NA MINHA CIDADE NÃO ACONTECE NADA LISBOA NO CINEMA (ANOS VINTE-CINEMA NOVO) 1 Tiago Baptista 2



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Transcrição:

NA MINHA CIDADE NÃO ACONTECE NADA LISBOA NO CINEMA (ANOS VINTE-CINEMA NOVO) 1 Tiago Baptista 2 1.Introdução O principal aspecto da representação cinematográfica de Lisboa destacado texto será, paradoxo apenas aparente, o da invisibilidade da capital entre o cinema mudo e o início do cinema novo 3. Com efeito, o argumento deste texto sugere que (1), até ao cinema dos anos sessenta e salvo raríssimas excepções, Lisboa quase não surgiu nos filmes portugueses e que (2) as suas escassas representações retrataram menos uma realidade arquitectónica e urbanística concreta e reconhecível do que uma determinada ideia de cidade, dita moderna mas não necessariamente modernista porque correspondia, acima de tudo, a um muito depreciado espaço moral e social caracterizado por um ideal de mundaneidade e de cosmopolitismo. Representada em oposição a um mundo rural idealizado (no cinema mudo) ou reduzida ao que de rural podia encontrar-se num ambiente urbano (nas comédias à portuguesa), Lisboa foi representada metonimicamente pelas suas partes mais censuráveis (o clube nocturno) ou mais amáveis (o pátio e os interiores domésticos), mas evitando sempre o espaço impessoal da rua e todas as sociabilidades urbanas consideradas mais turbulentas. Uma e outras, se bem que presentes, por exemplo, na fabulosa excepção que foi Lisboa, Crónica Anedótica (1930), apenas se estrearam verdadeiramente no cinema português com os primeiros filmes do cinema novo que, como obras de resistência política e de crítica social que também foram, recorreram justamente aos espaços públicos e às sociabilidades lisboetas mais conflituosas para metaforizar a claustrofobia política e social que se vivia então no país. 2.Cinema mudo O cinema ficcional mudo português arranca por volta de 1918 e, por ter sido feito em grande medida por realizadores franceses, é frequente dizer-se dele que foi um cinema português feito por estrangeiros 4. Muitos destes filmes eram adaptações literárias de autores naturalistas do século XIX, como Júlio Diniz ou Camilo Castelo Branco 5 e contaram com a participação dos actores de teatro mais famosos do seu tempo 6. 1 Este texto desenvolve uma conferência com o mesmo título apresentada no dia 26 de Novembro de 2004, em Lisboa, no âmbito do Encontro Internacional Os Itinerários dos Indivíduos e dos grupos nos espaços urbanos, organizado pelo Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa do ISCTE. 2 Cinemateca Portuguesa-Museu do Cinema (Lisboa). 3 E que não é uma especificidade da capital, já que o mesmo se poderia dizer a propósito de Coimbra e do Porto, as duas cidades mais filmadas depois de Lisboa. 4 Sobre o cinema ficcional mudo e a relevância dos seus realizadores estrangeiros cf. «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma ao modo de produção do cinema mudo em Portugal», Tiago Baptista, in Lion, Mariaud, Pallu: Franceses tipicamente portugueses, Tiago Baptista (org.) (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 2003), 37-96; e ainda Tipicamente português. O cinema ficcional mudo em Portugal no início dos anos vinte, Tiago Baptista (Lisboa: 2003), policopiado, dissertação de mestrado apresentada à FCSH/UNL. 5 Complementarmente, devem ser citados os nomes dos autores epigonais deste naturalismo ou, em certos casos, romantismo tardio: autores como Júlio Dantas, Manuel Maria Rodrigues, Abel Botelho, Bento Mântua, Francisco Lage e João Correia de Oliveira, Manuel Pinheiro Chagas e mesmo Virgínia de Castro e Almeida. É impossível citar os autores canónicos oitocentistas adaptados ao cinema (Camilo e Júlis Dinis, as grandes produções da Invicta e da Caldevilla Film: Os Fidalgos da Casa Mourisca (1920), Amor de Perdição (1921) e As Pupilas do Senhor Reitor (1922)) sem notar a ausência de Eça de Queirós. Foi adaptado apenas uma vez, com O Primo Basílio (1923), uma Ler História, 48, 2005, 167-184 1

Os argumentos destes filmes situavam a acção em comunidades rurais idealizadas, participando desse modo num processo de construção nacionalista que passou pela fixação de um conjunto de estereótipos do país como uma nação eminentemente rural e dos seus habitantes como um povo de camponeses, processo esse que foi transversal a várias outras formas de expressão artística e também aos sucessivos regimes políticos de final do século XIX e início do século XX (da monarquia constitucional à democracia liberal republicana e desta ao autoritarismo salazarista) 7. Não surpreende, por isso, que na esmagadora maioria do cinema ficcional mudo português (1918-1932), as duas principais cidades do país (Lisboa e Porto) raramente tenham sido representadas. Na economia narrativa destes filmes, a cidade é menos importante e menos referida como realidade arquitectónica e urbanística concreta do que como lugar de origem de personagens cuja chegada ao campo e consequente desequilíbrio de uma ordem social que lhes é estranha constitui, quase sempre, o motor narrativo destes filmes. Procurando estilizar uma linha narrativa muito recorrente nestes filmes, depois de exposta a ordem social pacífica natural de um meio preferencialmente rural, a acção desencadeia-se pela chegada de um elemento estranho, as mais das vezes oriundo da cidade. Esta perturbação materializa-se frequentemente pela corrupção sentimental de uma jovem, caracterizada como ingénua, que acredita na honestidade das intenções do citadino ou do estranho, por sua vez caracterizado como leviano. A consequência imediata dos galanteios é a ocorrência de uma tragédia, ou