ALONSO, Mariângela. Instantes líricos de revelação: a narrativa poética em Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, p.

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Transcrição:

Revista FronteiraZ nº 10 junho de 2013 nº 14 - julho de 2015 ALONSO, Mariângela. Instantes líricos de revelação: a narrativa poética em Clarice Lispector. São Paulo: Annablume, 2013. 154p. Eduardo Neves da Silva * Os livros que vêm sendo publicados continuamente no Brasil e no exterior sobre Clarice Lispector indicam, ao menos, dois sinais claros: um é de que o manancial de sentido de sua literatura parece simplesmente inesgotável; o outro é de que a escritora e sua obra nunca estiveram em tamanha evidência. Por que popular, se hermética? Por que hermética, se popular? Essa dúvida parece calar fundo no imaginário crítico brasileiro e, de certa forma, já havia sido colocada pela própria Clarice Lispector em sua famosa entrevista ao jornalista da TV Cultura Júlio Lerner, em 1977, mesmo ano da morte da autora; entrevista que, aliás, também geraria um livro, escrito pelo entrevistador. Biografias romanceadas, peças de teatro, crônicas televisionadas, frases compartilhadas em redes sociais (muitas nem são de sua pena); há Clarice Lispector para todas as situações e estantes. Difícil negar, a esta altura, que certas características pessoais da autora (beleza, charme e personalidade enigmática) têm servido como verdadeiros chamarizes para sua obra de ficção. No entanto, é preciso estar ciente de que, em se tratando da literatura de Lispector, o leitor, quase sempre, não ganhará absolutamente nada; a não ser a reviravolta de todas as suas convicções. É o que, sem dúvida, ocorre na leitura de uma obra como A paixão segundo G.H., obra cuja primeira edição veio a lume em 1964 e que, desde então, não cessa de provocar questionamentos e discussões entre críticos e leitores. Junto às comemorações e aos debates em torno do aniversário de quarenta anos * Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara (UNESP), Araraquara, SP, Brasil edu_nsp@hotmail.com Resenhas Eduardo Neves da Silva 237

de publicação da referida obra de Lispector, veio se somar o lançamento do livro Instantes líricos de revelação, de Mariângela Alonso, publicado em fins de 2013. Muito além de modismo ou oportunismo editorial, no entanto, o livro representa, com efeito, uma significativa e enriquecedora contribuição para a crítica clariciana, uma vez que o estudo de Alonso desenvolve-se sob uma coerente e bem fundamentada discussão teórica acerca de A paixão segundo G.H., partindo dos conceitos de narrativa poética, de Jean-Yves Tadié, e de romance lírico, de Ralph Friedman (estudos ainda pouco difundidos no Brasil), a fim de se comprovar uma natureza em comum entre a narrativa de Lispector e a linguagem da poesia. No primeiro capítulo de Instantes líricos de revelação, intitulado Vozes da Crítica Coágulos líricos, Mariângela Alonso resgata a fortuna crítica de Lispector, destacando a visão de importantes estudiosos que se debruçaram sobre a ficção clariciana. Partindo das críticas de Álvaro Lins e de Antonio Candido, ambas de 1944, ano em que a escritora estreou na literatura brasileira com Perto do Coração Selvagem, Alonso nos mostra como a escrita de Lispector representou uma dissonância e, ao mesmo tempo, uma abertura a novos caminhos dentro da produção literária da época, então dominada pelo neorrealismo. A própria crítica literária brasileira parecia não estar preparada para semelhante transformação, como se nota na visão de Álvaro Lins para quem haveria uma flagrante falta de experiência da escritora, justamente por sua obra não atender à estruturação fundamental de um romance. Importante assinalar, ainda, que a crítica literária, entre a década de 1950 e os dias atuais, parece ter aprimorado suas avaliações sobre o trabalho da autora, uma vez que, das superficiais e pouco precisas denominações de literatura feminina ou intimista, passou-se a examinar a obra de Lispector dentro de um registro existencial ou poético, graças em especial aos estudos de Benedito Nunes, Alfredo Bosi, Earl E. Fitz, dentre outros. Na leitura dos capítulos seguintes do livro de Mariângela Alonso, torna-se visível que seu estudo sobre A paixão segundo G.H. se apoia sobre três eixos principais, quais sejam: a linguagem, o espaço e o mítico. No segundo capítulo do livro, intitulado A paixão segundo G.H. uma narrativa poética, um romance lírico, a discussão gira em torno das aproximações ou semelhanças entre o discurso da personagem denominada apenas pelas iniciais, G.H. e a expressão do poético. Na narrativa de Clarice Lispector, a protagonista, uma escultora de classe média alta, é quem nos relata, em tom confessional, o que acontecera no dia anterior, quando resolvera fazer uma Resenhas Eduardo Neves da Silva 238

