Hoje se trabalha, mas também se pode consumir



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Transcrição:

1 Hoje se trabalha, mas também se pode consumir Fernanda Simonetti 1 Maria Catarina Chitolina Zanini 2 Resumo: Este artigo tem como objetivo demonstrar como o ethos do trabalho é parte fundamental na vida de mulheres camponesas descendentes de imigrantes italianos residentes na Quarta Colônia/RS. A pesquisa foi realizada entre os anos de 2009 e 2010, sendo utilizada como metodologia a etnografia (entrevistas e observação participante). Por meio dos relatos das mulheres, percebeu-se que há décadas atrás a mulher trabalhava de forma intensa, tanto nas atividades domésticas quanto na propriedade, mas não tinha acesso ao dinheiro e, em consequência, ao próprio consumo. Nos dias atuais, continuam trabalhando na mesma intensidade, mas já transitam livremente no centro urbano, o que não era comum em outros tempos, realizando a compra tanto de utilidades para casa, quanto roupas, dentre outros objetos de cunho pessoal (e possuem voz na hora da decisão na aquisição de bens maiores para a casa ou propriedade). Outro fator que tem proporcionado independência feminina do meio rural foi o direito adquirido da aposentadoria no ano de 1988. Com esse benefício, mulheres que não tinham acesso ao dinheiro começaram a obter e se considerar sujeito merecedor de decidir no que gastar seus recursos. Palavras-chave: mulheres, camponesas, consumo, trabalho. Campo e metodologia de pesquisa: Para essa pesquisa 3, a metodologia escolhida foi a etnografia, com realização de observação participante e entrevistas. Foram selecionadas mulheres das mais diversas faixas etárias, pois um dos objetivos era verificar se, de fato, haviam ocorrido mudanças no modo de vida entre as gerações. O município pesquisado foi Faxinal do Soturno, pertencente à Quarta Colônia/RS 4. As comunidades escolhidas foram: Sítio Alto e Novo Treviso, 1 Cientista social, mestre em ciências sociais (UFSM) e doutoranda em desenvolvimento rural (UFRGS). E-mail: simonetti.fernanda@gmail.com 2 Antropóloga, professora associada na Universidade Federal de Santa Maria. E-mail: cmzanini@terra.com.br 3 Essa pesquisa foi realizada entre os anos de 2009 e 2010 no Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais na Universidade Federal de Santa Maria e teve como orientadora a profª. Drª. Maria Catarina Chitolina Zanini. 4 Em 1876 foi criado o Núcleo Colonial de Santa Maria da Boca do Monte, sendo os imigrantes russo-alemães (poloneses) os primeiros a chegarem à região em 1877. Em dezembro de 1877, pouco antes da chegada dos imigrantes italianos, o lugar passou a ser denominado de Quarto Núcleo Imperial de Colonização Italiana no Rio Grande do Sul e, em 21 de setembro de 1878, teve seu nome alterado para Colônia de Silveira Martins, em homenagem ao Senador Gaspar Silveira Martins. Posteriormente, 1882, deixou de ser colônia imperial e passou a ser

2 sendo que ambas possuem, como amparo econômico, a agricultura familiar, tendo como cultivo predominante o fumo. Essa região é composta, majoritariamente, por descendentes de imigrantes italianos. Tal imigração da Europa para o Brasil ocorreu de forma mais intensa no século XIX. Essa colonização dá origem à formação de um novo tipo de campesinato no Brasil, que, por sua vez, engendra a construção de núcleos urbanos e de um pequeno mercado regional (SEYFERTH, 1990). Cardoso de Oliveira (1996) ressalta que o olhar, ouvir e escrever são as faculdades essenciais durante a pesquisa. A primeira experiência em campo é a domesticação de seu olhar. Algo fundamental para o qual o autor chama a atenção é que o pesquisador deve ter um domínio das teorias para saber interpretar o seu olhar. Outro amparo do pesquisador pousa no ouvir, ou melhor, saber ouvir. O ato de ouvir requer muita paciência e perspicácia. O autor chama a atenção do poder que o pesquisador pode exercer sobre o informante por mais neutro que tente ser. Dessa forma, o olhar e ouvir seriam a primeira etapa, a segunda etapa caberia ao ato de escrever. Se o pesquisador então souber utilizar a sua sensibilidade em deixar o outro se expressar e fizer a correta coleta do material, sem dúvida, terá um bom material para ser analisado posteriormente. Como descendente de italianos, estou habituada ao cotidiano dessas pessoas, mas, como Geertz (1978) aponta, deve-se conviver com o grupo sabendo discernir o que é um piscar de olhos ou uma piscadela e se isso quer significar algo mais, sendo que são os pequenos detalhes que nos revelarão as realidades de seus fatos cotidianos das pessoas e a visão de mundo de seres inseridos em determinada cultura. Bourdieu (2002) faz várias observações sobre a construção do objeto. O autor refere que não se deve beber diretamente da boca do informante, mas sim das construções das relações sociais. Sendo assim, a teoria separada da prática é algo inútil. Ele faz um trabalho que permite ser usado como guia em administrada pela Província, e novamente teve sua nomenclatura modificada, agora para ex- Colônia de Silveira Martins (Sponchiado, 1996, p. 54-8).

