TÍTULO: SOBRE A POSSIBILIDADE DE UMA MORAL CIENTÍFICA EM DESCARTES laclercio@hotmail.com 1 Alexandre_mb@hotmail.com 2 1. Introdução O presente artigo visa mostrar que as questões morais analisadas por Descartes compõem um momento ímpar de sua filosofia, que tal momento, é a chave da abóbada de todo o seu edifício filosófico e que para uma boa compreensão de sua moral faz-se pressuposto indispensável uma compreensão de seu método, que articula toda a sua filosofia. Embora o Cogito seja o tema mais analisado na sua obra, este não parece ser o ponto mais complexo de sua filosofia, mas sim a Moral, ciência última e mais elevada conforme o próprio Descartes aponta. A moral é a mais elevada e mais perfeita das ciências é o último grau da Sagesse. A sageza, conforme aponta Descartes é a perfeita simetria da vontade com o entendimento, ocorrendo quando a primeira subjuga-se ao segundo e assim podemos construir o melhor dos juízos sobre o que pretendemos dar assentimento. A proposta de trabalho agora apresentada tem como foco exatamente a moralidade, E buscamos uma análise pormenorizada acerca da Moral-Ciência Cartesiana, para tanto interessa-nos compreender a gênese do pensamento moral e consequentemente a sua exposição no que parece ser dois momentos, a saber: Morale pour provision e doutrina definitiva da moral, último grau da sageza; conforme mostrado anteriormente. Toda a produção cartesiana parece resultado da aplicação do seu método, este, então seria um instrumento propedêutico para o início do estudo moral. O pensamento moral encontrado em Descartes localiza-se em escritos com características muito diversas, exposto frequentemente de modo ocasional, e que oferece um tom pessoal como visto na parte III Discurso do Método. Pretendemos mostrar que grandes estudiosos como Geuroult, Rodis-Lewis, e Lívio Teixeira já propuseram respostas às questões morais encontradas em Descartes, no entanto, por mais frutíferas que tenham sido tais teorias, ainda acreditamos que novas conjecturas possam ser levantadas. 2. Desenvolvimento Referenciada em tantas obras, a Moral - parece-nos - assume um lugar privilegiado, tanto que é no topo da árvore que Descartes a põe, é a coroa de um caminho verdadeiramente filosófico. Cabe agora buscar fundamentá-la como possibilidade de conhecimento científico; que tem como premissa a aplicação do método. O que não parece fácil para um filósofo como Descartes. 1 Graduando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará UFC Campus Cariri. 2 Professor (orientador) do curso de filosofia da Universidade Federal do Ceará UFC Campus Cariri. 1
Nesse meio tempo, um problema não está solucionado. Já que ainda não está completa a reconstrução da Verdade pelos primeiros princípios, como é possível uma Moral Científica? Quais as bases suficientes para renovar sua moral? Já que uma moral definitiva deve assentar-se na posse total da verdade, parece que durante o tempo em que esta não possa ser levada a cabo, uma vez que a sabedoria mal iniciou seu dilatado caminho, não se pode ainda propor tal moral. Descartes parece imediatamente obrigado a admitir uma moral provisória a fim de superar a perplexidade com que a revisão dos princípios da ciência pode ameaçar as decisões da vida prática. Na vida prática não se pode cessar a ação até que se tenha convicção de agir conforme o método, se é que isso é possível. Todavia, cabe fazer uso de uma moral provisória para evitar a irresolução nos assuntos da vida prática. O pior mal, em relação às paixões, é a irresolução. É por isso que se tem a necessidade, no momento da construção de um novo conhecimento, de uma moral, mesmo que provisória, para abrigar os juízos. (CANTELLI, 2011, p. 26). Tal moral provisória seria apenas o único meio de asseverar as ações do homem na defesa de ideia do agir o melhor possível. Até que o método permita a Descartes, fundar suas ações em um conhecimento seguro ele faz uso