimento da formação do Estado Imperial brasileiro se baliza na noção de que herança e construção foram espaços delimitadores das possibilidades desse Estado Imperial que procurou a manutenção de uma lógica social advinda do período colonial, determinando um projeto político assegurador da propriedade como fonte delimitadora da liberdade e da cidadania, da escravidão, da distinção hierárquica dos componentes da sociedade imperial e de uma economia baseada na agricultura monocultora voltada à exportação (MATTOS, 2011). Todavia, a busca por esse projeto político não foi algo consensual e muito longe ocorreu apenas nas camadas mais abastadas da sociedade. Como já vinha sendo consolidado, as correntes políticas imperiais estabeleceram posições e ações diferenciadas ao longo desse processo histórico. Os anos iniciais da Regência e a promulgação do Ato Adicional em 1834 podem ser encarados como uma tentativa política desses homens políticos de estabelecerem um arcabouço capaz de manter privilégios, a unidade territorial e neutralizar o ambiente revolucionário que incendiou várias camadas sociais. Para Ilmar de Mattos, o período regencial deve ser encarado como momento onde o governo da casa se torna configuração do

10 Império, onde a localidade e esfera provincial ganharia um lócus de importância maior em um projeto político visador da manutenção de um Império e de um território (MATTOS, 2009). Este projeto político mais liberal, encarado por muitos como lugar de caráter mais democrático, esteve sempre longe de ser um elemento a parte de uma constituição de Estado imperial ligado a continuidade de uma sociedade hierárquica associada à propriedade e a escravidão. Ou seja, entre os grupos componentes da Boa sociedade imperial o sentimento aristocrático sempre foi a linha de união, mesmo estabelecendo projetos políticos diferenciados. Foi nesta primeira onda de construção estatal que se realizou a primeira grande reforma nos estatutos da Academia dos Guardas-Marinha. Pelo Decreto regencial de 9 de Março de 1832 se extinguia a Academia Militar Imperial, criada em 1810, e a Academia dos Guardas-Marinha com intuito de criar um novo estabelecimento de ensino militar a Academia Militar e de Marinha da Corte do Império do Brasil (BRASIL, 1832). Em um momento de grandes turbulências políticas vividas na Corte encontra-se no posto de Ministro da Marinha Joaquim José Rodrigues Torres 2 com um discurso reformador para a instituição com intuito de garantir a ordem e a disciplina militar a muito abalada pela presença dos estrangeiros nos quadros navais. Para Academia dos Guardas-Marinha faz parte do grupo político que enxerga na instrução desses oficiais a importância do embarque nos navios como condição para formação destes oficiais. Ressalta a experiência norte-americana e inglesa, que possuem seu sistema de instrução naval nos próprios navios de guerra. Contudo, ressalta que a falta de professores para essa missão acaba por transformar a Academia de Marinha apenas em um espaço onde se aplica o ensino das necessidades científicas para o desempenho da função (TORRES, 1832, p. 13). A reforma no estatuto também incorpora esse mesmo discurso objetivando que a união e reforma das Academias militares estavam de acordo com a ideia de uma instrução essencial para as atividades terrestres e navais sem precisar passar anos letivos 2 Visconde de Itaboraí. Nascido no Rio de Janeiro em 1802. Bacharel em matemática pela Universidade de Coimbra. Ocupou diversos cargos políticos e também participou de inúmeros ministérios. Foi Ministro da Marinha por vários anos, sendo muito importante no discurso reformador da Academia dos Guardas-Marinha. Fez parte da Trindade Saquarema, segundo Ilmar de Mattos, sendo responsável pela implementação de uma direção moral, política e intelectual para o Estado Imperial brasileiro.

