Salvador em finais do século XVIII

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Transcrição:

Salvador em finais do século XVIII Ana Luiza Araújo Caribé de Araújo Pinho Mensalmente, publicamos em Edições Especiais, artigos sobre as datas históricas do mês em curso. São trabalhos produzidos por professores, pesquisadores e estudiosos da História da Bahia, direcionado aos estudantes, especialmente para pesquisas escolares sobre fatos, personalidades, de modo a promover o estudo e a disseminação da nossa história. Para professores, pesquisadores e estudiosos, as Edições Especiais apresenta-se como um espaço de discussão, intercâmbio e produção do conhecimento. Salvador em finais do século XVIII A cidade de Salvador deixou de ser a capital da colônia portuguesa em 1763, mas permaneceu sendo uma metrópole colonial, o que significa dizer que a cidade continuou a crescer e, ao final do século XVIII, contava com cinquenta mil habitantes. No entanto, esse crescimento se deu de forma desordenada, sem saneamento básico ou estrutura para acomodar esse quantitativo de pessoas, o que tornava doenças como varíola e sarampo quase endêmicas. Esta era uma cidade portuária que não produzia nenhum dos itens de que necessitava, o mesmo acontecia com o restante da capitania, uma vez que os produtos baianos eram essencialmente de exportação, como o fumo, o açúcar e os metais preciosos. Por esse motivo, Salvador era extremamente dependente do comércio tanto com a metrópole para artigos industrializados e escravos, quanto de outras partes da colônia para produtos naturais como carne seca. Todo esse comércio era controlado pelos portugueses que davam preferência a seus consumidores mais importantes os senhores de engenhos deixando os moradores da Cidade da Bahia pagando preços exorbitantes por itens de primeira necessidade. Segundo Luís Henrique Dias Tavares, a população de Salvador era composta por um terço de brancos e índios e dois terços de negros e mulatos, e, 26

como afirma István Jancsó, tratava-se de uma sociedade muito hierarquizada, sendo dividida nos seguintes setores de trabalho: Corpo de magistratura e finanças responsáveis pela administração da capitania ; Corporação Eclesiástica; Corporação militar oficiais e soldados ; Corpo de comerciantes; Povo nobre senhores de engenho ; Povo mecânico responsável pelos trabalhos manuais e Escravo. Sendo estas posições disputadas por brancos portugueses, brancos da terra, negros e mulatos (que se subdividiam entre livres, libertos e escravos). Nesta disputa, os brancos portugueses levavam vantagem por serem europeus. Mesmo os mais pobres se valiam da condição de reinóis para reivindicarem os cargos mais lucrativos e importantes, principalmente no serviço público, comércio, oficialato militar e funções eclesiásticas. Os brancos da terra eram pessoas nascidas na colônia, mas com recursos financeiros, como os filhos dos senhores de engenho, que, no entanto, viam suas possibilidades de atuação no comando da colônia limitadas exatamente por não terem nascido na Europa. Acabavam ocupando cargos subalternos na máquina pública, ou comandantes nas milícias rurais ou urbanas, somente os mais ricos tinham condições do custear os estudos em Coimbra-Portugal, para se tornarem médicos, advogados ou seguirem a carreira eclesiástica. Para os brancos pobres a situação ainda era mais difícil, não tinham como alcançar as funções públicas e não queriam partir para o trabalho braçal, para não serem rebaixados de classe. Todas essas limitações ampliaram muito os conflitos entre os brancos nascidos na Bahia e os reinóis. Para a maior parte da população de Salvador, os descendentes de africanos fossem livres, libertos ou escravos, esta cidade era a própria prisão. Locais onde eles eram constantemente menosprezados, ocupando os piores postos de trabalho, estavam o povo mecânico e os escravos. Os livres ou libertos exerciam, na prática, as mesmas funções dos cativos, mas procuravam diferenciar-se deste. Havia duas possibilidades para esta parcela da população sair da condição em que se encontrava: deixar a cidade ou conquistá-la como fizeram os haitianos no caribe. A estrutura governamental portuguesa apenas ratificava a estratificação social na cidade de Salvador e, por privilegiar sempre os habitantes europeus da colônia, acabava por acirrar as disputas entre os demais grupos populacionais contra os reinóis. A carga de impostos pagos por toda a capitania para manter a metrópole era muito alto, e, levando em consideração que grande parte dos baianos estavam alijados do poder, era mais um motivo para os colo- 27

