REVISTA RECORTE Revista do Mestrado em Letras: Linguagem, Discurso e Cultura ISSN AS MUITAS ÁGUAS DE UM RIO

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REVISTA RECORTE Revista do Mestrado em Letras: Linguagem, Discurso e Cultura ISSN 1807-8591 AS MUITAS ÁGUAS DE UM RIO Luciana Marino do Nascimento * PPGL-Universidade Federal do Acre ABSTRACT: In This paper we shall show the dialogues between two productions historically distant, the short story A Terceira Margem do Rio, by Guimarães Rosa, and the music of Caetano Veloso and Milton Nascimento. Em situação de poço, a água equivale a uma palavra em situação dicionária: isolada, estanque no poço dela mesma, e porque assim estanque, estancada; e mais: porque assim estancada, muda e muda porque com nenhuma comunica, porque cortou-se a sintaxe desse rio, o fio de água por que ele discorria. João Cabral de Melo Neto. A linguagem nomeia o mundo e é elemento construtor da realidade, permitindo a circulação de idéias, a comunicação seja ela verbal ou não-verbal. Segundo Bakhtin, mais do que instrumento de comunicação, a linguagem é também instrumento de interação (BAKTHIN, 1999, 36). É, pois, no processo de interação pela linguagem que se constroem os textos, no mais das vezes em diálogo entre si. No interior da cultura, as produções circulam e se retomam, formando uma grande teia e é por meio dessa teia que os textos verbais e não verbais podem estabelecer a intertextualidade entre si. Diante do exposto, ressaltamos que a epígrafe desse texto não é gratuita, assim como o ato de escrever também não o é e mais ainda a epígrafe, forma de inserção de outro texto dentro de um texto, conferindo assim à escrita um caráter intertextual (PAULINO, 1995, 15). Dessa forma, o rio citado por Cabral, cuja sintaxe foi cortada, nos remete para o rio de Guimarães Rosa, mais especificamente de seu conto A Terceira Margem do * Doutora em Teoria e História Literária pela UNICAMP. Pós-Doutora em Ciência da Literatura pela UFRJ. Professora dos cursos de Graduação e Mestrado em Letras da UFAC.

Rio 1, atualizado, em nossa contemporaneidade por Milton Nascimento e Caetano Veloso, com a composição A Terceira Margem, cuja sintaxe é cortada e recortada diversas vezes, quer seja pelo próprio título como pelo movimento reverberador da narrativa rosiana, que é iluminada pelos versos da citada composição. A composição de Caetano Veloso e Milton Nascimento se inicia com os sons ocos bem semelhantes aos sons produzidos por toque em um vaso de cerâmica, que por seu turno, nos transportam para um cenário composto por uma mata e um rio, com seus ruídos e silêncios. A batida seca e ritmada se estende na voz do cantor, reproduzindo, em tom mais alto, com o acompanhamento das repetições, sons que guardam semelhanças com os ecos dos sons da mata. A interpretação da música também contou com a participação do grupo mineiro Uatik, sendo que esse grupo tem se dedicado ao longo dos anos de carreira à pesquisa e ao trabalho de criação com sons da natureza, utilizando instrumentos de madeira do tipo rústico: Oco de pau que diz: Eu sou madeira, beira Boa, dá vau, triztriz Risca certeira Meio a meio o rio ri Silencioso, sério Nosso pai não diz, diz: Risca terceira Água da palavra Água calada, pura Água da palavra Água de rosa dura Proa da palavra Duro silêncio, nosso pai. (VELOSO, Caetano). Os primeiros versos da música de Caetano e Milton se referem ao silêncio característica peculiar do pai, personagem do conto de Guimarães Rosa, bem como ao plano de construção da canoa, a partir de madeira resistente, que navegue por um rio rosiano e que deveria, portanto, ter grande durabilidade, segundo informações do próprio narrador do conto. O conto de Guimarães Rosa tem início com a descrição de um pai, por meio da memória de um filho, que tenta recuperar os motivos que levaram seu pai a encomendar a construção de uma canoa, despedir-se da família e seguir viagem pelo rio, talvez na 1 A Terceira Margem do Rio inseri-se em Primeiras histórias, de 1962. A música de Caetano Veloso e 2

busca de sua terceira margem. Apesar do projeto um tanto inusitado, o pai é descrito como um sujeito que possuía traços característicos comuns aos padrões vigentes daquela comunidade: Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa. Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. (ROSA, 1988, 32). Decerto, mais do que a preocupação em descrever o pai, as palavras do narrador nos dão indício de que as ações desse pai se davam no nível do indizível; do não-dito, pois o pai era quieto, a mãe era quem administrava a casa e a educação dos filhos, sendo que a sua partida para a travessia rio acima, rio abaixo, ao encontro de seu próprio eu, não foi envolta por despedidas, nem muitas palavras, mas sim, envolta pelo silêncio: Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa. (ROSA, 1988, 32). A travessia infinita do pai num rio que metaforicamente, está representado por três margens que nos remetem à origem, ao destino e à travessia, cujo sujeito deixou de ser margem para tornar-se rio: Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar (ROSA, 2001, 80). De acordo com Silva e Cruz, essa travessia é: A síntese de partida e chegada, início e fim, não é o meio Milton Nascimento é de 1992 e está presente no álbum Circuladô, V. I, faixa 10. 3