de uma Moral Provisória, mas, parece não haver alusão à passagem desta, para uma Moral Definitiva, que, via de regra, deveria ser erguida sobre a verdade e sobre a ciência; que fosse tal moral, dedutível através de certo número de princípios verdadeiros e de conhecimentos certos sobre o universo e sobre o homem (TEIXEIRA, 1990, p. 100). A Moral Definitiva, ou moral racional é o fruto supremo da sabedoria, do agir certo, no domínio da verdade pelos primeiros princípios. Mas como isso é possível? Teria Descartes deixado, no conjunto de sua obra elementos que realmente pudessem fundamentar tal passagem de uma moral provisória para uma Moral Definitiva? Ou ainda, moral Definitiva, Científica e Racional podem ser consideradas idênticas? As questões acima mencionadas tornam-se um enigma ancorado nas tão abrangentes declarações do próprio filósofo a respeito da moral. Na III parte do Discurso, é apresentado por Descartes as regras fundamentais para uma moral por provisão; nas Correspondências com Elizabeth são expostos conselhos para se alcançar uma vida virtuosa e feliz; e, no Tratado das Paixões são enumeradas, analisadas e classificadas as diferentes paixões e é mostrado como essas podem estar relacionadas à união substancial entre corpo e alma. Com esse elenco de temas trabalhados por Descartes, fica inegável que há de fato uma preocupação sobre a moral, no entanto, a dificuldade, no que concerne a esses estudos, é se seria possível retirar daí um ensinamento científico sobre a moralidade? Ou seja, um ensinamento que tenha como critério fundamental de validação, clareza e distinção: regra geral da ciência cartesiana. Tal questão, já proposta por Geuroult, é por ele mesmo respondida afirmando que: Este é o drama da moral cartesiana, que se desenrola através de uma inextrincável complicação de uma doutrina provisória que anuncia uma doutrina definitiva que deve tomar o seu lugar e de uma doutrina definitiva que em contrapartida confirma e consolida, de uma vez por todas, a moral que se acreditava ser provisória. (GUEROULT, 1968, p.239) (tradução nossa). Nesta passagem Geuroult afirma que a doutrina definitiva da moral deve tomar o lugar da doutrina provisória, no entanto, aquela parece já ser constituída por esta, de modo que a moral provisória parece ser idêntica torna-se moral definitiva e conserva as mesmas características daquela. A conclusão a que chega Geuroult é semelhante à de Teixeira, que diz: o método cartesiano não apenas diz sobre aquilo que se pode conhecer clara e distintamente, mas sobre o que não se pode conhecer sob esse aspecto que é o caso da união substancial da alma e do corpo, plano próprio das questões morais. Diz ainda Teixeira: não existe moral definitiva em 2
Descartes [...] mas existem fundamentos certos e, portanto, definitivos em moral que, se não permitem a determinação teórica da conduta são, contudo, elementos essenciais de toda reflexão moral. (TEIXEIRA, 1990, p. 114). Para Teixeira, a moral cartesiana é racional, mas não cientifica, já que esta não pode, por sua própria gênese, ser orientada com os preceitos da ciência cartesiana, uma vez que ela (a moral) é resultado da união substancial da alma e do corpo, configurando naturalmente ideias confusas. No entanto, na sequencia da exposição de suas ideias, Teixeira acrescenta que o método cartesiano se destina não só a descobrir a solução dos problemas que tem solução, mas também a descobrir que determinados problemas não tem solução cientifica. É exatamente o que se dá com a moral. (TEIXEIRA, 1990, p. 114). Por fim, nós acreditamos que a solução apresentada para a questão da compatibilidade de uma moral provisória para um moral cientifica ainda não foi por completo exaurida, e uma pesquisa atenta e demorada pode revelar elementos que podem ter passado despercebido nas análises até agora propostas. Embora modesta, a contribuição que desejamos dar pode ter valor para os estudos contemporâneos acerca do pensamento cartesiano. 