nos naturais da Bahia pensarem que o Estado português não representava os seus interesses, sendo essa a justificativa para as revoltas que ocorreram no final do século XVIII nesta localidade. Outro fator de afastamento dos baianos do governo português principalmente os setores subalternos da sociedade era o recrutamento militar. Grande parte do povo mecânico era recrutado para servir nas tropas regulares e nas milícias, o que significava quase uma sentença de prisão perpétua como analisa Ubiratan Castro de Araújo. Eram brancos pobres, mulatos e negros que passaram a compor a maior parte das tropas, que sofriam pela falta de pagamento dos soldos, pela falta de alimentação e por conta da rigidez da estrutura militar. Por conta disso a deserção passa a ser uma regra. Para os que não conseguiam fugir para os sertões principalmente os negros e mulatos que não eram aceitos pelas populações do interior restava reintegrar-se à tropa ainda mais revoltada do que antes e mais propensos a participar de movimentos insurrecionais. Os quartéis se configuravam em espaço privilegiado no qual as camadas subalternas da sociedade podiam manter relações com as camadas mais altas, estas também estavam descontentes com os portugueses. Por isso, foi nos quartéis onde grande parte dos movimentos insurrecionais ocorridos na Bahia do final do século XVIII ao meado do século XIX, foram gestados. Com a Conjuração dos Alfaiates não foi diferente; as ideias da Revolução Francesa ainda em curso na Europa conseguiram chegar à Bahia através dos viajantes franceses que chegaram à capitania no período e nos escritos trazidos pelos estudantes de Coimbra, sendo traduzidos e disseminados pela cidade. Os desejos de igualdade, fraternidade e liberdade conseguiram unir os diversos setores da sociedade baiana, de brancos da terra a negros libertos, que queriam destruir as barreiras que impediam que estes tivessem poder de representação no Estado e ampliassem as possibilidades de ascensão social. Por isso mesmo o tipo de governo escolhido pelos revoltosos foi a república, na qual todos, independente da cor da pele ou do local do nascimento eram iguais perante a lei. Liberdade e igualdade foram palavras muito repetidas nos boletins que amanheceram espalhados por Salvador em 12 de agosto 1798. Nestes manifestos os insurgentes discutiam sobre os principais temas de desacordo entre a Metrópole e a colônia. Num dos boletins foi dito que o Partido da Liberdade era composto por 676 pessoas, que tinham como maioria os soldados de linha e da milícia 107 e 233 integrantes, respectivamente. Os textos falavam sobre 28

a liberdade como o único estado em que os homens poderiam ser iguais; sobre como somente a abertura dos portos seria capaz de diminuir a crise econômica vivida pela capitania; tratavam ainda do descaso da Coroa portuguesa pela população da Bahia, só preocupada em coletar os impostos chamados de latrocínio ; e pregavam que só sob o regime republicano as pessoas poderiam ser iguais perante a lei, incluindo os negros e pardos como cidadãos. Dez dos onze boletins encontram-se ainda hoje no Arquivo Público do Estado da Bahia, um deles foi queimado antes de chegar às mãos do Governador D. Fernando José de Portugal e Castro. Este encarregou ao desembargador Manoel Magalhães Pinto Avellar de Barbedo de dar início à devassa que deveria descobrir os autores de tais escritos. Um dos primeiros homens a ser preso foi Luiz Gonzaga das Virgens e na sua casa foram encontradas cópias de textos franceses proibidos em Portugal e na colônia. Após essa prisão, os sediciosos decidiram fazer uma reunião no Campo do Dique no Desterro, no dia 25 de agosto, para descobrirem se teriam apoio o suficiente para darem início à revolução. O encontro foi denunciado. Dos quarenta e um presos, trinta e três foram condenados, destes, vinte e dois eram das camadas subalternas da sociedade: 11 escravos; 5 Alfaiates e 6 soldados da tropa paga. As penas foram definidas no dia 05 de novembro de 1799. Foram condenados à morte na forca e esquartejamento os soldados Lucas Dantas de Amorim Torres e Luiz Gonzaga das Virgens e os alfaiates Manuel Faustino dos Santos Lira e João de Deus do Nascimento, que foram executados no dia 08 de novembro. Os demais foram condenados a penas de degredo, prisão ou chibatadas. Referências Bibliográficas ARAÚJO, Ubiratan Castro de. A Bahia no tempo dos Alfaiates. Salvador: Academia Baiana de Letras, 1999, p. 07-19. JANCSÓ, István. 0 1798 baiano e a crise do Antigo Regime português. Salvador: Academia Baiana de Letras, 1999, p. 51-76. JANCSÓ, István. Na Bahia, contra o Império: história do ensaio da sedição de 1798. São Paulo: HUCITEC/EDUFBA, 1995. RUY, Affonso. Primeira Revolução Social Brasileira. 2ª ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1978. 29

SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Conflitos raciais e sociais na sedição de 1798 na Bahia. Salvador: Academia Baiana de Letras, 1999, p. 37-49. TAVARES, Luis Henrique Dias. História da Bahia. 10ª ed. Salvador; São Paulo: UNESP; Edufba, 2001. TAVARES, Luis Henrique Dias. História da sedição intentada na Bahia em 1798. São Paulo: Livraria Pioneira, 1975. 30