3 um trabalho etnográfico, mostra que se deve ter clareza do que se quer estudar, saber o que quer perguntar, o motivo de fazer determinado número de perguntas. A proposta de Bourdieu (2002) está direcionada para o nascimento de certa sensibilidade aos sociólogos, para observarem e promoverem soluções aos problemas do mundo social. (1978): Como referência ao exercício do trabalho de campo, cito Malinowski Na etnografia, onde o autor é ao mesmo tempo, o seu próprio cronista e historiador, não há dúvida de que suas fontes sejam facilmente acessíveis, mas também extremamente complexas e enganosas, pois não estão incorporadas em documentos materiais, imutáveis, mas no comportamento e na memória de homens vivos (1978, p.27). A experiência entre estas mulheres constatou que as mesmas estão tendo acesso ao dinheiro por meio de seu trabalho e, com isso, estão tendo o direito de consumir bens. Esses produtos consumidos contribuem para a agregação familiar e também facilitam os serviços domésticos. Como exemplo de bens consumidos pode ser citado o forno elétrico, microondas, liquidificador, batedeira, celulares, dentre outros facilitadores da vida cotidiana dessas mulheres. Hoje se trabalha, mas também se pode consumir: As mulheres relatam que na época de seus pais as mesmas não tinham acesso ao dinheiro, ou seja, trabalhavam, mas quem administrava os lucros eram os homens. Desde o simples fato de ir a alguma venda comprar comida, em alguma loja para adquirir roupas, enfim a aquisição de tudo que pertencia à casa e à família passava pela mão do chefe da casa. Esse fato aos poucos veio sendo trabalhado e desmitificado quanto à questão de que mulher não poderia mexer com o dinheiro. Essas camponesas não tinham contato direto com o dinheiro, todas as transações econômicas diretas se restringiam ao sexo masculino (vide também Giron e Bergamaschi, 1996). Por meio dos depoimentos, foi percebido que hoje em dia estar em contato com o dinheiro ou com o lucro dos serviços é algo considerado normal.

4 Até mesmo vir até a cidade fazer compras e pagamentos. Tudo isso são pequenos detalhes, mas que, aos poucos, vão sendo transformados. As mulheres da zona rural de Faxinal do Soturno, de certa forma, vêm agregando o trabalho externo ao lar, mas sem deixar de lado suas lidas domésticas, trabalhando fora e angariando seu próprio dinheiro e também cuidando da casa e da família. O dia a dia dessas mulheres é dedicado à intensidade aos trabalhos, mas se sentem realizadas por poderem prestar seus serviços externos e cuidarem dos afazeres domésticos. Hoje muitas dessas mulheres vendem seus produtos na cidade, como por exemplo, queijos, pães, cucas, bolachas, verduras, e recebem elogios de seus fregueses, essa valorização verbal, ou seja, simbólica, tem um poder de modificar a vida dessas pessoas, pois as mesmas se sentem valorizadas. Por meio da aquisição do dinheiro, essas mulheres realizam suas compras no supermercado, nas lojas de roupas, calçados, bem como a aquisição de eletrodomésticos para a casa, o que pode facilitar ao seu dia a dia e de sua família. Simonetti (2004) analisa a influência das tecnologias no dia a dia dessas mulheres camponesas e consequentemente nas famílias. Para essas mulheres, conseguir enfrentar toda a rotina entre trabalhos de casa e externos necessita, de certa forma, do auxílio de algumas tecnologias, às quais antigamente não tinham acesso e nem condições financeiras de adquirir. Dessa maneira, o que era impossível fazer em pouco tempo, com as novas tecnologias se transformou, como se percebe no depoimento a seguir: Sim, uma vez dentro de casa tu tinha a mesa com dois ou três banquinho, o fogão à lenha e uma pia, nós quando comecemo que eu casei nem luz não tinha [...] sempre tivemo banheiro, mas não era assim dentro de casa né, era aquelas, como dizem, as patente [risos] fora de casa, feita de madeira né, para tomar banho, esquentava água numa chaleira e uma bacia dentro desse banheiro fora, a luz os primeiros anos que eu me lembro era os lampião né, depois veio a modernidade do liquinho, que era a gás e daí depois com o tempo que veio a luz, mas para nós demorou para chegar a luz onde nós morava é no ano de 1985 chegou a luz, não, minto, em 1987 (Simonetti, 2011). Essa pessoa não tinha acesso a essas tecnologias antigamente e hoje, com uma condição de vida melhor, consegue adquirir esses bens. Ressalto

