RESENHA - DEBATE DOI: RESPOSTA À RESENHA DE A ÉTICA DO USO E DA SELEÇÃO DE EMBRIÕES FEITA POR KRAUSE & MERLUSSI 1 Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias (Unifal- MG) 2 lincolnfrias@gmail.com Telma de Souza Birchal (UFMG) 3 tbirchal@gmail.com Ter um livro resenhado é uma honra, mesmo quando se considera a resenha muito equivocada. Portanto, antes de mais nada, aqui vão os agradecimentos a Krause & Merlussi. A opinião dos autores é que A ética do uso e da seleção de embriões é um livro primário e mal feito, pois nele há uma sequência enorme de falhas elementares na formulação dos argumentos, de non sequitur na maioria, de termos utilizados dubiamente e com vários sentidos numa mesma argumentação (KRAUSE & MERLUSSI 2013, 224). Eles justificam a afirmação apresentando três tipos de críticas ao livro: (a) consideram que os argumentos não são formulados de maneira a que a verdade de suas conclusões seja de- 1 Recebido: 06-12-2013/Aprovado: 29-04-2014/Publicado: 08-09-2014. 2 Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias é Professor Doutor da Universidade Federal de Alfenas, Varginha, MG, Brasil. 3 Telma de Souza Birchal é bolsista de produtividade em pesquisa 2 do CNPq e Professora Associada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014 247
Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias e Telma de Souza Birchal duzida necessariamente da verdade das premissas; (b) suspeitam que os argumentos adversários foram reelaborados para torná-los mais vulneráveis; e (c) apontam que dizer conclusão válida e argumento verdadeiro é inadequado segundo as definições desses termos em lógica. A resposta às duas primeiras críticas é que o livro simplesmente segue os costumes da área de ética prática, que são diferentes da área de lógica. Quanto à terceira, é justificada. Vejamos cada uma delas separadamente. Krause & Merlussi defendem que, dado que o livro se assume como fazendo parte da filosofia analítica e dado que ele se dispõe a apresentar os argumentos em forma de premissas e conclusões, então ele deveria fazer isso de maneira mais rigorosa. E rigor para eles significa seguir as notações usadas na área de lógica, não permitir que haja premissas suprimidas e chamar de argumento apenas as sequências de proposições em que a conclusão se segue necessariamente das premissas. Por exemplo, o livro apresentou o Argumento do Pertencimento à Espécie Humana da seguinte maneira: P1 Nós temos direito à vida porque nós somos nós. P2 Nós somos da espécie Homo sapiens. P3 Embriões são da espécie Homo sapiens. C Logo, os embriões têm direito à vida. Segundo Krause & Merlussi (228-229), o correto seria apresentar o argumento assim: P1- Para todo x, Dx P2- Para todo x, Hx (onde Hx = x é da espécie Homo Sapi- 248 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014
RESENHA - DEBATE RESPOSTA À RESENHA DE A ÉTICA DO USO E DA SELEÇÃO DE EMBRIÕES FEITA POR KRAUSE & MERLUSSI ens) P3- Para todo x, se Ex então Hx. (onde Ex = x é um embrião) C Para todo x, se Ex então Dx. Ou assim: 1. Para todo x, se x é da espécie Homo sapiens, então x tem direito à vida. 2. Os embriões são da espécie Homo sapiens. 3. Logo, os embriões têm direito à vida. Uma primeira resposta a essa sugestão é dizer que o estilo de apresentação dos argumentos (premissas suprimidas, conclusões que não se seguem necessariamente, ausência de formalismos etc.) que o livro utiliza é muito comum em alguns dos principais livros de ética prática - publicados por autores muito respeitados na área e por editoras do porte de Oxford University Press e Cambridge University Press. Por exemplo, um argumento muito semelhante ao Argumento da Descontinuidade criticado por Krause & Merlussi, encontra-se em A Defense of Abortion (BOONIN 2002, 36). Outro exemplo, dessa vez relacionado ao Argumento da Desigualdade, é Choosing tomorrow s children (WILKINSON 2010, 199). Muitos artigos em revistas especializadas utilizam a mesma essa estratégia. Por exemplo, Fallacies in the arguments for new technology: the case of proton therapy (HOFMANN 2009) foi publicado no Journal of Medical Ethics (fator de impacto 1.419) e contém argumentos que não passariam pelo crivo de Krause & PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014 249
Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias e Telma de Souza Birchal Merlussi. O propósito do parágrafo anterior não é funcionar como um argumento de autoridade, nem defender que o estilo de montagem de argumentos adotado no livro é superior ao defendido na resenha. O objetivo é apenas mostrar que Krause & Merlussi estão exigindo algo que não é o padrão de excelência em ética prática. E o motivo para que os trabalhos de ética prática prefiram um estilo mais simples e menos formal do que a área de lógica é o interesse de atingir um público mais amplo do que os filósofos acadêmicos, dialogando com o debate público. Portanto, a segunda resposta à primeira crítica é que a apresentação dos argumentos não foi logicamente rigorosa para que ela fosse mais fácil de compreender supondo que uma possível apuração da forma e eliminação de termos ambíguos não traria nenhuma modificação substantiva no conteúdo. Segundo Krause & Merlussi, [é] surpreendente que um livro com uma apresentação dessas tenha granjeado tamanha reputação favorável (p. 224). Talvez a reputação que o livro adquiriu indique que as simplificações não foram equivocadas, mas sim que a crítica é que é descabida. É provável que a tese e o livro tenham chamado atenção devido à relevância do tema e por causa de sua simplicidade, não apesar dela. Além disso, como fica claro nas reformulações do Argumento do Pertencimento à Espécie Humana, muitos aspectos dos debates acadêmico e público seriam perdidos se as formalidades fossem respeitadas (p. ex., a premissa nós temos direito à vida porque nós somos nós ). O que nos leva à crítica de que os argumentos adversários foram caricaturados (KRAUSE & MERLUSSI 2013, 231). 250 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014
RESENHA - DEBATE RESPOSTA À RESENHA DE A ÉTICA DO USO E DA SELEÇÃO DE EMBRIÕES FEITA POR KRAUSE & MERLUSSI Sobre o Argumento Brincar de Deus, a resenha pergunta: Qual filósofo profissional defendeu ou defenderia este argumento? Asseguramos que esta não foi uma pergunta retórica. Não há quaisquer referências no livro de Frias que nos ajude a respondê-la. [...] O argumento, pelo tanto quanto sabemos, não foi defendido, tal como exposto, por qualquer filósofo profissional (p. 231). O fato de não haver referências a defensores do argumento no livro é realmente uma deficiência. No entanto, uma pesquisa por playing god bioethics no Google Scholar (em 26/11/2013) com 3.130 resultados. O argumento é tão importante que é o título de um capítulo de (DWORKIN 2002). Apresentar os argumentos dos adversários, sem nomeá-los, é uma prática frequente em ética prática (SINGER 1994; BOONIN 2002; MCMAHAN 2002; PARFIT 1984), o que é feito com o objetivo de evitar disputas sobre se determinado autor quis ou não dizer tal coisa. Sem dúvida, porém, é algo que deveria ser corrigido no livro. Sobre a crítica de que o livro apresenta os argumentos menos sofisticados contra o que defende (KRAUSE & MERLUSSI 2013, 236), pode-se admitir que eles poderiam ser melhor formulados do ponto de vista lógico. Contudo, isso estaria sujeito à crítica, feita já durante a defesa da tese, de que os argumentos adversários foram transformados em silogismos sem alma. O livro tentou encontrar um meio termo entre apresentar os argumentos de forma clara e captar o espírito dos debates acadêmicos e públicos. O melhor teste para saber se houve ou não injustiça para com os argumentos adversários é ouvir o que seus defensores têm a dizer. No entanto, passados três anos desde a defesa da tese e depois de muitas palestras sobre o seu conteúdo, nenhuma nova formulação daqueles argumentos foi PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014 251
Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias e Telma de Souza Birchal defendida e nenhuma das pessoas simpáticas a eles criticou a maneira como eles foram apresentados. A terceira crítica de Krause & Merlussi consiste em lembrar que é inadequado dizer que determinada conclusão é válida ao invés de verdadeira assim como é inadequado dizer que um argumento é verdadeiro ao invés de válido. Eles têm razão. Trata-se de um uso equivocado de terminologia amplamente conhecida e que será corrigido caso haja uma próxima edição. Falta ainda comentar uma afirmação do livro que motivou muitas das críticas feitas pela resenha: a declaração um tanto rápida de que ele vincula-se à tradição da filosofia analítica. Os resenhistas, especialistas da área, recusam ao livro tal pertença. Apurar este ponto como ele merece nos levaria longe demais. No entanto, é preciso ao menos lembrar que a ética prática é, ao mesmo tempo, um fruto da filosofia analítica e um afastamento dela. É um fruto porque herda dos analíticos o foco na análise dos argumentos, ou seja, distancia-se das preocupações históricas e de análises antropológicoexistenciais que predominam entre os continentais. Neste sentido a ética prática deve muito de seus procedimentos à filosofia analítica. Porém, a ética prática é também um afastamento porque surgiu justamente da recusa de se pensar a ética como apenas um problema de linguagem, fazendo o filósofo sair da poltrona e encarar problemas concretos. Sendo assim, a pertença ou não pertença do livro à tradição analítica pode ser evidentemente discutida e relativizada o que, a nosso ver, não determina o valor das teses nele defendidas. Enfim, o livro poderia ser melhor em vários aspectos E também poderia ser mais preciso, mais detalhado, mais téc- 252 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014
RESENHA - DEBATE RESPOSTA À RESENHA DE A ÉTICA DO USO E DA SELEÇÃO DE EMBRIÕES FEITA POR KRAUSE & MERLUSSI nico. Esta última possibilidade, porém, teria o custo de torná-lo menos acessível e restringiria seu público. As prateleiras de filosofia já estão cheias de livros técnicos, precisos e detalhados e com pequeno público. Embora a amplitude da audiência não seja uma boa medida do valor de um livro, atingir um público amplo é importante para a ética prática. Cabe ao leitor decidir se Krause & Merlussi oferecem premissas verdadeiras e suficientes para tornar também verdade a conclusão de que: A obra infelizmente carece de competências mínimas que permitiriam discuti-la de maneira filosoficamente rigorosa. Concluímos que a obra não pode ser considerada como uma tentativa séria de solução para um problema filosófico genuíno. O que se há de lamentar, finalmente, é que uma obra como essa seja usada como referência na área, tamanho é o seu primarismo argumentativo (KRAUSE & MERLUSSI 2013, 232). É uma pena que a resenha não tenha discutido o conteúdo dos argumentos do livro. Isso teria sido algo importante. REFERÊNCIAS BOONIN, David. A defense of abortion. Cambridge: Cambridge University Press, 2003. DWORKIN, Ronald. Brincar de Deus: genes, clones e sorte In: DWORKIN, Ronald. A virtude soberana a teoria e a prática da igualdade. Trad. J. Simões. São Paulo: Martins Fontes, 2005. HOFMANN, B.. Fallacies in the arguments for new technology: the case of proton therapy. Journal of Medical Ethics, v. 35 n. 11, p. 684-687, 2009. PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V. 19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014 253
Lincoln Thadeu Gouvêa de Frias e Telma de Souza Birchal KRAUSE, Decio; MERLUSSI, Pedro. Resenha do livro: A Ética do Uso e da Seleção De Embriões. Philósophos, v. 18, n. 1, p. 219-232, 2013. MCMAHAN, Jeff. The ethics of killing: problems at the margins of life. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 2002. PARFIT, Derek. Reasons and persons. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 1984. SINGER, Peter. Practical ethics - 2a ed. Nova York: Cambridge University Press, 1993. WILKINSON, Stephen. Choosing tomorrow s children the ethics of selective reproduction. Oxford: Oxford University Press, 2010. 254 PHILÓSOPHOS, GOIÂNIA, V.19, N. 1, P. 247-254, JAN./JUN. 2014