estático e racional, mas, sim, fluido e ilógico, que promove a dinâmica e diversidade da substância da realidade. É a mobilidade, a travessia, que instaura o real (SILVA e CRUZ, 2009, 51). Essa mesma travessia do pai do narrador rosiano, na composição de Caetano e Milton é encenada entre sons de paus ocos e uma sugestiva imagem de águas. O rio e seu movimento são expressos por um canto: "Meio a meio o rio ri/ silencioso, sério". Nesse canto do rio, segundo Sampaio, uma madeira dura risca o desenho da canoa no silêncio nas águas, sendo que nesse canto das águas, a palavra se faz margem ao expressar o silêncio. (SAMPAIO, 2009, 42). Ao longo da música, as árvores da vida, rio e canoa, palavra e silêncio, são colocados numa direção polifônica, nas quais os músicos em contraponto rítmico compõem uma passagem pelas águas que riem, criando uma sequência caudalosa de palavras, que vão passeando das margens do rio às margens da palavra e ao espaço do silêncio. Desse espaço, emerge a figura silenciosa de um pai: Margens da palavra entre as escuras duas margens da palavra clareira, luz madura Rosa da palavra puro silêncio nosso pai. (VELOSO, Caetano). O silêncio sobre o destino do pai é incorporado à rotina da vida dos que ficaram. A família se adaptava à nova realidade, criando novas formas para o seu cotidiano e assim, os nascimentos e as mortes demarcam o tempo do desaparecimento do pai do narrador. No conto, o filho, está aprisionado ao tempo do relógio e ao princípio de continuidade. Para ele, o tempo corre numa fatalidade devoradora de tempo vivido. O pai, no seu navegar infinito, desordena o tempo cronológico: De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos sem fazer conta do se-ir do viver (ROSA, 1988, 34. grifo nosso). O sujeito do conto rosiano incorpora a imagem do eremita que se despoja dos hábitos de higiene e das preocupações cotidianas com o vestir ou o alimentar-se: (...) Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virava cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de um bicho, conforme quase nu, mesmo 4

dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia. (ROSA, 1988, 35). A culpa atravessa a vivência dos que ficaram, mas nem todos se calam diante do silêncio da terceira margem e era o filho quem cuidava de levar até a margem do rio, os víveres que a mãe deixava das sobras da alimentação da família, ao que tudo indica, ela o fazia propositalmente, por deixar de forma facilitada, conforme nos mostra o narrador: Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a ideia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. (ROSA, 1988, 35). É, pois, no estado de invisibilidade que o pai deseja permanecer. Segundo informações do narrador, ao longo do conto, tentou-se fotografar o pai, tanto os repórteres como a irmã do narrador foram até à beira do rio, mas o pai não apareceu. Portanto, é por meio da invisibilidade, do silêncio e imerso no meio líquido que o pai prossegue na sua travessia, que é assim descrita por Caetano e Milton: Meio a meio o rio ri Por entre as árvores da vida O rio riu, ri Por sob a risca da canoa O rio riu, ri O que ninguém jamais olvida Ouvi, ouvi, ouvi A voz das águas Asa da palavra Asa parada agora Casa da palavra Onde o silêncio mora Brasa da palavra A hora clara, nosso pai. (VELOSO, Caetano). Sobre essa simbologia da travessia do rio, Bachelard, em seu livro A água e os sonhos nos mostra a imagem da morte associada à viagem: "morrer é verdadeiramente 5