11 no estudo da teoria. O estudo teórico extenso não condizia com os novos entendimentos da ciência militar. O Estatuto de 1832 da nova academia militar era destinado ao público dos oficiais do Exército, da Armada e de Engenheiros e possuía em seu quadro acadêmico quatro cursos voltados as ciências matemáticas e militares. Os cursos se dividiam em: matemático, militar, pontes e calçadas e construção naval e possuíam duração de dois a quatro anos. Cada especialidade precisava cumprir um determinado currículo para se formar, no caso dos futuros oficiais de Marinha deveriam cumprir quatro anos do curso matemático, observatório e conhecimentos práticos. Um fator que chama muito atenção para este novo instrumento é a presença de um novo modelo de admissão que se centra muito mais na aptidão meritória e educacional do individuo do que em uma antiga formula de admissão baseada na autorização do Governo e uma herança familiar. 3 Uma primeira analise do currículo em comparação ao antigo Estatuto promulgado em 1796 (Portugal, 1828) pode-se enxergar a perda do conteúdo prático na formação dos oficiais navais e o alargamento dos conteúdos mais teóricos voltados a área matemática. No antigo Estatuto de 1796 havia todo um currículo prático dedicado as artes marinheiras que consistiam em conhecimentos necessários ao uso, construção, manutenção e manobras de uma vaso de guerra, este novo Estatuto de 1832 ficou um pouco negligenciado os conteúdos práticos restando apenas as aulas do observatório destinado aos estudos astronômicos para navegação. Também neste novo Estatuto não se encontra texto algum referente ao embarque dos alunos em navios como requisito para aprovação no curso militar naval, tal como ocorria desde 1796 onde o ano de embarque era central para continuação dos alunos na Academia. A união das Academias foi vista pelos contemporâneos como uma tentativa ruim de inovação do ensino acadêmico militar. Como aponta Joaquim José Rodrigues Torres em relatório apresentado a Assembleia Geral no ano seguinte, 1833, a experiência da nova academia militar foi, ao menos para Academia dos Guardas-Marinha, não de bom proveito ao 3 A entrada na carreira militar pelas Academias militares, principalmente na Academia dos Guardas-Marinha, tinha como um fator de preferência indivíduos que eram filhos de militares da Armada e do Exército. Neste Estatuto de 1832 isso foi banido.

12 conhecimento marítimo necessário. Todavia continua a insistir na reformulação acadêmica e aprendizagem prática, inclusive pedia permissão para instalar a Academia a bordo de um navio de guerra. De tão pouco proveito foi o estabelecimento desta Academia Militar e de Marinha que tal medida foi revertida em 1833 e tudo foi reestabelecido. Muitos trabalhos historiográficos apontam que esta primeira reforma no âmbito da Academia dos Guardas- Marinhas, que no essencial uniu as duas academias militares dando novos estatutos, foi um movimento do governo em de certa forma desmobilizar as Forças Armadas diminuindo assim a importância os militares na configuração política deste primeiro projeto estatal imperial (BOITEUX, 1840; ALBUQUERQUE, 1979 & SCAVARDA,1955.). Todavia essa ação deve ser relativizada um pouco, já que essa noção de banimento da Academia dos Guardas-Marinhas nesse momento de extinção, tanto os motivos apresentados por uma historiografia militar que apontam um desfavorecimento dos militares no período regencial, como as explicações que assumem este ato como reflexo de uma política econômica de cortes de gastos devidos aos problemas econômicos herdados do Primeiro Reinado, não dão conta de todos os aspectos, e do principal fato de que este ato foi revertido no ano seguinte (SILVA, 2012). Apesar de haver um programa político mais descentralista do poder político e que em geral investiu na formação de forças de repressão de caráter mais civil como a Guarda Nacional, nada indica concretamente um banimento completo das Forças Armadas no período. A meu ver, existiu sim uma preocupação em instalar um projeto militar e os Estatutos provam a complexidade deste sistema militar que se pretendia. Não houve uma substituição das corporações militares, mas, sim, a criação de um corpo militar baseado na ideologia de milícias com objetivo de auxílio para as tropas militares (SOUZA, 2005, p.73). Em relação à Academia dos Guardas-Marinha, continua ao longo da década de 30 todo um discurso reformador, que também incluía todo organograma naval, que visava a construção de uma Marinha mais adepta as pretensões governamentais. Mais uma vez os discursos dirigidos, em sua maior parte, por Joaquim José Rodrigues Torres exaltavam a necessidade da prática para formação militar naval e apresentava os embarques dos alunos como ponto central para a criação de ordem e disciplina marítima (TORRES, 1838). Todavia,

