A SEMIÓTICA EM ASA BRANCA: CARACTERIZAÇÃO DISCURSIVA Introdução Maria Clara Alcântara Bernardelli Samantha Isabela Pinto (G-CLCA-UENP/CJ) Tania Regina Montanha Toledo Scoparo (Orientadora - CLCA-UENP/CJ) Este trabalho aborda a linguagem verbal da letra da música Asa Branca, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, para apreender o sentido do texto e entender a temática proposta pelos autores. Faremos uma análise do nível discursivo buscando as marcas no discurso construído, por meio dos três procedimentos de discursivização: a actorialização, a espacialização e a temporalização. Melhor definindo, a constituição das pessoas, do espaço e do tempo do discurso. Também levantaremos, do texto proposto, moldando-se na teoria greimasiana, os temas e as figuras que servem para revestir os esquemas narrativos abstratos. É nesse nível de concretização do sentido que se manifestam a ideologia e as intenções do sujeito da enunciação (SCOPARO, 2007, p. 119). Pretendemos nos ater ao plano do conteúdo do texto por ser o lugar em que a semiótica concentra seu esforço de modelização (TATIT, 2001, p. 14). A busca por esses elementos no texto reforça uma atividade descritiva e desperta o interesse por reflexões que alcance o sentido engendrado no texto. As letras de músicas fazem parte de nosso cotidiano, por isso entendê-las faz parte do processo de aquisição de conhecimento e de ampliação dos horizontes de expectativas de qualquer pessoa cidadã e consciente de sua participação na sociedade. Considerações teóricas A semiótica francesa ou da Escola de Paris foi criada nos anos de 1960 para ser uma teoria da significação, para descrever os sentidos do texto. É um ramo das ciências da linguagem que se ocupa dos conjuntos significantes; seu objeto de análise sempre será um signo, tomado no sentido amplo do termo, seja texto verbal, não verbal e sincrético, enfim, tudo que carreia um sentido. É uma teoria, portanto, da significação, seu trabalho é o de 95
explicitar, sob a forma de uma construção conceptual, as condições de apreensão e de produção do sentido (GREIMAS; COURTES, s/d, p. 345). Na semiótica greimasiana, há três patamares para serem analisados, chamado de percurso gerativo de sentido, e são eles: as estruturas fundamentais, as estruturas narrativas e as estruturas discursivas. Os três níveis do percurso possuem uma sintaxe e uma semântica. Neste trabalho, voltaremos a atenção para um desses três níveis: o discursivo, para observar a contribuição dos efeitos de sentido no texto analisado. Os valores assumidos pelo sujeito da narrativa no nível discursivo são disseminados por percursos temáticos, recebendo investimentos do sujeito da enunciação, para isso se faz a disseminação dos temas e da figurativização, tarefa do sujeito da enunciação. É devido aos percursos temáticos e figurativos que o sujeito da enunciação assegura a coerência semântica do discurso e cria a concretização figurativa do conteúdo, os efeitos de sentido e, sobretudo de realidade. Letra da música: Asa Branca Quando olhei a terra ardendo Qual a fogueira de São João Eu perguntei a Deus do céu, ai Por que tamanha judiação Que braseiro, que fornalha Nenhum pé de plantação Por falta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse, adeus Rosinha Guarda contigo meu coração Hoje longe, muitas léguas Nessa triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra mim voltar pro meu sertão Quando o verde dos teus olhos Se espalhar na plantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu, meu coração 96
Análise As categorias de pessoa, tempo e espaço transformam os temas em figuras pelo processo da figurativização: no nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo são revestidas de termos que lhe dão concretude (FIORIN, 1999, p. 29). Ao produzir seu discurso, o enunciador deixa nele suas marcas e busca persuadir o enunciatário. Na enunciação, o sujeito faz uma escolha, portanto, de pessoa, de tempo e de espaço. No enunciado em análise, está projetado, na primeira estrofe, o sujeito enunciador, em primeira pessoa, relatando a situação de um espaço lá, o sertão, no tempo passado, deixa transparecer sua tristeza ao ver tudo o que possuía ser destruído pelo fogo causado pela seca: Quando olhei a terra ardendo Qual fogueira de São João Eu perguntei a Deus do Céu, ai Por que tamanha judiação Há um sentimento temático de falta, desolação, sofrimento, muito explícito que se observa em todo o enunciado. O anti-sujeito do texto, a seca, invadiu o território do sujeito enunciador, destruindo sua condição de vida. O calor que irradia do céu qual fogueira de São João marca o regionalismo presente na letra, já que é no nordeste o lugar onde acontecem as tradicionais festas juninas, como também revela o