a quase ocorrência de uma, provocada por um terceiro elemento oriundo da aldeia e que, ele sim, nutria sentimentos verdadeiramente nobres e honrados pela rapariga. A violência da tragédia que se abate sobre o estranho e restaura a ordem inicial demonstra a imoralidade, a impossibilidade e, muito eloquentemente, os verdadeiros perigos que pode acarretar qualquer tentativa de alteração daquela ordem social e moral 8. A quase inteira invisibilidade do espaço urbano corresponde, por isso, durante quase toda a década de vinte, a uma espécie de fora de campo moral continuamente adaptação cuidadosamente expurgada de cenas eventualmente chocantes mas, mesmo assim, denunciado na imprensa especializada como exploração pouco escrupulosa de temas imorais. Usadas à revelia da obra original, a denúnica e a ironia social do romance realista foram transformadas em veículo de pura e crua acusação conservadora. 6 Sobre as adaptações cinematográficas de romances dinisianos e camilianos cf. «Ler romances nos filmes», de Helena Buescu, in Tiago Baptista (org.), op. cit, 125-143. Sobre a participação de actores de teatro nos filmes mudos portugueses cf. «O pequeno teatro do mudo», de Francisco Frazão, in Tiago Baptista (org.), op. cit., 163-186. 7 As adaptações cinematográficas de romances naturalistas e os filmes organizados em torno da oposição campo-cidade não esgotam o universo do cinema mudo português mas constituem a materialização de uma influente norma de produção cinematográfica que moldou estruturas de produção e de recepção crítica no sentido de uma maior predisposição em relação a estas obras (alvo dos maiores investimentos financeiros pelas produtoras do período e dos maiores encómios pela crítica da época). Sobre este assunto e para um maior enquadramento cultural desta norma cf. «Franceses tipicamente portugueses. Roger Lion, Maurice Mariaud e Georges Pallu: da norma ao modo de produção do cinema mudo em Portugal», op.cit. e ainda «Cinema e nação: os primeiros trinta anos de filmes tipicamente portugueses», Tiago Baptista, in Actas do Colóquio Transformações estruturais do campo cultural português, 1900-1950 (Coimbra: CEIS20/UC, 2005) (no prelo). 8 São exemplos deste tipo de organização narrativa os filmes A Rosa do Adro (1919), Mulheres da Beira (1922), A Sereia de Pedra (1922), Os Olhos da Alma (1922) e As Pupilas do Senhor Reitor (1922). Ler História, 48, 2005, 167-184 2

contraposto à moral posta em cena das comunidades rurais representadas e as poucas referências explícitas à cidade apresentam-na como um espaço de moral dissoluta marcado por todos os vícios e todos os crimes como o jogo, o álcool e a infidelidade e ainda por roubos, homicídios e fraudes financeiras 9. O clube nocturno sintetizava todos estes duvidosos atributos urbanos e a sua representação adquire, nos filmes mudos portugueses, uma qualidade metonímica de todo o espaço urbano ao mesmo tempo que reforça a secundarização da representação de Lisboa como um espaço urbano e arquitectónico concreto e reconhecível em detrimento da representação de um espaço indeterminado, mais importante como espaço moral e como ideia de sociabilidade urbana. É o caso, paradigmático, de Fátima Milagrosa (Rino Lupo, 1927) cuja carga moralizadora da sequência do clube nocturno é potenciada pela sua montagem paralela com a procissão das velas em Fátima ( Nas cidades, à mesma hora, há luz e ruído nos dancings ) e por uma sucessão de intertítulos demolidores em relação ao ambiente festivo vivido no Monumental Club : Champagne, Histerismo, Fumo, Alma do Jazz Band, Bohemia, Inconsciência, Vício, Perversão. A legenda de uma fotografia promocional do filme descrevia esta sequência, aliás, como a tentação de Antero (o protagonista) pelos sete pecados capitais, cada um deles representado por uma das sete actrizes que o acompanhava à mesa do clube e que cada intertítulo se encarregava de designar. Enquanto Antero se perdia em Lisboa, a sua bem-amada Helena rezava por ele em Fátima, em plena procissão das velas, esperando que um milagre o regenerasse. As preces de Helena são escutadas e, ao mesmo tempo que uma personagem secundária recupera milagrosamente de uma paralisia diante do andor da Virgem, um segundo milagre desperta a consciência de Antero e leva-o a abandonar o clube e a cidade para ir ao encontro de Helena, na milagrosa Fátima. 3.Lisboa, Crónica Anedótica No final dos anos vinte, o paradigma ruralista e literário do cinema mudo português é posto em causa por uma nova geração de realizadores, muitos dos quais iniciavam aqui carreiras que seriam preponderantes na história do cinema português até quase final dos anos cinquenta 10. Exercendo em muitos casos uma carreira paralela como críticos de cinema, realizadores como António Lopes Ribeiro, Jorge Brum do Canto, Leitão de Barros ou Manoel de Oliveira, desempenharam um papel importante na defesa das vanguardas cinematográficas europeias e na actualização do cinema português enquanto forma de expressão artística, opondo-se por isso combativamente ao cinema dito comercial das adaptações literárias do tempo do cinema português feito por estrangeiros. 9 Exemplo disso os filmes O Amor Fatal (Georges Pallu, 1920), Barbanegra (Georges Pallu, 1920), Cláudia (Georges Pallu, 1923), Lucros Ilícitos (Georges Pallu, 1923), Tragédia de Amor (António Pinheiro, 1923). Não por acaso, vários destes filmes correspondem a obras da chamada produção intercalar da Invicta Film, isto é, filmes de menos investimento financeiro que eram realizados nas pausas entre grandes produções as adaptações literárias de ambiente ruralista. 10 Esta nova geração de realizadores foi analisada como um todo por Luís de Pina em História do Cinema Português (Lisboa: Publicações Europa-América, 1986) 58-69 e Panorama do cinema português (Lisboa: Terra Livre, 1978), esp. p.18ss, num capítulo significativamente intitulado «A geração de 30 dura vinte anos»; e ainda por João Bénard da Costa em Histórias do Cinema (Lisboa: INCM, 1991) 36-45. Ler História, 48, 2005, 167-184 3