limpeza em todo o seu apartamento, começando pelo quarto da empregada que havia se demitido. Será nesse pequeno espaço, ponto de encontro da narradora consigo mesma, onde acontecerá o grande momento: o contato gustativo de G.H. com a massa branca da barata. Os apontamentos da estudiosa seguem a trilha do poético em A paixão segundo G.H. tendo em vista tanto a forma expressiva repetições, circularidade e linguagem simbólica quanto o próprio sentido da busca interior da protagonista escultora/escritora, uma vez que O questionamento da personagem em torno da narrativa [...] nos faz perceber que uma das características marcantes das narrativas líricas, que constitui exatamente a reflexão sobre a própria arte e o esforço para se encontrar um sentido através da forma (p.51). Desse modo, o discurso da narradora configura-se como a busca da correspondência entre forma e sentido, apontando assim para o poético e, ao mesmo tempo, adquirindo caráter existencial. Entretanto, essa correspondência, como se saberá pela voz da protagonista, se mostra impossível, e, assim, a própria busca através do discurso acaba por assumir toda a carga de sentido poético e ontológico. No terceiro capítulo, Diferentes espaços revelações, a autora se debruça sobre o elemento espacial em A paixão segundo G.H., traçando a planta do apartamento da protagonista e desvelando-lhe significações profundas com o apoio da simbologia e dos estudos de Gaston Bachelard e Maurice Blanchot. Alonso estabelece uma analogia entre o percurso de G.H. que vai do living, passando pela área de serviço, pelo corredor e pelo quarto da empregada, para depois retornar ao cômodo inicial e a peregrinação do indivíduo em busca de seu próprio eu. Será em especial no quarto da empregada, um quadrilátero de branca luz, onde se dará o contato com o sagrado: Lúcida e consciente de si, G.H., como uma beduína, começa a transpor este quarto deserto, no questionamento a respeito da sua própria alma. No cômodo aberto para o alto, a protagonista encontra-se próxima a uma espécie de mundo divino (p.88). A narradora, em seu discurso, dá-nos a imagem de seu apartamento como uma torre ascendendo aos céus e do quarto da empregada como um minarete. Sobre esse aspecto, assim afirma Mariângela Alonso No décimo terceiro andar de um edifício, a mulher escultora, ao atentar para as formas de sua casa, inicia a tomada de consciência da altura infinita, sagrada, a qual coincide com a procura de sua própria forma (p.88). A interpretação da estudiosa tecida nesse capítulo encontra-se em perfeita coerência com a Resenhas Eduardo Neves da Silva 239

ideia de narrativa poética desenvolvida por Tadié, pelo fato de que esta tende a privilegiar o espaço como forma e função simbólica de revelação. O quarto capítulo, intitulado A personagem revelações de uma persona, tem como assunto a própria figura de G.H., tomada pela estudiosa como uma espécie de máscara a esconder a verdadeira identidade da protagonista. De fato, não é revelado ao leitor nada mais que identifique especificamente a personagem além das inicias do nome. Como pode se depreender da leitura de Mariângela Alonso, essa ocultação da identidade da protagonista pode sugerir dois pressupostos contrastantes, embora complementares: o primeiro é o de que o nome G.H. se identificaria com uma máscara que se movimenta dentro de um mundo como representação, valendo-nos aqui dos termos de Schopenhauer. Esse mundo das formas organizadas é assegurado por uma terceira perna, nas palavras da narradora, em outras palavras, um verdadeiro tripé que, ao mesmo tempo em que a mantém segura existencialmente, impede-a de caminhar e, como consequência, de entrar em contato com o seu âmago. O segundo pressuposto é de que o não revelar a identidade singular da protagonista abriria espaço a uma significação ontológica da narrativa, já que a protagonista se apresenta quase como um ser genérico, representado por G.H., que parte no encalço daquilo que é em si (e não de uma existência em particular) e cuja tarefa exigirá a perda de sua terceira perna, ou seja, de sua estabilidade existencial dentro do mundo das aparências. Daí a conclusão de Alonso para esse capítulo: É nítido observarmos o fato de que G.H. se oculta em uma sigla aos olhos do leitor, mantendo-se incógnita, mas trazendo em sua história o traço ontológico do mistério que ronda o ser humano: o desejo de conhecer-se (p.99). O quinto capítulo, como se nota facilmente pelo título, O substrato mítico, versa sobre os aspectos de A paixão segundo G.H que podem ser associados ao mito. Além de referências a diversas passagens míticas e de imagens simbólicas próprias ao mito, Mariângela Alonso destaca o fato de que, nas narrativas poéticas, o mito assume a função de autoconhecimento e de iniciação. Nesse sentido, afirma a estudiosa que Essas narrativas trazem aspectos presentes nas narrativas míticas, uma vez que apresentam a história de uma experiência e de uma revelação, a vivência da travessia simbólica de uma busca ontológica (p.102). A travessia de G.H. pelos cômodos de seu apartamento, portanto, comportaria um sentido simbólico e ao mesmo tempo ontológico. Avançando na argumentação, Alonso situa a ação de G.H. dentro da ideia de gesto arquetípico de geração do universo, uma vez que a busca interior da protagonista pode ser identificada com uma forma de recriação cósmica. Resenhas Eduardo Neves da Silva 240