choro/denúncia regional da situação precária em que vivem os nordestinos: a estiagem, convergindo a uma esterilidade fecunda. A evidência disso está nas figuras terra ardendo, judiação, também no questionamento misericordioso a Deus e ainda no ai gemido de tristeza - no final do verso, representando a dor sentida pelo sujeito, devido a tudo o que este presenciou e perdeu. Esses lexemas coadunam com a mudança em sua trajetória. Com base na semiótica greimasiana, é possível identificar, na segunda estrofe, o sentido das figuras presentes no texto: Que braseiro, que fornalha Nenhum pé de plantação Por falta d'água perdi meu gado Morreu de sede meu alazão A seca que assolou aquelas terras justifica a migração do enunciador, já que esse perdeu tudo o que tinha Nem um pé de plantação/por falta d'água perdi meu gado/morreu de sede meu alazão. Fiorin (1999, p. 65-66) afirma que Quando tomamos um 97
texto figurativo, precisamos descobrir o tema subjacente às figuras, pois para que estas tenham sentido precisam ser a concretização de um tema. No caso, o tema que sobressai é a perda, causada pelo braseiro, fornalha falta d água, perdi meu gado, Morreu de sede. Na verdade, as duas primeiras estrofes dessa música configuram-se pela ameaça de uma força antagonista que leva o sujeito a uma perda irreparável, levando-o ao afastamento e às disjunções progressivas de sua terra natal. É na terceira estrofe que encontramos a essência do texto, já que nela está contido o pássaro que empresta o nome ao título da música: Até mesmo a asa branca Bateu asas do sertão Então eu disse, adeus Rosinha Guarda contigo meu coração Essa ave chamada asa branca foi escolhida justamente por ser um animal muito resistente às severas secas que acontecem no nordeste. O enunciador faz uma comparação entre a força da ave em relação à sua própria força, pois se até mesmo a asa branca bateu asas e voou ele também precisa buscar um lugar que possa lhe proporcionar sustento, mesmo que esse lugar não o agrade e ele tenha que deixar para trás alguém muito especial em sua vida: adeus Rosinha. O modo como o sujeito enunciador fala com a Rosinha deixa claro que ela é sua companheira e amada, o último verso dessa estrofe acentua ainda mais essa afirmação, pois a figura de linguagem inserida nele demonstra a reciprocidade no ato de amar. Fica claro que a ação proposta à Rosinha de guardar o coração do enunciador é uma conotação abstrata que ele usou para ela não esquecê-lo. O sujeito retirouse da terra, fugiu da seca e da miséria, no entanto deixou parte de si para trás, laços emocionais que o farão voltar quando puder. A debreagem enunciativa, ou seja, o enunciado em primeira pessoa, num tempo presente e num espaço aqui que se contrapõe com o lá, do sertão, fica patente no excerto da quarta estrofe: Hoje longe, muitas léguas Nessa triste solidão Espero a chuva cair de novo Pra mim voltar pro meu sertão Os verbos no passado inseridos nas estrofes anteriores olhei, "perguntei, morreu, Bateu, disse - indicam uma anterioridade ao momento vivido Hoje pelo enunciador, causando-lhe uma dor maior pela devastação de seu ambiente 98
natural, num processo de subjetividade. O modo atual em que o enunciador vive fica exposto nesse enunciado da quarta estrofe, onde ele revela estar em um lugar muito distante e se sentindo extremamente solitário. A palavra triste inserida no segundo verso dá ênfase ao seu sentimento já que ele poderia apenas dizer que está só, porém ele enfatiza essa solidão usando o adjetivo triste. Embora o atual endereço do enunciador lhe proporcione garantia de sustento, a esperança é voltar para as suas origens, pois fica expressa a sua insatisfação com o lugar onde ele está. No último verso o enunciador tem esperança de que chova para que ele possa voltar ao interior e recomeçar novamente sua vida, ao lado de sua companheira. Percebe-se, também, que o tempo Hoje demarca a fronteira entre o passado e o presente, inserindo nesse contexto a isotopia da esterilidade e da fecundidade (TATIT, 2001). Isotopia, conforme Fiorin, é a recorrência do mesmo traço semântico ao longo de um texto (1999, p. 81). É um plano de leitura, um modo de ler o texto. No enunciado, têm-se os lexemas ardendo, fogueira, fornalha, que remetem ao espaço rural. Depois inserem-se falta d água, sede, Nenhum pé de plantação, perdi meu gado, morreu meu alazão, configurando a estiagem, a seca, portanto, a esterilidade. Em contrapartida, há os elementos chuva, verde, plantação, que remetem à fertilidade. Outro elemento isotópico pode ser depreendido do enunciado quando se faz a alusão a Deus Eu perguntei a deus do céu, ai / por que tamanha judiação - abrindo a possibilidade da leitura na dimensão religiosa (TATIT, 2001). As marcas do calor intenso inseridas nos