A hora da partilha: fragmentação familiar e manutenção de vínculos parentais na Zona da Mata da 1869-1872



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Transcrição:

A hora da partilha: fragmentação familiar e manutenção de vínculos parentais na Zona da Mata da 1869-1872 Solange Pereira da Rocha 1 Resumo: Este texto discute as relações familiares de escravos, na freguesia de Santa Rita, localizada na Paraíba, século XIX. Na discussão apresento as partilhas de heranças e as práticas de resistências construída por Camila, uma mulher escrava, para manter o laço familiar. Palavras-chave: família escrava, herança, Paraíba Abstract: This paper discusses the slave family, parishes of Santa Rita, in Paraiba, in the 19 th century. In the discusses to presente division the inheritance and the slave resistance practices of Camila, a slave woman, for remain family links. Key-words: slave family, inheritance, Paraíba O campo dos estudos históricos sobre a escravidão ampliou-se, nas duas últimas décadas, de forma significativa. As recentes pesquisas têm sido inspiradas por novas premissas, entre as quais a de que mulheres e homens escravizados são considerados sujeitos históricos que, mesmo com os limites e a violência imposta pelo sistema escravista, construíram uma lógica de sobrevivência e de resistência (LARA, 1995 e GOMES, 2003). Desta forma, variadas e complexas experiências históricas da escravidão têm sido recuperadas pela historiografia. Em tais estudos, há esforços em destacar as vivências, os significados, as estratégias e a lógica das ações de mulheres e homens escravizados no cotidiano, assim como se destacam também as diversas formas de resistência escrava, que vão além do conflito direto contra o sistema. Nessa nova fase da pesquisa historiográfica, inaugurada na década de 1980, acerca da população escrava, vários temas têm sido abordados, tais como: vida familiar, religiosidade, abolição, escravidão urbana, papel das mulheres, alforrias, entre outros, o que tem permitido a identificação de novas categorias sociais: forros, pardos e pretos livres, estes, uma camada crescente desde o final do século XVIII, em várias capitanias da América Portuguesa, inclusive, na capitania da Paraíba. 1 Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba. Agência Financiadora: Fundação Ford. 1

Este trabalho constitui parte de uma tese de doutorado 2 cujo objetivo principal foi de compreender como mulheres e homens negros (escravos e não-escravos) estabeleceram seus arranjos familiares e as estratégias elaboradas para (re)construírem os vínculos parentais em três freguesias da Zona da Mata da Paraíba oitocentista Cidade da Parahyba, Livramento e Santa Rita. Num dos capítulos investiguei as estratégias adotadas por mulheres e homens escravizados na Várzea do Paraíba, para se livrarem das agruras do cativeiro, ou mesmo minimizarem-nas. Nesse sentido, trago a história da escravizada Camila, que com a análise de variados documentos (inventários, fontes genealógicas e registros paroquiais), pude observar suas ações, para evitar a total fragmentação de sua família monoparental. Camila teve três filhos (Serafim, Archanja e Joana), sendo que ela e os dois primeiros pertenciam a Joaquim Mello Azedo, dono de um engenho na freguesia de Santa Rita, localizada nas proximidades da capital. Ela enfrentou duas transmissões de bens num período de três anos (entre 1869 a 1872), que resultou não só na separação de seus parceiros de escravidão como de alguns de seus filhos. Mas Camila não assistiu passivamente ao afastamento de seus familiares. O seu proprietário Joaquim Mello Azedo, dono do Engenho Poxi, faleceu no ano de 1869, como era comum se procedeu à divisão da herança. Esse dono de engenho casou três vezes e teve sete filhos e filhas que receberam herança, sendo do primeiro matrimônio, Filomena, Tereza e João, como no segundo não houve formação de prole, os outros quatro, Maria, Francisca, Emília e Joaquim eram do terceiro casamento, cuja mãe era Porfíria Cabral de Mello. A inventariante de Joaquim Mello Azedo, sua viúva a mencionada Porfíria Cabral de Mello, após um mês da morte do marido, em 18 de outubro de 1869, abriu sua casa de residência, localizada no Engenho Poxi, na freguesia de Santa Rita, para a avaliação dos bens, cuja partilha se realizou no mês seguinte, em 28 de novembro. 3 Como bens de raiz, além do Engenho Poxi de Cima, havia mais quatro fazendas de gado (Cabeça de Boi, Peixe d Água, Maniçoba e Cutuvello), uma parte de terra com casa de telha no município de Independência (hoje cidade de Guarabira/PB) e um sobrado no centro da capital. A composição da população escrava do proprietário falecido era a seguinte: 2 3 A tese de minha autoria intitula-se Gente Negra na Paraíba Oitocentista: população, família e parentesco espiritual, defendida no Programa de Pós-Graduação em História na Universidade Federal de Pernambuco, no segundo semestre de 2007. A ser publicada pela Editora da UNESP com o mesmo título. Conforme inventário de Joaquim de Mello Azedo, 1869, guardado no Arquivo do Tribunal de Justiça da Paraíba, doravante ATJPB. 2