13 os ares governamentais começavam a delinear um novo projeto político estatal mais centralizado e conservador, e que como já apontado anteriormente colocou Exército e Armada como pontos importantes para consolidação. A partir de 1837 se iniciou um novo projeto político conservador para o Estado Imperial, um projeto vencedor que conseguiu de certa forma consolidar não só o arcabouço estatal e as dinâmicas administrativas, mas permitiu agrupar através da direção política, moral e intelectual os diversos grupos componentes da classe senhorial. Como aponta Ilmar, o Regresso foi um período inicial para recunhagem de uma moeda colonial. Neste momento se iniciou um novo projeto político que possuía em seu norte um avanço do princípio da autoridade frente às medidas mais descentralizadoras e associadas ao principio democrático de período anterior (MATTOS, 2011, p.152). Em resumo, as praticas e ações políticas regressistas visaram a construção de todo um aparato estatal e social baseado em duas concepções de mundo: a ordem e a organização. Nesse sentido se instalou um discurso conservador de resignificação do sentido da Liberdade, agora alocada como espaço qualitativo de reprodução das desigualdades humanas e sociais (MATTOS, 2011, p. 161), e de modificação dos lugares ocupados pelos elementos políticos constitutivos deste Estado Imperial. Ascende ao discurso político novamente um imaginário associado ao elemento monárquico e ao Poder Executivo forte, e por meio destes atributos surgiu um consenso em torno da implementação de um programa de defesa da produção agrícola de exportação herdada do período colonial. Esse ajustamento político foi essencialmente orquestrado pelos Saquaremas, que se tornou a principal liderança na definição da coalizão que dominou a cena política no país após 1837. (GOUVÊA, 2008, p.21) A construção de uma dinâmica estatal baseada na recunhagem de uma ordem política e social advinda do período colonial, onde novos agentes ocupam antigos lugares e garantem assim os privilégios e os interesses de uma classe senhorial forjada. A Coroa toma o lugar das antigas regiões coloniais que tinham negócios diretamente com a antiga metrópole portuguesa, substituída pelas nações civilizadas representadas pela França e Inglaterra. A esta dinâmica se agregam todos os valores culturais modernos e as antigas práticas políticas e