Resultaram daqui curtas e médias metragens de grande inventividade formal como A Dança dos Paroxismos (Jorge Brum do Canto, 1928), dedicado pelo realizador a Marcel L Herbier, ícone da vanguarda cinematográfica francesa dos anos vinte, ou ainda os primeiros filmes de António Lopes Ribeiro (Bailando ao Sol, 1928) e de Chianca de Garcia (Ver e Amar, 1930). À experimentação formal destes filmes acrescentava-se ainda um interesse crescente pela vida quotidiana nas cidades afinal, o habitat natural dos seus realizadores, surgindo então os primeiros filmes que davam protagonismo às cidades do Porto e de Lisboa. Datam deste período o primeiro filme de Manoel de Oliveira, o célebre documentário sobre a zona ribeirinha do Porto intitulado Douro, Faina Fluvial (1931), ou ainda Lisboa, Crónica Anedótica (1930), de Leitão de Barros, organizado como uma sucessão de sketches humorísticos e sociológicos sobre alguns bairros e tipos sociais da capital e interpretado tanto por actores de teatro célebres como pelos próprios transeuntes lisboetas. Neste sentido, o filme de Leitão de Barros é especialmente importante ao dar pela primeira vez a uma cidade o estatuto de personagem central num filme português: nisso, o filme era uma obra do seu tempo já que, para lá do tema, a sua organização interna procurando mostrar um dia na vida da cidade ao mesmo tempo que mostrava como podia ser a vida inteira dos lisboetas, desde que nasciam até que morriam 11 era semelhante a outros filmes estrangeiros contemporâneos como Berlim, A Sinfonia de uma Capital (realizado por Walter Ruttmann em 1927 e estreado em Lisboa nesse mesmo ano) ou até mesmo O Homem do Aparelho de Filmar (realizado por Dziga Vertov em 1929), para citar apenas dois títulos das várias sinfonias urbanas que constituíram por esses anos um verdadeiro subgénero documental que marcou decisivamente a história do documentário europeu 12. Tendo beneficiado de uma mais ampla distribuição do que o filme de Oliveira, Lisboa gerou também uma enorme polémica que se centrou, justamente, no modo como o filme representava a cidade. Segundo as vozes mais críticas, da opção salutar de filmar a Lisboa-típica, Leitão de Barros tinha deslizado para a tentação já mais censurável de mostrar a Lisboa-suja, a Lisboa-vigarista, a Lisboa-cano-de-esgoto dos bairros típicos, mas pobres, como Alfama, cheios de crianças de pé descalço e de gatos vadios 13. Igualmente indesejáveis, os vários planos que mostravam o comportamento desajustado dos saloios em Lisboa, como na sequência do manequim no Chiado, bem como os contos do vigário em que os mesmos caíam (e até muitos lisboetas, como na sequência da bilha quebrada). Estes planos foram considerados tão indesejáveis pelos críticos da época que levaram mesmo um deles a considerar a necessidade de se criar um género específico de filmes documentários de exportação, sublinhando assim a grande importância dada à construção da imagem cinematográfica da capital (vista enquanto símbolo do país) no estrangeiro 14. 11 Como indicava o próprio subtítulo do filme: como se nasce como se vive como se morre em Lisboa. 12 No caso da primeira obra de Manoel de Oliveira Douro podemos ir mais longe e afirmar que em Portugal se fez um dos mais belos exemplos de um dos sub-géneros europeus que marcaram essa gestação [do documentário] (as sinfonias urbanas que, mais ou menos directamente, foram realizadas por Ruttmann, Vertov, Cavalcanti, Ivens ou Vigo, e que foram também uma óbvia inspiração para a [Lisboa] Crónica de [Leitão de] Barros., José Manuel Costa, «Questões do documentário», Amore di Perdizione Storie di cinema portoghese, 1970-1999 (dir. Roberto Turigliato e Simona Fina) (Turim: Edições Lindau, 1999). 13 Crítica de Alberto Armando Pereira em Invicta Cine, a.viii, nº73, 3/5/1930. 14 Pode ser muito típico e muito característico o saloio ou qualquer outro tipo do folcklore nacional; pode haver estrangeiros interessados em questões etnográficas, que apreciem uma capa de honras Ler História, 48, 2005, 167-184 4

Em relação ao que seria desejável mostrar de Lisboa, Alberto Armando Pereira, um dos mais influentes críticos da época, apontava o esquecimento indesculpável que Leitão de Barros fizera da Lisboa-Moderna e da Lisboa-monumental, da Lisboaanúncio luminoso, da Lisboa-António Ferro, da Lisboa-Avenidas Novas, da Lisboa que eu adoro, da Lisboa que só tem de mau certos lisboetas 15. Por moderna entendia-se, não necessariamente as primeiras manifestações da arquitectura modernista daqueles mesmos anos, mas sim a Lisboa actual, a Lisboa limpa, arejada, a Lisboa Quirino da Fonseca 16, isto é, a cidade boulevardiana (ou que o citado vereador da edilidade tentara continuar a boulevardizar em passo acelerado) da Avenida da Liberdade, das Avenidas Novas e dos sucessivos projectos de ordenamento do Parque Eduardo VII, bem como a cidade empreendedora do Porto Marítimo e ainda a cidade da vida boémia e cosmopolita dos anúncios luminosos, dos cafés e dos clubes nocturnos do Chiado e dos Restauradores (aspectos de Lisboa poucos anos antes tão reprovados em Fátima Milagrosa). Confirmando que a cidade moderna era tanto um espaço urbanístico como um ideal de mundaneidade, a actriz Heloísa Clara não hesitou em incluir os cosmopolitas Estoris na lista de espaços lisboetas que deviam ter sido