partir, e parte bem, corajosamente, nitidamente, quando se segue o fluir da água, a corrente do largo rio. Todos os rios desembocam no Rio dos mortos" (BACHELARD, 1997, 77). Na música de Caetano Veloso e Milton Nascimento, essa travessia para a eternidade nos é mostrada pelo silenciamento da voz do pai em sua hora clara. Com o passar do tempo, todos vão embora e o narrador permanece sozinho. Talvez pelo fato de ter sido o único a quem o pai desejou levar consigo, ele sente-se preso ao tomento de tentar entender o porquê da opção de seu pai partir sem destino certo. Diante da atitude inusitada daquele pai, a família coloca em xeque a saúde mental deste, mas o narrador produz interessante reflexão, ao concluir que todos trazem consigo uma porção que excede os limites da lucidez. Assim nos diz o narrador: (...) Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. (ROSA, 1988, 37). Foucault em seu livro História da Loucura, afirma que a loucura somente toma um sentido se confrontada com a razão: A verdade da loucura é ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma força e como que uma necessidade momentânea a fim de melhor certificar-se de si mesma (FOUCAULT, 1997, 36). Há, portanto, no conto de Guimarães Rosa, um movimento de relativização dos valores universais, conforme atesta Marli Fantini: Nas paisagens rosianas, a fronteira, além de propiciar trocas linguísticas e culturais é a zona de sonhos, onde valores universalizantes e absolutos como lógica, verdade, origem se relativizam e sofrem o efeito desierarquização (FANTINI, 2003, 167-168). O narrador, semelhante a alguém iluminado por uma epifania, desvenda o enigma de sua angústia. Ao dirigir-se ao rio, sugere ao pai que troque de lugar com ele, para assumir seu papel. As palavras do narrador expressam as razões que estiveram no âmago da opção feita pelo pai: a necessidade de alguém que seja ouse estabelecer a ruptura em relação às regras convencionadas pela sociedade, sugerindo uma renovação: Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!... E assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo. (ROSA, 1988, 37). A oferta do filho para substituir o pai, torna-se algo importante para aquele pai, pois, ao se dispor a dar continuidade àquela missão um tanto inusitada, o filho mostra a compreensão da busca do conhecimento por algo novo, o que constitui a missão 6

paterna. Tal passagem nos remete a um diálogo de Rosa com o mito do barqueiro Caronte (BACHELARD, 1997). Tal qual como ocorreu com o barqueiro grego, citado por Bachelard, a liberdade só se concretizaria quando houvesse alguém, voluntariamente, permutasse de lugar. O pai aceita a proposição do filho, mas o narrador vacila, desistindo do empreendimento, demonstrando seu lado humano, portanto, frágil, amedrontado: Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto - o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. (...) E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão. (ROSA, 1988, 37). A fraqueza do filho ao não tomar o lugar do pai não desfaz a atitude de fidelidade deste com o seu genitor, mas permite uma continuidade da existência desse homem do rio, por meio da memória. Segundo Fantini, tal recusa apresenta um caráter simbólico: Conquanto pareça contraditório, é o gesto de recusa em ingressar nas águas turvas do pai que sanciona ao narrador o acesso às terceiras margens: águas da palavras, por cuja fluidez lhe é dada atravessar a bruteza do real e se inscrever nas margens do simbólico. (FANTINI, 2003, 170). Numa imagem final do conto, o narrador, tomado de imenso terror, pede perdão por não ter tido a coragem de tomar do lugar do pai, demonstrando sua impotência diante da possibilidade de deixar de ser margem para torna-se rio e aventura-se na travessia, pois está preso a uma horizontalidade da vida cotidiana: Sou homem depois deste falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água, que não pára, de longas beiras: e, eu rio abaixo, rio afora, rio adentro o rio. (ROSA, 1988, 37). Ressalte-se que a imagem do artigo da morte proposto pelo narrador tem como cenário e testemunha, o rio calado. E é num completo silêncio sem palavras que os músicos e poetas Caetano Veloso e Milton Nascimento fecham a música A Terceira Margem : Hora da palavra Quando não se diz nada Fora da palavra 7

Quando mais dentro aflora Tora da palavra Rio, pau enorme, nosso pai. (VELOSO, Caetano). Assim, os poetas nos recontam a história de um homem sisudo, taciturno que, de uma forma peculiar, arquiteta seu destino, semeando a dúvida e causando espanto aos seus, construindo sua canoa que navegará pelo tecido das águas do rio. É da introspecção desse homem do povo sedento de conhecer e desvendar o mundo, que irrompe um ato de criação marcado pelo silêncio, numa eterna busca da terceira margem, criação de Rosa para atingir o insondável (FANTINI, 2003, 171). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BACHELARD, Gaston. O complexo de Caronte. O complexo de Ofélia. In: A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 73-96. (Coleção Tópicos). BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira. 9. ed. São Paulo: Hucitec, 1999. FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 1997. FANTINI, Marli. Guimarães Rosa: fronteira, margens, passagens. São Paulo: Ateliê Editorial/SENAC-SP, 2003. PAULINO, Graça; WALTY, Ivete (Org.). Intertextualidades. Belo Horizonte: Lê, 1995. ROSA, Guimarães. A Terceira Margem do Rio. In: Primeiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988. p. 32-37. SAMPAIO, Camila Pedral. Margens da palavra. In: Ciência e Cultura. vol.61 nº. 2, São Paulo, 2009. P. 41-44. SBPC, SILVA, Antonio Manoel dos Santos; CRUZ, Artur Ribeiro. O cineasta e a margem do rio imaginário. São Paulo: Arte & Ciência, 2009. VELOSO, Caetano. Circuladô ao Vivo. Universal, 1992. Faixa 10. 8