A parte mais significativa desse capítulo, entretanto, diz respeito à figura da barata em A paixão segundo G.H. Deparar-se com o inseto que sai do armário e posteriormente ingerir o seu interior é o momento do contato da protagonista com o outro e, pelo outro, consigo mesma. Para Mariângela Alonso, a relação de G.H. com a barata também remeteria ao universo do mítico, pois o inseto representaria um retorno a um tempo primitivo, antes mesmo da aparição da raça humana sobre o mundo. A ingestão da hemolinfa da barata seria, ao cabo, a etapa crucial do itinerário existencial de G.H., que pode ser resumido em adentrar o quarto da empregada, posteriormente, adentrar o armário e, finalmente, adentrar a barata. O inseto encerra assim um intervalo, uma fenda entre o sujeito e o objeto, entre duas unicidades o que fará todo o processo de descoberta da protagonista (p.118). A barata, tal como a hóstia, implicaria identificação e incorporação, explica ainda a estudiosa, sendo que o contato de G.H. com o inseto se dá numa atmosfera de culto e sedução: A personagem, seduzida pela caracterização da barata, é também seduzida pela vida e pelo sentido que ela oculta (p.121). Mariângela Alonso retoma nesse capítulo o conceito de hierofania (a revelação do sagrado), haurido dos estudos de Mircea Eliade sobre o mito. Na ideia proposta pela autora, a barata tornar-se-ia portadora da manifestação do sagrado, proporcionando a G.H. um instante decisivo de hierofania. No sexto e último capítulo, intitulado A linguagem em crise o silêncio, a autora discute o resultado final dos meandros do discurso da protagonista: o fracasso da linguagem. Isto porque, conforme nos diz a estudiosa apoiando-se na crítica de Benedito Nunes e nos apontamentos teóricos de George Steiner, a experiência de G.H. com a substância viva do ser representada materialmente pela massa branca da barata alcança as raias do inexprimível. O silêncio, o vazio e a quietude referidos por G.H em vários momentos da narrativa reforçam a ideia de um limite intransponível entre o dizível e o indizível. O drama da linguagem, para usar um termo de Benedito Nunes, vem do fato de que a verdade reside justamente do outro lado desse limite, onde a linguagem não alcança, restando, então, apenas o silêncio. Silêncio que, em última análise, é também expressão do poético, conforme colocado pela autora do estudo. A respeito desse último capítulo, cumpre ainda referirmos ao caráter de deseroização, inventado por Clarice Lispector e discutido por Mariângela Alonso. Segundo esta, o prefixo des promoveria uma inversão semântica a respeito do heroico. O herói é aquele que se lança à aventura, a uma realização efetiva, portanto. O Resenhas Eduardo Neves da Silva 241

que ocorre com a protagonista G.H., porém, é o inverso, isto é, sua busca é anterior, é a busca do ser, que se revela, ao final, o próprio silêncio, ou o neutro, termo usado pela narradora. No entanto, Ao provar a massa branca da barata, G.H. se submete ao sacrifício máximo da redenção, a fim de se conseguir purificar. Porém faltavam-lhe condições de constatar o neutro (p.135). Por isso, a rejeição violenta da protagonista à matéria interna do inseto. Ao cuspir a massa branca da barata, G.H. cospe seu próprio ser, num gesto de incapacidade de aceitar a desorganização causada pela verdade. Daí o discurso narrativo encerrar-se com a retomada da ordem anterior, a organização segura do mundo das aparências: a personagem quer sair para jantar com os amigos e não sabe que vestido usar. Na conclusão de Instantes líricos de revelação, antes de engendrar resumidamente os pontos discutidos ao longo do livro, Mariângela Alonso ressalta a constatação de que A paixão segundo G.H. representa um ponto-chave na ficção clariciana, pois, conforme dito pela crítica, a obra é uma síntese dos procedimentos enunciativos modernos e da temática de Lispector em relação ao conjunto de sua produção literária. Sobre a importância das narrativas poéticas, afirma Alonso, já quase ao final do texto, que essas, no limite, buscam dar um sentido à vida, instaurando forças que o texto põe em jogo, como a procura de uma identidade, a força expressiva do íntimo, possibilitando ao personagem, e, consequentemente, ao leitor, a realização de uma trajetória pessoal através dos textos (p.141). Daí podemos concluir que, baseandonos no estudo de Alonso, a expressão do poético subtende a expressão (ou tentativa de expressão) enigmática do ser. Em se tratando especificamente da obra de Clarice Lispector emendando o que foi dito no início do texto restará ao leitor ou a reviravolta de todas as suas convicções, ou o nada. Quando não o primeiro levando ao segundo. Seríamos todos G.H.? Data de submissão: 15/04/2015 Data de aprovação: 21/05/2015 Resenhas Eduardo Neves da Silva 242