Número total de escravizados = 34 Crianças 09 (entre 0-14 anos) Sexo 06 meninos e 03 meninas Adultos 25 (a partir de 15 anos) Sexo Mulheres = 12 Homens = 13 Origem Crioulos = 28 Africanos = 06 Fonte: Inventário de Joaquim de Mello Azedo, 1869, ATJPB. Entre esses escravizados eram seis famílias nucleares, sendo três com filhos (total de 6 crianças e jovens); 2 famílias monoparentais (mães de 4 crianças) e 6 pessoas (3 mulheres e 3 homens) sem identificação de parentesco. No mês de novembro de 1869, ao se proceder a partilha dos bens oito legatários dividiram os bens de Joaquim de Mello de Azedo, resultando numa nova configuração se formou tanto entre os proprietários quanto entre os escravizados. Em atendimento à legislação de sucessão de propriedade, os filhos das primeiras núpcias do falecido (Filomena, Tereza e João) herdaram dez pessoas escravizadas e, como eles residiam em outras propriedades 4, inevitavelmente, os cativos foram apartados de seus parceiros de cativeiro e parentes. Coube à viúva a metade dos bens, entre os quais um total de dezessete escravos, sendo sete destinados aos seus filhos e filhas menores. Isso significava que, na prática, estes vinte e quatro escravizados continuariam a viver no Engenho Poxi e não haveria separação. Contudo, a mudança de proprietário, num curto prazo, repercutiria de forma negativa, nas vidas dos escravos e das escravas, como veremos adiante. Na redefinição jurídica de propriedade, as pessoas escravas atingidas foram as famílias monoparentais e as legítimas. No caso de Camila, ela ficou sob a posse de dona Porfíria Cabral de Mello, enquanto seu filho Serafim (quatro anos) foi legado ao órfão Joaquim e sua filha Arcanja (seis meses) para a órfã Francisca. O órfão Joaquim recebeu ainda como herança o garoto Barnabé (oito anos), filho de Francelina, separado judicialmente da mãe, pois esta coube à viúva inventariante. A família escrava mais atingida pela separação foi a do casal Valentim e Miquelina. Eles tinham quatro filhos: Fausta (15 anos), Graciano (12 anos), Sebastião (13 anos) e Delfino (1 ano). Os três primeiros foram destinados a duas meninas órfãs, respectivamente, Emília, e Maria. Delfino, um bebê, ficou junto dos pais e a família nuclear dividida passou a pertencer à Dona Filomena, assim, forçosamente, o casal e o filho menor teriam de mudar-se para a propriedade dessa nova dona, então moradora no Engenho Pau Amarelo, e deixariam seus 4 A filha mais velha de Joaquim de Mello Azedo, dona Filomena de Mello Azedo Castro, estava casada com o tenente-coronel Francisco Ignácio Pereira de Castro, dono do engenho Pau Amarelo, na freguesia de Santa Rita. A segunda filha, Tereza, por sua vez, morava com a irmã e, o mais jovem, João, estudava Direito na cidade do Recife (Inventário de Joaquim de Mello Azedo, 1869, fl. 20. ATJPB). 3