3. Metodologia O percurso que esta pesquisa deve seguir é o de realizar uma leitura crítica acerca do pensamento cartesiano, primeiramente, no que tange a seus escritos relacionados ao estabelecimento do Cogito, como verdade propedêutica. Para tanto, não se pode abdicar de uma leitura atenta às Meditações Metafísicas bem como aos Princípios da Filosofia, onde a doutrina cartesiana é fundamentada; e posteriormente, avançar, conforme possível, levando em conta o nível em que esta pesquisa está inserida, na análise dos conceitos de Moral. Tais conceitos não centram-se apenas em uma única obra, mas são tratados por Descartes em vários momentos, o que deve exigir uma leitura igualmente atenta do Discurso do Método, das Cartas à Elizabeth e das Paixões da Alma, que é a chave de abóbada de todo o edifício e sem dúvida o escrito de Descartes mais elaborado sobre assunto moral. (TEIXEIRA, 1990, p. 151). Qualquer que tenha sido o motivo ou propósito de Descartes ao deixar, a análise do tema da Moral fragmentado em varias obras, esta discussão também apreciará, a busca de uma unidade conceitual-cronológica deste tema na démarche de suas obras; e, de modo secundário: estabelecer considerações sobre a relação entre a Moral e a Sagesse em Descartes. A sagesse consiste no saber querer segundo o conhecimento da verdade pelas primeiras causas, e compreende tudo: é o conjunto das ciências e de suas aplicações práticas. Descartes faz dela o objeto central, a concepção fundamental de sua Filosofia (TEIXEIRA, 1990, p. 100). Constata-se que é por demais complexo, esse estudo moral realizado por Descartes, uma vez que não se apresenta dotada de um caráter unívoco e definitivo no decorrer de suas considerações filosóficas. Então, a pedra de toque para atingir tal abrangência conceitual, seria - acreditamos a realização primeira de uma leitura que tentaria decifrar a base histórico-cronológica, a que estaria imbricada a abordagem cartesiana dos elementos relacionados à moralidade. Todavia, tal empresa não pode ser feita sem antes buscar uma compreensão pormenorizada do seu método, articulador de toda a sua filosofia. Novamente Teixeira, assevera que no estudo da ciência de Descartes não será grande o Prejuízo de considerar somente o papel da inteligência. O mesmo não se pode dizer quando temos que estudar a moral. (TEIXEIRA, 1990, p. 15) Mais adiante, ainda no mesmo texto, há novamente uma ressalva de que o caminho do progresso moral é o caminho do desenvolvimento da inteligência (idem, p.15). Assim, o conhecimento da moral cartesiana, pressupõe um mergulhar em sua filosofia como um todo. 3
Recorrer aos escritos na língua original e comparar as traduções de que possamos ter acesso deve ser outra pauta do nosso processo investigativo, a leitura dos grandes comentadores tais como, Martial Gueroult, G. Rodis-Lewis, Vance G. Morgan dentro outros, deve tomar muito do nosso tempo. Portanto, procurar suas fontes, conhecer os contemporâneos com os quais ele dialogou e confrontou suas teses parece decisivo para compreender a edificação de seu pensamento. É exatamente isso que se objetiva: realizar (conforme o possível nesse nível de pesquisa) um exame dos contextos e textos que atravessaram o pensamento de Descartes, para, em seguida, concretizar o trabalho de extrair o(s) sentido(s) que sua noção de moral teve na unidade de sua obra. 4. Conclusão No conjunto da obra de Descartes encontramos escritos sobre os mais variados ramos do conhecimento, da geometria à medicina e de epistemologia à moral, no entanto percebe-se que existe uma sintonia em toda essa gama de estudos cartesianos, já que o seu Método parece está presente em todos os seus escritos. No que se refere à moral, tema maior de nossa proposta de estudo, tudo parece está um nível acima, pois estabelecer um projeto moral em Descartes, que só admitia como conhecimento científico