mostrados no filme: [Lisboa ] agradou-me plenamente, mas como tudo, pecou num pormenor importante. Decerto que se lembra da apresentação [promoção] de Lisboa como cidade moderna?! O que nos mostra Leitão não é a nossa Lisboa civilisada. Aí é que ele caiu Olhe, Leitão, poder-nos-ia apresentar magníficas vistas do Campo Grande, Estoris, as belas vivendas que aí existem, dos magníficos prédios que por lá abundam, um pouco da vida boémia da Capital e não esquecendo o movimento do nosso porto, que é um espectáculo sempre novo e sempre interessante., Girassol, nº2, 23/12/1930 (sublinhados meus). Cedendo às pressões dos críticos e dos distribuidores, Leitão de Barros aceitou fazer uma segunda versão do filme, verdadeiro filme documentário de exportação destinado ao mercado brasileiro, do qual foram excluídas as cenas consideradas menos edificantes para a imagem da cidade, substituídas por planos com alguns dos aspectos modernos/monumentais acima referidos 17. Entre as sequências mais mirandesas, ou uma carroça do Minho. Todavia para a massa popular, normalmente pouco instruída e muito menos civilizada, quaisquer destes tipos são motivos para uma galhofa pegada, para uma risota permanente. E assim, aquilo que nós admiramos, cairá no ridículo. Claro está, que se houver da parte do realizador, um savoir faire que o leve a seleccionar o modo de apresentar esses tipos, sem os tornar boçais e estúpidos, poder-se-há conseguir qualquer coisa de novo, sem ser ridículo, nem estapafúrdio ( ) Daqui a necessidade de criar o filme documentário de exportação, que escondendo todas as nossas misérias ou rotineirismos, nos vá glorificar e elevar nos países estranhos., «O documentário nacional» editorial do nº104 (a.viii) de 31/1/1931 da revista Invicta Cine (sublinhado meu). 15 Alberto Armando Pereira, op. cit. 16 Declarações de Aníbal Contreiras sobre o seu filme A Vida do Soldado (1930), documentário ficcionalizado sobre a vida militar que, segundo o realizador, fora feito para mostrar a toda a gente a Lisboa actual, a Lisboa limpa, arejada, a Lisboa Quirino da Fonseca, que Leitão de Barros se esqueceu de nos apresentar no seu documentário Lisboa, Jornal de Cinema, a.iii, nº5, 30/3/1932. 17 Cf. M. Félix Ribeiro, na altura crítico de cinema, relatou o visionamento de imprensa da versão brasileira em Filmes, figuras e factos do cinema português, 1896-1949 (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1983), 263: ( ) foi feita uma versão para o Brasil, sendo extraídos alguns momentos que poderiam, virtualmente, naquele País, ser vistos de forma desprestigiante ou menos própria. Em sua substituição foram introduzidos imagens focando aspectos documentais da cidade ( ) Dentro dos propósitos havidos, saíram o sketch do conto do vigário no Terreiro do Paço, a sequência da bilha quebrada ( ) e mais alguns momentos, substituídos por vistas da Avenida da Liberdade, Basílica da Estrela, etc. A revista Kino informa que os novos planos e os cortes dos planos indesejáveis foram executados por Salazar Dinis e António Lopes Ribeiro que recusaram, porém, que os seus nomes fossem creditados no genérico da versão para o Brasil (Kino, nº12, 17/7/1930 e nº13, 24/7/1930). Ler História, 48, 2005, 167-184 5

criticadas e por isso cortadas da versão brasileira encontram-se a encenação de um conto do vigário a um saloio recém-desembarcado no Terreiro do Paço; outro conto do vigário pelo qual uma velha e uma criança exploravam a compaixão dos transeuntes face a uma criança chorando por ter supostamente quebrado uma bilha e temendo a sova do pai quando chegasse a casa; um grupo de saloios evitando a custo o trânsito automóvel frente no Rossio (citação clara de um plano equivalente do Aurora de Murnau (1927), filme-arquétipo da oposição campo-cidade e sinal de que a mesma era uma tendência internacional e de modo algum uma particularidade do cinema português); outro saloio apalpando um manequim numa modista do Chiado; o episódio do homem fatal pelo qual se apaixonam todas as mulheres que o vêem passar ao volante do seu automóvel; os célebres gatos vadios e os garotos de pé descalço em Alfama; os rebanhos de carneiros nas Avenidas Novas e os bandos de ardinas no Chiado; o mendigo na Baixa; ou ainda as peixeiras no Cais do Sodré e os seus filhos nus convivendo com gatos e restos de sardinhas nas canastras fazendo de berços improvisados 18 No final de 1930, as reacções à distribuição do filme nas colónias portuguesas em África confirmaram os piores receios em relação à desadequação do filme a públicos estrangeiros ou, neste caso, e o que era ainda mais grave, em relação à projecção colonial de Lisboa como metrópole imperial. A revista Girassol (dirigida pelo actor Erico Braga, o homem fatal de Lisboa...) publicou o seguinte relato do projeccionista responsável pela exibição do filme em África : Você não imagina. A primeira vez, foi um escândalo. Ninguém esperava por aquilo. Os brancos esperavam monumentos, museus, o Tejo, os Jerónimos, a Torre de Belém. Os pretos esses, esperavam verdadeiros contos de fadas. E, afinal, não viam senão gatos vadios Os governadores telegrafaram logo uns aos outros. Que o filme era perigoso, que prejudicava o prestígio nacional, o diabo Reclamei, mas disseram-me assim: Os pretos fazem de Lisboa uma ideia grandiosa. Disso depende a força do nosso império colonial. Revelar uma Lisboa fadista e pitoresca é arruinar esse castelo de cartas. 