filhos no Engenho Poxi. A Lei de 1869, que proibia a separação de família mães e pais de filhos até 15 anos foi, neste caso, letra morta, pois as crianças, com exceção de Fausta, não poderiam ter sido separadas legalmente de seus pais. Apesar desse descumprimento da Lei de 1869, Camila manteve-se junta de seus filhos, pois as crianças-herdeiras viviam com a mãe. Mas, em poucos anos, essa mudança mudaria significativamente a vida de Camila. Mas, vejamos os outros escravizados que não tiveram o parentesco evidenciado. Eles ficaram, em sua maioria, na posse de Dona Porfíria e devem ter permanecido no Engenho Poxi ou sido distribuídos pelos vários currais herdados pela viúva, como as fazendas de gado: Cabeça de Boi e Cutuvello, Maniçoba, Serrinha e inúmeros animais de gado vaccum e cavalar. Com uma seqüela de bens, concluída em 17 de agosto de 1874, recebeu, ainda, mais duas fazendas, a Coruja e a Corujinha. Contudo, logo aconteceram novas mudanças aconteceram na vida de mulheres e homens escravizados que permaneceram em poder de Porfíria. Uma primeira alteração foi ter um novo proprietário, visto que a viúva de Mello Azedo se casou, provavelmente por volta de março de 1870, com Francisco Gomes da Silveira, integrante de uma família rica da várzea da Paraíba. Porém, pouco tempo depois, em 04 de fevereiro de 1872, Porfíria faleceu e se realizou nova partilha dos bens do casal. 5 A transferência de bens de Porfíria Cabral de Mello foi realizada com muitas tensões, conforme indícios encontrados na documentação. Uma das primeiras ações do avô das crianças, o tenente-coronel Antonio Pereira de Castro, senhor do Engenho Pindoba, passado dez dias da morte da filha, em 14 de fevereiro de 1872, foi de requerer a tutoria dos netos (Maria, 9 anos; Emília, 8 anos; Joaquim, 5 anos e Francisca, 2 anos), a qual foi concedida. Em seguida, ele reclamou da partilha dos bens, realizada em 16 de setembro de 1872, pois, após esta data, o advogado do tutor-avô enviou outros documentos ao juiz de órfãos do termo do Cuité, da comarca da Borborema, exigindo que se procedesse à avaliação de bens pertencentes a mesma finada [Porfíria Cabral de Mello] devida seqüela a que se procedeu por falecimento de seu primeiro marido Joaquim Mello Azedo, pai dos mesmos órfãos, e que consistem em gado vacum e cavalar. Solicitava que se completasse o processo, pois restava o arrolamento e avaliação do gado nelas existentes, e que [era] de urgência. 6 As questões envolvendo as fazendas de gado foram resolvidas somente no ano seguinte, talvez por isso, em 14 de outubro de 1873, o tutor encaminhou um novo documento 5 6 Inventário de Porfíria Cabral de Mello, 1872, ATJPB. Inventário de Porfíria Cabral de Mello, ATJPB. Autuamento de uma carta precatória de diligencia cível orfanológica vinda do juízo de órfãos do termo da Cidade da Parahyba do Norte, desta província para igual juízo deste termo do Cuité, fls. 04-08. Documento anexado, em 1873, no inventário. 4