aquele que passasse pelo crivo da razão, não parece fácil, ainda mais não tendo ele deixado um tratado que, de fato, fosse sobre a Moral. Encontramos sim, no Discurso, em algumas de suas correspondências, nas Meditações e nas Paixões da Alma, elementos que remetem a um conhecimento moral, mas nenhuma dessas obras é propriamente uma Scientia sobre a moralidade. Se houver uma relação de necessidade entre Moral Científica e Sagesse, uma vez que todos os preceitos da moral só valem em função de um só e único preceito: cultivar a razão e buscar a verdade, (KUJAWSKI, 1961, p.91) o instrumento para tal relação e busca da verdade não pode ser outro senão o método. Este mandamento visa apontar a via da sabedoria ( conhecimento da verdade pelas primeiras causas ), que nos conduz ao Bem Supremo, que em Descartes podemos identificar com o bom uso do livre arbítrio. Ademais, o bom uso do livre arbítrio não difere em nada do saber querer, mais uma vez o método parece formular a ação moral. Eis aí: a sabedoria cartesiana é a culminância do saber, e o saber cartesiano é saber querer. Na carta prefácio dos Princípios em que Descartes dedica a Elizabeth é dito: Das duas coisas requeridas à Sageza, tal como a consideramos, a saber: que o entendimento conheça tudo o que é bem, e que a vontade esteja sempre disposta a segui-lo, das duas resta a vontade, porque todos os homens podem possuí-la igualmente, ao passo que o entendimento de alguns já não é tão bom como o de outros.(descartes, 1998, p. 19) Pelo que se extrai do excerto acima, não basta possuirmos um bom entendimento, é primordial que este regule as nossas volições para que não atuemos de modo acrático; o que revela fraqueza da nossa vontade, nos levando ao erro, pois este ocorre quando nossa volição nos leva a realizar algo que julgamos não ser bom, o poder de bem julgar é dado pelo entendimento quando este retém a correta aplicação do método, já a vontade de escolher o melhor possível é do âmbito moral. Assim, o método deve ser sim alocado no campo moral, senão, como se pode buscar o bom senso para se atuar o melhor possível? Ainda que agir o melhor possível não seja, agir com certeza e evidencia, é o método que possibilita chegar o mais próximo disso possível. A certeza que o método impõe no que se refere à moral é a de que o entendimento operou 4
conforme lhe é próprio: subordinando a vontade e evitando assim o desvio do caminho reto. É isso que acreditamos poder ser trabalhado e analisado na pesquisa proposta nestas linhas. 8. BIBLIOGRAFIA DESCARTES, René. Cartas. Introdução de Gilles-gaston; prefácio e notas de Gérard Lebrun; tradução brasileira de J. Guinsburg e Bento Prado Júnior. 1. Ed. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).. Discurso do Método. Introdução, análise e notas: Étienne Gilson. Tradução brasileira de: Maria Ermantina Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2007(clássicos)., Os Princípios da Filosofia. Tradução portuguesa de: Ferreira, Alberto, 7 ed. Lisboa: Guimarães Editora, 1998., Regras Para a Orientação do Espírito. Tradução brasileira de: Maria Ermantina Prado Galvão. 2ª Ed. - São Paulo: Martins Fontes, 2007 (clássicos). CANTELLI, Lílian. Moral e Terapêutica na Filosofia Cartesiana. São Paulo, 2011, 106 p. (Dissertação de Mestrado) Universidade São Judas Tadeu. FORLIN, Enéias. A Cisão do Cogito. Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 11, n. 1, p. 143-157, jan-jun. 2001. GUEROULT, Martial. Descartes Selon L ordre dês Raisons: L âme et Le Corps, Tomo II. Paris: Aubier Philosophie, 1968. KUJAWSKI, Gilberto de Mello. Descartes Existencial. São Paulo: Editora herder, 1969. SÊNECA, Lúcio Aneu. Da Vida Feliz. Tradução de João Carlos Cabral Mendonça; revisão da tradução Mariana Sérvulo da Cunha. 2ª Ed. São Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2009. TEIXEIRA, Lívio. Ensaio sobre a moral de Descartes. São Paulo: Editora brasiliense, 1990. 5