5 aqui que essas mulheres hoje fazem usufruto de consumir bens, o que antigamente era impensável, visto que o homem era quem detinha a posse do dinheiro, como se pode constatar no depoimento de uma mulher de 44 anos da comunidade de Novo Treviso: Ahhhh isso ajuda muito, acho antigamente não se tinha isso né, tinha que fazer bolacha no fogão à lenha que demorava um século, queimava, quando não queimava ficavam cru e com essa modernidade de hoje ajudou bastante, eu acho que os colono de hoje é pouco as famílias que não têm de tudo essas modernidades né, por mais fora que seja, todo mundo tem, eu, por exemplo, a minha família sempre tentemo ter de tudo um pouquinho, ter o rádio, a televisão, o toca fita quando era o tempo deles (Simonetti, 2011). Quando é relacionado o universo da cozinha, o que para esses descendentes é um significado de ambiente social, Santos e Zanini (2008) apontam que a comida pode ter várias dimensões, como a econômica, simbólica, organizacional, religiosa, identitária, ritual, dentre outras. Assim, pude perceber que o universo da cozinha e da alimentação é passado de geração para geração. Essas mulheres lembram que começaram a cozinhar muito novas, devido à necessidade de auxiliar em casa e também levadas pelo incentivo de suas mães e passaram esses mesmos hábitos para suas filhas. O aprender a se virar desde cedo é comum nas falas, pois a condição do trabalho dignifica os descendentes de imigrantes e, com a incorporação das tecnologias, os afazeres tendem a se tornar mais dinâmicos, o que auxilia na vida dessas pessoas. Mas, o que constatei foi que, apesar de tantas facilidades e mordomias oferecidas nos dias atuais, essas mulheres não deixam de cultivar e valorizar as raízes dos antepassados colocando essa tecnologia a serviço da preservação da identidade cultural. Posso citar como exemplo que, na culinária italiana, o forno, o microondas, a geladeira, o fogão vieram para facilitar as suas vidas tornando a forma de fazer as coisas mais simples. Como diz uma entrevistada: entom, mudou, nesse sentido, na roça. Em casa também mudou [...] Agora, tu coloca no forno elétrico, tu só olha que tem que vim daqui quarenta minutos e tu pode lidar, nom precisa voltar aqui. Antes era tudo na mão, agora tem batedeira. (Simonetti, 2004)

6 Dessa maneira, elas se adaptaram a todas as inovações e as utilizam para o bem-estar familiar, facilitando também as suas lidas externas as da casa. Todas entrevistadas apontaram isso de forma positiva, pois vem em auxílio as suas necessidades. Douglas e Isherwood (2004) definiram o consumo como uma área do comportamento cercada por regras, demonstrando que nem o comércio e nem a força se aplica nessa relação que é livre. As posses materiais são carregadas de significação social. Dessa forma, procurar compreender o porquê as pessoas consomem determinados produtos e não outros se torna pertinente de análise nessa escolha de proposta de trabalho. Cada coisa consumida tem seu valor nas relações sociais e está repleta de significados naquele mundo em que o objeto de consumo será integrado. O consumo não pode ser tratado como algo irracional, especialmente na situação destas mulheres que trabalham muito para acumular determinado capital. Quando se adquire algum bem, produto ou serviço há sempre algum significado, mesmo que seja de forma inconsciente ou subjetiva do consumidor. Como Douglas e Isherwood (2004) ressaltam, os bens são, portanto, a parte visível da cultura. No caso das mulheres pesquisadas, qualquer objeto de consumo é amplamente estudado e deve responder a várias demandas (práticas ou simbólicas). Assim, o ato de comprar individual implica em algo maior, como Barbosa e Campbell (2007) salientam, pois o consumo não pode ser reduzido ao simples ato de adquirir algo, mas sim se deve estar atento para qual processo de reprodução social e construção de subjetividades e identidades aquela compra pode remeter. No caso aqui apresentado, da valorização de uma identidade de mulher camponesa. Outro fato importante na vida dessas mulheres rurais é o direto adquirido sobre a aposentadoria, o que permite uma circulação maior de dinheiro e consumo entre as pessoas. Brumer (s/d) aponta que foi a partir da constituição de 1988, complementada pelas Leis 8.212 e 8.213, de 1991, que passou a prever o acesso universal de idosos e inválidos de ambos os sexos do setor rural à previdência social, em regime especial, desde que comprovem a situação de: produtor, parceiro, meeiro e/ou arrendatário rurais, garimpeiro ou