ao juiz de órfão, no qual fez inúmeras reclamações do então genro Francisco Gomes da Silveira. Destacou, inclusive, da sua vontade de abandonar a tutoria. Certamente, esses desentendimentos passavam pela posse da herança, a ampliação de riquezas e de outros bens, como pessoas escravizadas, que, desde a década de 1850, tinham os preços supervalorizados. De um lado, estava o pai de Porfíria, Antonio de Castro, de outro o viúvo, Francisco Gomes da Silveira, ambos faziam parte de famílias com posses rurais na Zona da Mata, disputando riquezas, não só as de Porfíria Cabral de Mello, mas também as provenientes dos Mello Azedo. Vale destacar, também, que, se anteriormente (em 1870), o juiz havia negado a tutoria dos filhos de Porfíria ao avô, Antonio Pereira de Castro, após a sua morte, ele conseguiu ser designado para cuidar dos bens dos netos e netas, conforme informou seu advogado, o padre Leonardo Antunes Meira Henriques. Caso a divisão de riquezas não fosse bem conduzida, tendia a reduzir os bens rapidamente, como foi observado nesta segunda transferência de riquezas realizada num curto espaço de tempo. Na perspectiva das mulheres e homens escravizados, também era um péssimo momento. Se, no inventário de Joaquim Mello Azedo (1869), a população escrava era de 34 pessoas, no ano de 1872, houve uma significativa diminuição para 20. Na primeira partilha, somados os bens de raiz, metais preciosos e imóveis, o valor a ser dividido era de 73:930$120 réis; na segunda, diminuiu significativamente para 37:198$237. Veja-se a seguir a composição da população escrava: Número total de escravizados = 20 Crianças (0-14 anos) = 02 Adultos (a partir de 15 anos) = 18 Mulheres = 09 Homens = 09 Crioulos = 16 Africanos = 04 Fonte: Inventário de Porfíria Cabral de Mello, 1872, ATJPB. O grupo de escravizados se comparado com o de 1869 foi diminuído. No mesmo, havia quatro famílias nucleares (algumas tinham sido separadas de seus filhos), uma monoparental, formada por Camila e sua filha Joana (então com 8 meses) e 9 pessoas escravas (5 mulheres e 4 homens). Nessa segunda partilha, Camila constava no inventário apenas como mãe de Joana. Os seus dois filhos Serafim e Arcanja pertenciam aos órfãos que os herdaram em 1869 e não fizeram parte dessa partilha e viviam com o referido avô Antonio. Após a avaliação e divisão dos bens, o quadro que se observa, na perspectiva escrava, é o dos mais difíceis. Oito deles 5

foram destinados a quatro diferentes credores para pagamento de dívidas. O viúvo, Francisco Gomes da Silveira, ficou com seis escravos. As crianças-herdeiras, que estavam sob a tutoria do avô, receberam bens imóveis e animais, não herdando, desta vez, escravos. Quanto à escravizada Camila, tornou-se propriedade de Francisco Gomes da Silveira. E o que se reservava à pequena Joana, filha de Camila? Esta havia nascido cerca de dois meses antes da lei Rio Branco, conhecida como Ventre Livre? A própria Camila, que, num primeiro momento, parecia ter mantido a convivência com Serafim e Arcanja, após a segunda partilha foi separada deles. Mas desta vez, ela procurou mudar o destino reservado às mãesescravas. Ela conseguiu comprar a carta d alforria de sua filha, por 100 mil réis. Vale destacar que, antes de se concretizar a compra de sua filha, o avô das criançasherdeiras tentou ficar com Camila. O advogado do tutor das crianças solicitou que fosse separado para os órfãos [seus netos] a escrava Camila, pela razão de que dois filhos desta [Serafim e Arcanja] já pertence[rem] aos mesmos órfãos, como o inventário que se precedeu por morte de seu pai [Joaquim Mello Azedo]. Afirmou, ainda, que a legislação que para isto é citada, não tem cabimento, não podendo ser aplicada. Não se trata de partilhar mãe e filhos. Estes já foram partilhados. O advogado de Antonio Pereira de Castro deveria estar se referindo à Lei de 1869. Argumentava, ainda, que estavam na mesma situação as escravas Maria Nova e Francelina. A primeira que é casada com o escravo Luiz preto, tem um filho que já pertence à órfã Francisca. A segunda tem também um filho, de nome Barnabé, que pertence ao órfão Joaquim. O menino Alexandre (05 anos), também fora separado de seus pais, Maria e Luiz. Contudo ele, tutor, não reclamava a posse das crianças escravas mencionadas, mas apenas de Camila, a sua cozinheira, ou seja, em discurso, o que deveria prevalecer, seria o seu bem-estar mantendo-se Camila, sua trabalhadora e, também, patrimônio de seus netos e netas. Ao que parece, para esse senhor de engenho, a separação de integrantes da família escrava era uma questão menor, como se observa, com a falta de cumprimento da lei de 1869, na partilha dessa família de Santa Rita/PB. Por outro lado, destaco as ações da escravizada Camila, que já havia perdido seus filhos Serafim e Archanja, na primeira partilha, não deve ter medido esforços para obter os 100 mil réis que pagou pela alforria da pequena Joana. Infelizmente, as evidências não permitiram identificar como Camila, uma moradora da zona rural, conseguiu obter os recursos para a compra da pequena Joana. Contudo, a história de Camila nos revela vários aspectos da escravidão, entre a classe proprietária, os seus conflitos por ocasião da divisão de riquezas, a diminuição da 6