lexemas ardendo, fogueira, fornalha remetem ao inferno, o anti-sujeito que devasta e destrói a vida do enunciador do texto. Esses entrelaçamentos semânticos são formas de leitura subjacentes que permitem uma melhor compreensão do texto. O enunciador demonstra esperança em voltar à sua terra natal na quinta estrofe: Quando o verde dos teus olhos Se espalhar na plantação Eu te asseguro não chore não, viu Que eu voltarei, viu, meu coração Ele faz uma comparação com a cor dos olhos de Rosinha e a situação na qual a vegetação deve estar para que ele consiga trabalhar de novo na lavoura, ou seja, ele só voltará quando a plantação estiver tão verde quanto os olhos de Rosinha: Quando o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação. A convicção do enunciador é construída ao longo da quinta estrofe com o intuito de acalmar Rosinha, a quem ele pede para guardar o seu 99
coração. Rosinha é um sujeito passional, uma companheira, que pode influenciar o novo universo do enunciador: a conjunção com os sentimentos que o ligam à sua origem. Aqui, aparece a configuração de um elo contínuo entre destinador e destinatário ( eu e Rosinha ) que sobressai pela primeira vez em Eu te asseguro não chore não, viu. Enfim, descobrimos que o sujeito enunciador do texto é um homem, no princípio, sem identidade, fragmentado pela perda e configurado com a separação, que sai em busca de sua reconstrução como ser, recobrando a harmonia que dá sentido à sua vida. Para melhor visualizar a análise proposta nesse trabalho, faremos um quadro, idealizado por D Ávila (2006), demonstrando o percurso figurativo do sujeito enunciador do texto. Conforme a teoria greimasiana, as figuras são organizadas em grupos, encadeadas umas às outras e essa rede de figuras chama-se percurso figurativo (FIORIN; SAVIOLI, 1996, p. 98). Assim, esse percurso poderá ser figurativizado no esquema abaixo: Quadro n 1 quadro armazenador de figuras e temas ESTROFE FIGURAS PERCURSO TEMAS FIGURATIVO 1ª Terra ardendo, Desencanto Sofrimento, fogueira, judiação desolação 2ª Braseiro, fornalha, nenhum pé, falta d água, morreu Devastação Perda 3ª Bateu asas, adeus Abandono Fuga 4ª Longe, triste solidão, Chuva, voltar Isolamento Solidão 5ª Verde, plantação, não chore, voltarei, coração Retorno Esperança, paz 100
No percurso figurativo, as figuras e os temas das cenas enunciativas manifestaram as passagens da vida do enunciador enquanto sujeito exilado de sua terra, o sertão. Os temas vieram revestidos pelas figuras principais ardendo, judiação, falta, morreu, adeus, triste solidão, verde, plantação, voltarei. No início, o percurso foi da desolação, da perda, do sentimento de falta; no final, o enunciador manifesta emoções de paz, esperança, se conseguir voltar ao sertão, sua terra de origem. O percurso figurativo concretiza, então, os temas propostos pela história contada em versos. Considerações Finais O estudo da semiótica nos dá suporte para compreender os sentidos do texto, seja verbal, não verbal ou sincrético. Com a análise da música Asa Branca foi possível delinear o tempo, a pessoa e o espaço no enunciado; a trajetória do enunciador, seu sofrimento em meio à seca do sertão; o afastamento, solidão, ao sair de perto de tudo que ama; e a esperança de um dia voltar. O uso de elementos do discurso é mais um mecanismo na apropriação de sentidos e o professor pode usá-los como mais uma ferramenta de ensino em sala de aula. Referências D ÁVILA, N. R. Semiótica e Comunicação nos discursos Publicitário e Cinematográfico. Retórica do visual. Material didático para entender Greimas do programa de pós-graduação em Comunicação. Marília: UNIMAR, p. 1-25, 2006. FIORIN, J. L. Elementos da análise do discurso. 7. ed. São Paulo: Contexto, 1999. ; SAVIOLI, F.P. Lições de texto: leitura e redação. São Paulo: Ática, 1996. GREIMAS, A. J.; COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo: Cultrix, s/d. SCOPARO, T. R. M. T. Abordagem em semiótica sincrética verbo-cinematográfica do filme O crime do padre amaro. In: D Ávila, N. R. Semiótica sincrética aplicada. São Paulo: Arte & Ciência, 2007. SILVA, F. M. Novos rumos da semiótica francesa. In: II Simpósio Nacional e I Simpósio Internacional de Letras e Linguística, 2011, Catalão. Anais, 2011. v. 1. p. 1-12. TATIT, Luiz. Análise semiótica através das letras. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. 101
Para citar este artigo: BERNARDELLI, Maria Clara Alcântara; PINTO, Samantha Isabela. A semiótica em Asa Branca: caracterização discursiva. In: X SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA SÓLETRAS - Estudos Linguísticos e Literários. 2013. Anais... UENP Universidade Estadual do Norte do Paraná Centro de Letras, Comunicação e Artes. Jacarezinho, 2013. ISSN 18089216. p. 95-102. 102