7 pescador artesanal, que a vida das mulheres no campo melhorou. Salienta que as mulheres trabalhadoras rurais passaram a ter direito à aposentadoria por idade, a partir dos 55 anos, independentemente de o cônjuge já ser beneficiário ou não, ou de receberem pensão por falecimento do cônjuge. Os homens também tiveram uma extensão de benefícios, com a redução da idade, para concessão de aposentadoria por velhice, de 65 anos para 60 anos, e passaram a ter direito à pensão em caso de morte da esposa segurada. No depoimento a seguir de uma mulher da comunidade do Sítio Alto que, na época da pesquisa, tinha 54 anos se pode perceber a importância da aposentadoria na vida dessas mulheres: Ahh mudou, uma que tem a aposentadoria que antes não tinha né, essas mulheres hoje com 55 anos tu vê que são outras mulheres né, pelo menos tem um dinheirinho quando nunca tinham enxergado dinheiro na vida, tipo aqui em casa eu e o marido era uma caixa só, era tudo junto, a gente pegava o dinheiro a hora que queria, mas aqui a redondeza não era fácil viu, as mulheres no caso mas nenhum centavo enxergavam e agora essas mulheres são outras mulheres são felizes né de quando surgiu essa aposentadoria de 55 anos que não faz muito tempo (Simonetti, 2011). Por meio do direito à aposentadoria, essas mulheres passam a ter agenciamento, ou seja, mesmo que de forma modesta, começam a poder consumir e obter bens que possam lhe parecer de interessante aquisição e de ajuda no serviço cotidiano. Ortner (2007) assinala que os atores sociais resistem ou negociam sua vida social, e diante disso podem sim reproduzir um viés cultural ou social diferente do que lhes foi apresentado. A citação abaixo salienta este aspecto: (...) eu vejo a subjetividade como base da agency, uma parte necessária do entendimento de como as pessoas (tentam) agir no mundo mesmo se agem sobre elas. Agency não é uma vontade natural ou originária; ela é moldada enquanto desejos e intenções especificas dentro de uma matriz de subjetividade de sentimentos, pensamentos e significados (culturalmente construídos). (Ortner, 2007, p. 380) Essa condição cultural Ortner (2007) coloca como nivelada e reflexiva e sua complexidade e reflexividade constituem as bases para questionar e criticar o mundo no qual nos encontramos. Diante disso, o sujeito absorve códigos culturais, mas também reflete externalizando-os.

8 Considerações finais Esse artigo teve como objetivo assinalar as ressignificações das mulheres camponesas descendentes de imigrantes italianos do município de Faxinal do Soturno em relação ao dinheiro e quanto à aquisição de alguns direitos, tais como a aposentadoria. Por meio do trabalho etnográfico, foi possível verificar algumas mudanças nos padrões de consumo e de divisão do trabalho. Uma mudança verificada é que hoje essas mulheres pesquisadas admitem ter acesso ao manuseio do dinheiro. Com isso podem consumir produtos que até pouco tempo atrás não seria possível. Dentro desses bens consumidos há algumas tecnologias, tais como: forno elétrico, microondas, dentre outros eletrodomésticos que auxiliam nas tarefas da casa. Nesse sentido é verificado que essas camponesas ganham tempo com essas tecnologias e elas se tornam aliadas no dia a dia do mundo do trabalho na terra. Outro ponto analisado foi o acesso ao direito da aposentadoria e sua contribuição na vida dessas mulheres. Apesar desse direito ter vindo tardiamente, é ainda hoje festejado entre essas mulheres. Dentre as entrevistadas, há a certeza de que irão trabalhar durante sua vida, mas quando atingirem a idade mínima necessária poderão usufruir o direito ao valor da aposentadoria. Antes desse direito as mulheres eram dependentes de seus maridos por toda a vida e nunca detinham, em seu benefício, o valor do trabalho por elas realizado ao longo de suas existências. Referências bibliográficas: BRUMER, Anita. Gênero e previdência social rural no sul do Brasil. Disponível em <http://www6.ufrgs.br/pgdr/arquivos/429.pdf>. (s/d). Acessado em: setembro/2012. BOURDIEU, Pierre. A profissão de sociólogo: preliminares epistemológicas. Petrópolis. Editora Vozes, 2000.

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