19 Por tudo isto, poder-se-á dizer com justiça que o maior mérito de Lisboa, Crónica Anedótica (mérito que na época da estreia não podia ter-lhe sido reconhecido e que, na verdade, muito contribuiu para a má recepção do filme) foi o da centralidade da representação da vida nas ruas de Lisboa aspecto tanto mais importante quanto, no cinema português das décadas seguintes, a rua seria um espaço sistematicamente elidido das representações da capital. No filme de Leitão de Barros, o destaque dado à rua lisboeta permitiu mesmo uma das raras representações dramáticas do mundo do trabalho no cinema português: a sequência do acidente sofrido por um operário do Arsenal (actor Alves da Cunha) e, logo depois, do almoço dos operários com as suas famílias sentados no passeio, frente às oficinas 20. Apesar da sua atribulada vida comercial e discutível fortuna crítica (à época), é inegável que Lisboa, Crónica Anedótica inaugurou um período de representação continuada do espaço urbano nas décadas seguintes do cinema português e muito 18 Nem a caução literária da citação de versos de Cesário Verde sobre as varinas lisboetas nos intertítulos ( embalam nas canastas os filhos que depois naufragam nas tormentas ) valeram a estas sequências. 19 «Em Africa os pretos não gostaram do filme Lisboa», por A.B., Girassol, nº2, 23/12/1930. 20 Luís de Pina foi ao ponto de consider esta cena como um «pedaço do melhor cinema social que se fez entre nós», Panorama do cinema português (Lisboa: Terra Livre, 1978). Ler História, 48, 2005, 167-184 6

particularmente num conjunto de filmes que alcançou então grande sucesso junto do público: as comédias à portuguesa dos anos trinta e quarenta. Mas a continuidade da representação de Lisboa no cinema não implicou necessariamente uma continuidade no modo como essa representação foi feita. É verdade que, por um lado, e tal como o filme de Leitão de Barros, as comédias à portuguesa continuaram a elidir quaisquer traços da Lisboa moderna, entendida como realidade urbanística e como conjunto de vivências mundanas e boémias. Mas por outro lado, e ao contrário de Lisboa, Crónica Anedótica, as comédias à portuguesa não mais voltariam a mostrar-nos as ruas lisboetas em toda a sua dureza. 4.Comédias à portuguesa Com efeito, ao longo dos anos trinta e quarenta, apesar de se continuarem a filmar várias adaptações literárias e outros filmes organizados em torno da oposição campocidade 21 vão surgir também várias comédias em ambiente urbano, quase sempre em Lisboa as chamadas comédias à portuguesa, de que são exemplos A Canção de Lisboa (Cottinelli Telmo, 1933), O Pai Tirano (António Lopes Ribeiro, 1941), O Pátio das Cantigas (Francisco Ribeiro, 1942), O Costa do Castelo (1943), A Menina da Rádio (1944), O Leão da Estrela (1947) e O Grande Elias (1950, de Arthur Duarte, como os três últimos). O motor narrativo destas comédias é normalmente o desejo de ascensão social das personagens, que pertencem à pequena e média burguesia urbana e cujos esforços de mobilidade social resultam sempre frustrados apesar disso, daí não resultam especiais motivos de revolta, mas antes uma confirmação fatalista das hierarquias sociais pré-existentes 22. Apesar de se desenrolarem quase exclusivamente em Lisboa, é muito interessante notar que as comédias à portuguesa dos anos trinta e quarenta quase não contêm cenas cuja acção se passa na rua 23. Espaço das relações impessoais por excelência, a rua é substituída pelo pátio, pelo interior do bairro, pela loja e pelo interior doméstico espaços onde todos se conhecem e onde todas as relações pessoais eram mediadas e constrangidas pelos omnipresentes vizinhos e familiares. Nestes filmes, a rua é então representada como um espaço de insegurança e de instabilidade, como o demonstra a sua escolha para cenário de assaltos e desacatos (como, por exemplo, em A Canção de Lisboa: é no meio da multidão da Estação do Rossio que as tias de Vasco são roubadas), ou ainda n O Pai Tirano (é na rua que Chico e Artur lutam por causa de Tatão) 24. Pode por isso dizer-se que destas comédias urbanas resulta a recuperação da oposição campo-cidade já patente no cinema mudo, transferida agora para um espaço urbano que se assemelha, contudo, ao mundo rural, sobretudo pelo seu fechamento espacial e social e pela reiteração enfática dos inconvenientes de toda e qualquer forma de mobilidade social e dos vícios das formas de sociabilidade urbana. 5.A Revolução de Maio 21 Como, novamente, As Pupilas do Senhor Reitor (Leitão de Barros, 1935) e A Rosa do Adro (Chianca de Garcia, 1938), mas também Aldeia da Roupa Branca (Cottinelli Telmo, 1938) ou Maria Papoila (Leitão de Barros, 1937). 22 Nesta secção, apoio-me na análise das comédias à portuguesa feita por Paulo Granja em «A comédia à portuguesa, ou o máquina de sonhos a preto e branco do Estado Novo», in O cinema sob o olhar de Salazar (coord. Luís Reis Torgal) (Mem Martins: Círculo de Leitores, 2000), 194-233. 23 A rua, onde os indivíduos estranhos se encontram e desencontram, perdendo-se na multidão anónima da cidade, raramente se vê. E quando se vê ou a ela se faz alusão é para dar dela uma imagem negativa, Granja, op. cit., 206. 24 Retomo os exemplos avançados por Granja, op. cit., 206-207. Ler História, 48, 2005, 167-184 7