14 sociais que investem na formação de uma cidadania brasileira de forma hierárquica e excludente. Para toda essa engrenagem se estabelecer e funcionar foram precisos boas reformas que visaram o fortalecimento do governo, tais eram necessárias para se manter a configuração do regime monárquico desejado, por isso neste período encontra-se uma gama imensa de reformas legislativas, econômicas e as principais para este trabalho que foram as reformas voltadas para organização do Exército e da Armada (MATTOS, 2011, p. 158). A primeira ocorreu em 1839 em um momento delicado de véspera da Maioridade e resignificação dos principais dispositivos do poder que compunham o quadro político imperial. Em resumo, tratou de estabelecer mudanças no ensino, mas não rompeu com os Estatutos setecentistas herdados do Império luso. Já a segunda reforma ocorrida em 1858, ou seja, no auge dos reflexos da Conciliação, acabou por estabelecer novos Estatutos e uma reformulação completa dos desígnios e funções desta instituição de ensino. Esta última reforma foi vista pela maioria dos estudiosos da Academia dos Guardas-Marinha, como momento em que tal instituição adentrou ao espírito brasileiro e se encaixou as normas imperiais, além de compartilhar uma nova cultura militar mais profissional. A Reforma de 1839 ocorrida em 31 de Janeiro pode ser considerada uma primeira vitória aos argumentos que visavam estabelecer uma rotina educacional mais práticas aos alunos internos da Academia (BRASIL, 1839). Durante toda a década de 1840 vamos encontrar o ensino a bordo da Nau Pedro II que realizava viagens de instruções, além da rotina estabelecida ainda pelos Estatutos de 1796. 4 Uma análise primária no texto oficial do estatuto evidencia uma aproximação com os princípios navais ingleses que enxergavam a formação militar naval ligada ao serviço diário a bordo e aprovação de um comandante como fatores primordiais para aprovação dos alunos (SILVA, 2012). Aqui mais uma vez se afirmou a necessidade de uma autorização do Governo, representado pelo Ministro e Secretário dos Negócios da Marinha, para admissão na Academia, além de terem uma preferência por filhos de oficiais militares. No geral, os artigos deste novo regulamento exaltavam uma maior 4 Em 1849 a sede da Academia dos Guardas-Marinha passou novamente a ser em terra. Tal ação ocorreu devido as péssimas condições físicas do navio, e não por causa de uma mudança dos argumentos sobre a educação naval.

15 interferência do poder central sobre os meios acadêmicos militares, principalmente estipulando o número de vagas por ano e os escolhidos para adentrar a esta carreira militar naval. Todavia os anos que sucederam este regulamento de 1839, considerado marco da aproximação com o projeto político conservador saquarema, não se tornou resposta para a consolidação de um projeto militar naval. Os discursos ministeriais continuavam a falar e apontar das vantagens e desvantagens de um ensino prático a bordo contra uma noção mais científica da própria educação, a questão estava longe de ser resolvida. A partir de 1854, as falas ministeriais começam a endurecer o discurso no sentido de apressar a aprovação de uma reforma na Academia dos Guardas-Marinha e com isso realizar de vez a aproximação dos estudos acadêmicos com alguma vertente teórica ou prática. A maioria dos argumentos políticos apontava para a necessidade prática exigida pela vida no mar, e como a estruturação desse ensino seria vantajoso para proteção da integridade comercial e física do Império. Em maio de 1858 surge a reformulação completa dos Estatutos da Academia dos Guardas-Marinha com um novo nome: a Escola de Marinha (BRASIL, 1858). Tais estatutos apresentavam um rompimento completo com os de 1796, e de certa forma, aparentam incluir em suas linhas todos os argumentos utilizados desde 1831 em relação ao ensino naval militar brasileiro. Ou seja, o espírito reformador tentou ceder aos dois lados: os que queriam a prática como fator central e os que enxergavam o ensino de um teórico. Como aponta o Ministro da Marinha José Antonio Saraiva, a frente do Ministério nesse período, a reforma deu maior desenvolvimento ao estudo, mas não deixou de contemplar a prática obrigando o aspirante a realizar exercícios duas vezes ao mês, embarque a cada final de ano por três meses e o último ano sendo a bordo. Era impossível implantar o sistema inglês, pois aqui não existia um preparatório e ensino de muitos estudos teóricos realizados pelos jovens ingleses ao longo da vida educados pela aristocracia. Fortificou o ensino e aumentou exigências na admissão, aumentando a idade e o conhecimento. De fato, a análise primária dos Estatutos de 1858 se encontra o significado maior que o Governo imperial pretendeu aplicar a Escola de Marinha, tem por fim o ensino theorico e pratico das matérias cujo estudo he indispensável aos jovens