concentração, ou seja, o empobrecimento de alguns com as sucessivas partilhas, assim como a forte influência do ciclo de vida de senhor (ou senhora) nas vidas de crianças, mulheres e homens escravizados, como um dos momentos mais dramáticos de suas vidas, pois poderiam resultar em separação de integrantes de uma mesma família e/ou de companheiros de cativeiro (METCALF, 1987). Todavia, permitem também a recuperação de histórias, sobretudo, de mulheres que conseguiram comprar a liberdade de seus filhos, evitando, assim, a separação de bebês de suas mães. Além disso, mostra que, apesar de mulheres e homens escravizados estarem sujeitos a uma legislação que tentava controlar e impedir suas ações e, também, aos seus senhores que, quase sempre, negavam a sua humanidade, tratando-os como mercadorias, passíveis de serem vendidas, compradas, legadas aos seus filhos e parentes, algumas conseguiram utilizar mecanismos do próprio sistema, a exemplo de Camila, e tornaram-se sujeitas de suas histórias, protagonizando ações que se não modificaram totalmente suas vidas, legaram aos seus descendentes possibilidades de liberdade e, talvez, de alguma mobilidade social. REFERÊNCIAS Fontes Inventário de Joaquim Mello Azedo, 1869, ATJPB. Inventário de Porfíria Cabral de Mello, 1872, ATJPB Livros de Batismo, Santa Rita 1840-1872 Bibliografia BURGUIÈRE, André. A demografia. In: LE GOFF, Jacques e NORA, Pierre. História. Novas Abordagens. Tradução de Henrique Mesquita. Rio de Janeiro: F. Alves, p.59-82, 1995. CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 2 ed. Petrópolis (RJ): Vozes. 1994. CHALHOUB, S. Visões da Liberdade. Uma história das últimas décadas da escravidão na Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. CONRAD, Robert. Os últimos anos da escravidão no Brasil. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. GOMES, Flávio dos S. Experiências Atlânticas. Ensaios e pesquisas sobre a escravidão e o pósemancipação no Brasil. Passo Fundo: Ed. UPF, 2003. LARA, Silvia Hunold. Blowin in the Wind. E. P. Thompson e a experiência negra no Brasil. Projeto História. São Paulo, n. 12, p.43-56, out., 1995. 7

METCALF, Alida. A vida familiar dos escravos em São Paulo no século XVIII: o caso de Santana de Parnaíba. Estudos Econômicos. São Paulo, v. 17, n.2, p. 229-43, 1987. MATTOSO, Kátia de Q. Ser escravo no Brasil. Tradução de James Amado. 2 ed. São Paulo: Brasiliense, 1988a. MEDEIROS, Maria do Céu. e SÁ, Ariane Norma M. O trabalho na Paraíba. Das origens à transição para o trabalho livre. João Pessoa: Universitária/UFPB, 1999. SLENES, Robert W. Na Senzala, Uma Flor: As Esperanças e Recordações na formação da família escrava Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. 8