Esta nova e paradoxal invisibilidade da cidade de Lisboa em filmes cuja acção nela se desenrola estende-se aos grandes projectos arquitectónicos e urbanísticos especificamente modernistas que se desenvolveram na capital naqueles mesmos anos e de que seriam exemplo o cinema Capitólio projectado por Cristino da Silva em 1926 (inaug.1931), o Pavilhão do Rádio do Instituto de Oncologia de Carlos Ramos (inaug. 1933) ou ainda o novo Éden-Teatro de Cassiano Branco (inaug. 1937) e os projectos da Casa da Moeda por Jorge Segurado (inaug. 1936) e da Igreja de Nossa Senhora de Fátima por Pardal Monteiro (inaug. 1938) 25. A única excepção é a grande intervenção do Instituto Superior Técnico e área envolvente (incluindo o Instituto Nacional de Estatística (inaug.1935) e o bairro social do Arco de Cego), uma das primeiras instrumentalizações em larga escala da arquitectura modernista pelo regime salazarista. O IST e o INE surgem numa sequência decisiva do filme A Revolução de Maio de António Lopes Ribeiro (1937), não por acaso uma das duas únicas produções cinematográficas (de ficção) financiadas directamente pelo Estado Novo 26. O filme conta a história de um conspirador que acaba por se convencer dos benefícios do regime depois de ver o Bairro Social do Arco do Cego e de consultar os dados sobre as realizações do Estado Novo no Instituto Nacional de Estatística. Nesta obra de propaganda, e na sequência fulcral da visita ao INE em particular, é notória a eficácia monumental dos edifícios (exemplo claro da interpretação monumental da arquitectura modernista pelo regime), cuja visita e experiência sensorial pelo protagonista correspondem ao exacto momento da sua conversão ao regime. 6.Cinema novo Relação muito diferente com a arquitectura e os espaços públicos da cidade têm os filmes (ou as personagens dos filmes) Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963) e Belarmino (Fernando Lopes, 1964), frequentemente apontados como obras de arranque do movimento de renovação do cinema português que, à semelhança de várias outras cinematografias europeias contemporâneas, ficou conhecido como cinema novo 27. Definível como movimento de resistência não apenas cinematográfica, mas também político-social ao regime autoritário, as obras do cinema novo deram-nos uma nova imagem da cidade e dos lisboetas, não só porque 25 Podem encontrar-se pistas para a história urbanística da cidade, e em especial da Lisboa modernista, em Lisboa: Urbanismo e arquitectura (Lisboa: Livros Horizonte, 1997 4ªed. revista e actualizada) e O modernismo na arte portuguesa (Lisboa: ICLP, 1991 3ª ed.), de José-Augusto França; e também em «Arquitectura portuguesa do século XX», Ana Tostões, in História da Arte Portuguesa (dir. Paulo Pereira) (Lisboa: Temas e Debates, 1995), vol.3, 507-591 e «Arquitectura Moderna Portuguesa: os Três Modos», da mesma autora, in Arquitectura Moderna Portuguesa, 1920-1970 (Lisboa: IPPAR, 2004), 105-155 (bem como outros artigos nesta mesma obra, incluindo a cronologia estabelecida por João Paulo Martins, 157-171 e as fichas de obras descritas por Ana Tostões, Sandra Vaz Costa, Rute Figueiredo e Deolinda Folgado, 173-295). 26 A outra seria O Feitiço do Império (António Lopes Ribeiro, 1940). 27 Movimento que também ficou associado à actividade do produtor António da Cunha Telles, responsável pela produção dos dois filmes referidos no texto, as suas duas primeiras produções, seguidas de Catembe (Faria de Almeida, 1964), Domingo à Tarde (António de Macedo, 1965), Mudar de Vida (Paulo Rocha, 1966) e O Cerco (primeira experiência de realização do próprio Cunha Telles, 1969). Em 1967,a produção de 7 Balas para Selma (António de Macedo), marcaria, porém, uma ruptura conflituosa com os realizadores do cinema novo e o final (temporário) da actividade de Cunha Telles como produtor. Sobre o cinema novo, cf. «Cinema Novo Português: Revolta ou Revolução», de João Bénard da Costa, in Cinema Novo Português, 1960/1974, AAVV (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1985), 14-44; «Cinema novo português: crise e consagração», de Miguel Cardoso, História, (Lisboa: a.xxvi (III série), nº47, Julho/Agosto de 2002), 38-45; e ainda «Uma margem no centro: a arte e o poder do novo cinema», de Paulo Filipe Monteiro, in O cinema sob o olhar de Salazar, Luís Reis Torgal (coord.) (Mem Martins: Círculo de Leitores, 2000), 306-338. Ler História, 48, 2005, 167-184 8

filmaram bairros novos como Alvalade, Av. Roma e Av. Estados Unidos da América, mas também, e sobretudo, porque regressaram à rua e problematizaram relações sociais a partir destes novos espaços urbanos o que nos leva a sugerir que a actualização da imagem da cidade e das relações sociais urbanas patentes nestes filmes constituem mesmo um dos principais aspectos definidores da sua actualização cinematográfica internacional 28. Sobre o filme de Fernando Lopes, escreveu Nuno de Bragança que, para obter a expressão fiel de um Belarmino apertado pela vida, [o realizador] decidiu apertar com ele 29, o que se torna óbvio não apenas no cerco que a cidade e o mundo do boxe lhe fazem (com tantos planos que literalmente engaiolam o pugilista), como no próprio dispositivo cénico da entrevista de Baptista Bastos, na qual Belarmino surge não apenas acossado pela agressividade das perguntas do entrevistador, mas também verdadeiramente enclausurado pelo aparato técnico do filme e pela própria equipa de cinema que Fernando Lopes, muito significativamente, faz questão de não esconder durante a sequência da entrevista. Também das personagens de Os Verdes Anos se poderia dizer que foram apertadas por Paulo Rocha (e por Nuno de Bragança, autor dos diálogos do filme), para que dos apertos das suas vidas tivéssemos uma imagem mais vívida. Este modo opressivo de encenar a cidade é uma novidade cinematográfica absoluta no cinema português, como notou João Bénard da Costa: «a visão de Portugal, ou de Lisboa, como espaço claustrofóbico, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza (numa morte branda) é pela primeira vez dada no filme de Rocha, visto desse ângulo retrato mais político dum país que nos mata longamente do que qualquer visão sumária dum regime que mais sabiamente do que qualquer outro com esse país se identificou.» 