16 que se dedicarem ao serviço da Armada Imperial, e obtiverem praça de Aspirante á Guarda Marinha (BRASIL, 1858). O Curso tinha a duração de 4 anos, sendo três deles dedicados ao ensino teórico das disciplinas como matemática, física e tática de guerra e o último ano dedicado ao ensino prático a bordo de um navio-escola, com disciplinas voltadas a vida no mar. Ainda faltam alguns elementos para se completar o quadro histórico da educação naval e suas reformas em um período de modificação da mentalidade militar e estrutura administrativa imperial, contudo a constatação de um conflito no seio da classe senhorial a frente da formação estatal e uma possível vitória de uma estrutura educacional mais teórica e mais conciliatória já apontam que é necessário o estudo da concepção de união entre o projeto militar do Estado imperial e as novas noções militares que circulavam no contexto. A leitura da importância da prática e da teoria nos discursos dos ministros da marinha acaba por refletir na concepção educacional da instituição, havia uma preocupação com esta formação e a necessidade de uma definição do governo frente aos novos marcos militares que a formação do Estado-Nação exigia, tornando este objeto de estudo parte de uma complexa construção do próprio arcabouço estatal brasileiro. Referências bibliográficas Fontes primárias BRASIL. Leis, decretos, etc. Colleção das Leis do Império do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1831/1858. BRASIL. Ministério da Marinha. Relatórios dos Ministros da Marinha. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, 1831/1858. PORTUGAL. Lei, decretos, etc. Coleções da Legislação Portuguesa 1791-1801. Lisboa: Typografia Maigrense, 1828. Bibliografia

17 ALBUQUERQUE, Antônio Luz Porto. Academia Real dos Guardas-Marinha. In: História Naval Brasileira. Rio de Janeiro: SDGM, 2º vol. Tomo II, 1979.. Da Companhia dos Guardas-Marinha e sua real Academia a Escola Naval (1782-1982). Rio de Janeiro: Xerox Brasil, 1982. BOITEUX, Lucas Alexandre. A Escola Naval: (seu histórico) 1761-1937. Rio de Janeiro: Imprensa Naval, 1940. CAMINHA, Herick. Organização e administração do Ministério da Marinha no Império. Rio de Janeiro: Serviço de Documentação geral da Marinha, 1986. GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das Províncias: Rio de Janeiro, 1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. HUNTINGTON, Samuel P. O Soldado e o Estado: Teoria e Política das relações entre civis e militares. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1996. MATTOS, Ilmar Rohloff. O Gigante e o Espelho. In: GRINBERG, Keila & SALLES, Ricardo (Orgs). O Brasil Imperial (1831-1870). Vol. 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. 6 Ed. São Paulo: Hucitec, 2011. SCAVARDA, Levy. A Escola Naval através dos tempos. In: Subsídios para História Marítima do Brasil. Rio de Janeiro: SDGM, Vol. XIV, 1955. SILVA, Carlos André Lopes. A Real Companhia e Academia dos Guardas-Marinhas e a emergência da profissão militar: um estudo através das normas (1782-1839). In: Simpósio Nacional de História ANPUH: 50 anos. XXVI, 2011, São Paulo. Anais... São Paulo: ANPUH-SP, 2011. SILVA, Carlos André Lopes. A Real Companhia e Academia dos Guardas-Marinha: aspectos de uma instituição militar de ensino na Alvorada da profissionalização do oficialato militar, 1808-1839. 2012. Dissertação de Mestrado em História. Programa de Pósgraduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro. SILVA, Carlos André Lopes. Os Rumos do ensino profissional para o oficialato da Marinha na Regência e os limites da teoria da política de erradicação das Forças Armadas. Revista Navigator: subsídios para a História Marítima do Brasil, v. 8, n. 16, 2012.

18 SOUZA, Adriana Barreto. A metamorfose de um militar em nobre: trajetória, estratégia e ascensão social no Rio de Janeiro joanino. In: Revista tempo. Niterói, vol. 12, nº 24, Janeiro/2008. http://www.historia.uff.br/tempo/artigos_dossie/v12n24a04.pdf SOUZA, Adriana B. O Exército na consolidação do Império: um estudo histórico sobre a política conservadora. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.