30 Neste contexto, a sequência da Cidade Universitária tem especial importância, não apenas na economia narrativa de Os Verdes Anos, mas também como ponto de confluência da relação simbólica dos protagonistas com a cidade e com o próprio regime, aqui representado noutra grande interpretação monumental da arquitectura modernista. Mas esta sequência em particular demonstra uma relação com este tipo de arquitectura de regime absolutamente nos antípodas da sequência d A Revolução de Maio atrás referida: em vez de funcionarem como catalizadores da integração no regime (como a acrópole do Técnico), os edifícios da Cidade Universitária de Os Verdes Anos acabam por funcionar, isso sim, como metáfora da opressão e da exclusão social das personagens, que são atraídas para junto dos edifícios mas que, muito significativamente, não podem neles entrar e parecem reduzidas a vê-los apenas a partir do exterior 31. 28 Contornando as dificuldades de relacionar cinematograficamente o cinema novo português e a Nouvelle Vague francesa, por exemplo, é no entanto difícil deixar de comprovar uma vontade de sair à rua comum a ambos os movimentos, justificável, senão ideológica ou artisticamente, pelo menos pelas novas possibilidades logísticas trazidas por novos equipamentos portáteis (imagem, som e iluminação). «À semelhança do que havia sido ensaiado pela nouvelle vague francesa, Cunha Telles contorna as regras do jogo e, aliando uma vontade de renovação estética à necessidade de baixar os custos, decide sair com a câmara à rua e investir em técnicos e actores jovens, ainda sem provas dadas ( )», Miguel Cardoso, op. cit., 41 (a propósito justamente da rodagem de Os Verdes Anos). 29 «Acerca de Belarmino», de Nuno Bragança, Vértice, Janeiro de 1965 (republ. in José Navarro de Andrade (coord.), op. cit., 116-118). 30 João Bénard da Costa, op.cit, 26. 31 «Eles vão passear para ali porque é um sítio vazio ao Domingo, e onde os namorados têm portanto espaço de sobra para discutirem os seus problemas. É natural que eles, diante de desenhos tão estranhos [decorações de Almada Negreiros na fachada da Faculdade de Direito], se esqueçam aos poucos da Ler História, 48, 2005, 167-184 9

O estatuto das personagens como dominados é reforçado, ainda nesta sequência, não apenas pela sua mise-en-scène (um constante campo-contra-campo entre os actores e as figuras de magistrados representadas nos painéis de Almada), mas também pela passagem da «Epístola de S. Paulo aos Romanos» (XIII:1-3) que chama a atenção do protagonista (e a nossa), mas que o mesmo, sintomaticamente, não consegue ler: «(1) Toda a alma esteja sujeita às potestades superiores; porque não há potestade que não venha de Deus; e as potestades que há foram ordenadas por Deus. (2) Por isso, quem resiste à potestade resiste à ordenação de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos a condenação. (3) Porque os magistrados não são terror para as boas obras, mas para as más. Queres tu, pois, não temer a potestade? Faze o bem, e terás o louvor dela». 32 A importância da cidade de Lisboa como, simultaneamente, agente e contexto da subordinação social e da humilhação pessoal das personagens do cinema novo tem um desenvolvimento exemplar no filme Belarmino, de Fernando Lopes. Filmado como uma espécie de fotojornalismo de rua 33, o filme de Fernando Lopes segue o pugilista Belarmino Fragoso numa Lisboa que apenas lhe concede sobreviver e que, como ele, como todo o cinema novo, vai revelando uma triste verdade a cada nova mentira: eu fome, fome, não tenho; tenho às vezes é vontade de comer. Belarmino é, pois, um filme cuja personagem (para mais, verídica) trava um combate com um décor, essa portentosa Lisboa que só pode levá-lo ao K.O. 34, mas que nunca leva Belarmino, um sobrevivente nato, definitivamente ao tapete «Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante/ e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.» (Alexandre O Neill, poema Belarmino ). Metáfora da prisão social da vida lisboeta, ou de algumas classes sociais lisboetas (portuguesas), Belarmino contrasta os cafés onde o pugilista revela a sua solidão e as fachadas da Mouraria diante das quais distribui piropos às mulheres que vêm das lojas na Baixa, com os planos das outras pessoas que se divertem no Hot-Clube, cujo ambiente sofisticado e desafogado é sublinhado pela música, pelos pares dançantes e pela longa panorâmica de uma fachada moderna (no logradouro do Hot-Clube). Conhecendo a influência confessa da poesia de Mário Cesariny em Belarmino, é tentador ver esta sequência do filme como uma variação de discussão para olharem para eles. Isso por um lado. Por outro, a sequência tem um certo valor, digamos, simbólico, porque é aquele o local onde os jovens portugueses aprendem. Há uma certa relação entre o saber e a juventude, de que ele, por exemplo, está privado. Ele nunca pôde estudar, não é verdade? Por outro lado, e é muito complexo, todos aqueles senhores, dos desenhos do Almada, têm um certo ar hierático de deuses. Eles estão muito atrapalhados, têm problemas extremamente mesquinhos, de um quarto, da mãe dela, e não sei quê. Estão a falar de coisas muito mesquinhas, e há aquela gente toda ao mesmo tempo ali. Eu pergunto a mim mesmo, faço esta pergunta que é uma espécie de exclamação dentro do filme: como é que havendo tanta gente com tanta ciência estes pobres diabos estão aqui sem saber nada? Porque é que não se ajudam? Há uma situação em que os deuses estão calados, em que a Pátria portuguesa importante está calada, enquanto aqueles dois pobres diabos estão ali a debater.», Paulo Rocha, «Como quem atira uma bomba» (entrevista), in Paulo Rocha. O rio do ouro, Jorge Silva Melo (org.) (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1996), 56-57. Várias outras sequências apontam igualmente para esta exterioridade dos protagonistas em relação à cidade como, por exemplo, o passeio nos arrabaldes rurais da Av. Estados Unidos da América e da Av. Roma que termina com uma discussão junto a um charco, com a silhueta apalaçada da Praça do Areeiro como pano de fundo. 32 Trad. João Ferreira de Almeida. 33 Fernando Lopes sobre a fotografia de Augusto Cabrita para Belarmino, declaração tomada de «Entrever Fernando Lopes» (entrevista), in Fernando Lopes por cá, José Navarro de Andrade (coord.) (Lisboa: Cinemateca Portuguesa, 1996), 72. 34 João Bénard da Costa, op. cit., 27. Ler História, 48, 2005, 167-184 10

poemas como Louvor e simplificação de Álvaro de Campos (fragmento), referido expressamente por Fernando Lopes a propósito da representação de Lisboa neste filme: «Penso que a questão é esta: a gente certa gente sai para a rua,/cansa-se, morre todas as manhãs sem proveito nem glória/e há gatos brancos à janela de prédios bastante altos!/contudo e já agora penso/que os gatos são os únicos burgueses/com quem ainda é possível pactuar /vêem com tal desprezo esta sociedade capitalista!» (Mário Cesariny, Nobilíssima Visão) 35. 7.Conclusão Nos anos vinte, os filmes organizados em torno da oposição moral campo-cidade transformam esta última num espaço ausente ou então referido metonimicamente pela sua parte mais imoral: o clube nocturno. As comédias à portuguesa dos anos trinta e quarenta, por seu lado, se transformaram, é certo, o espaço urbano (lisboeta) no seu principal espaço cénico, filtraram porém a sua representação através de ambientes domésticos e de comunidades de vizinhança que reduzem a cidade a um aglomerado de aldeias onde vigora a mesma moral conservadora e o mesmo imobilismo social das comunidades rurais idealizadas do cinema mudo. Entre estes dois períodos, contudo, deve assinalar-se a existência de um pequeno conjunto de documentários sobre cidades, em fase com um movimento internacional idêntico, de que é exemplo paradigmático o filme Lisboa, Crónica Anedótica, importante momento de suspensão da invisibilidade da capital no cinema português e primeira vez que uma cidade assume estatuto não só de personagem, mas também de protagonista de um filme português. A incompreensão dos costumes citadinos pelos saloios, bem como a exibição da pobreza e de outros tantos desajustes em relação à representação de um então desejado ideal de mundaneidade e de grandiosidade de uma capital imperial garantiram a depreciação crítica do filme de Leitão de Barros, mas constituíram também um fabuloso, embora efémero, exemplo de uma representação urbana única, assente na rua e em determinados tipos sociais e sociabilidades urbanas como não voltaríamos a ver até ao advento do cinema novo. Deve, contudo, fazer-se uma importante ressalva a esta conclusão e que diz respeito ao cinema não-ficcional, excluído do universo de análise deste texto apenas pela economia narrativa do mesmo. Seria, aliás, muito interessante ter em conta o corpus de não-ficção (documentários e jornais de actualidades) entre os anos vinte e sessenta e ver até que ponto o mesmo funcionaria como uma espécie de corrector das reflexões aqui sugeridas sobre a invisibilidade da cidade de Lisboa. Referindo-se em grande medida à vida pública da cidade (documentando paradas, procissões, manifestações, revoltas, Entrudos e outros festejos), a não-ficção centra-se na rua e na multidão, ambos os elementos ausentes do cinema ficcional contemporâneo (e, consequentemente, deste texto) excepção feita, novamente, ao filme Lisboa, Crónica Anedótica 36. 35 Para lá de Alexandre O Neill, Fernando Lopes confessa a influência decisiva de Mário Cesariny no modo como Lisboa é retratada em Belarmino: «E o Mário Cesariny foi vital para Belarmino; o filme deve-lhe muito na maneira como olha Lisboa. E nunca teria filmado a cidade como filmei se não tivesse lido o Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos. Coisas como a história dos Pombos sobre Lisboa ou do Rato do Parque Eduardo VII [ A um rato morto encontrado num parque ], marcaram muito o filme», Fernando Lopes, entrevista cit., 74. 36 Seria também muito interessante verificar como a transição para o Estado Novo se reflectiu numa maior organização das cerimónias públicas filmadas: as multidões transbordantes da I República transformam-se em multidões orquestradas e arregimentadas que contribuem para a militarização da Ler História, 48, 2005, 167-184 11

Belarmino e Os Verdes Anos fazem o cinema português regressar a Lisboa e às suas ruas e a uma cidade agora não apenas moderna mas inevitavelmente modernista: como nos novos bairros residenciais da zona oriental da cidade ou nos projectos de regime como a Cidade Universitária. No entanto, e ao contrário dos raros assomos da cidade moderna/modernista nos filmes portugueses das décadas anteriores, a modernidade social e arquitectónico-urbanística da cidade é encenada (por realizadores como Paulo Rocha e Fernando Lopes) como palco de um conflito social que se exprime cinematograficamente pela segregação ostensiva dos protagonistas dos espaços e das vivências da cidade burguesa. No princípio do fim da sua longa invisibilidade cinematográfica, Lisboa era uma cidade-metáfora da claustrofobia socio-política da sociedade portuguesa no início dos anos sessenta onde, tal como nas aldeias do cinema mudo e nos pátios das comédias à portuguesa, e como escrevia então Ruy Belo a propósito de todo o país, não acontece nada. cidade na não-ficção salazarista. A importância desta questão foi-me apontada pela minha colega Joana Pimentel. Ler História, 48, 2005, 167-184 12