1 Introdução Quantos Dígitos? 1 Roberto Ribeiro Paterlini Departamento de Matemática da UFSCar É muito comum encontrarmos, em textos de Matemática para o 1 e 2 graus, questões sobre contagem de dígitos Lendo o problema 1 da RPM n 30, página 43, lembrei-me de ter visto uma fórmula no livro de História da Teoria dos Números, de Leonard Eugene Dickson Folheando o livro, encontrei, na página 457, o seguinte resultado, publicado por M d Ocagne em 1888: Ao escrever os números naturais 1, 2, 3,, N, onde N tem n dígitos, o número total de dígitos escritos é n(n + 1) 1 n, onde 1 n = 11 1 tem n algarismos iguais a 1 Esta fórmula me parece bastante útil Por exemplo, ela resolve facilmente o seguinte problema: Quantos dígitos são usados, no total, para escrever os números naturais de 1 a 10 1000? Como 10 1000 tem 1001 dígitos, a resposta é 1001(10 1000 +1) 1 1001 Levando em conta que 1 1001 = 11 {{ 1 = 10 1000 + 10 + + 1 = 1 [ ] 10 1001 1, 1001 verifica-se que o número de dígitos usados é 1 [ ] 8 10 1000 + 010 Apresentamos duas demonstrações da fórmula de M d Ocagne 2 Uma demonstração elementar Pretendo passar para o leitor da RPM os passos que segui para demonstrar a fórmula de M d Ocagne Comecei observando que, para escrever os números de um dígito 1, 2, 3,,, usamos dígitos Os números de 2 dígitos, de 10 a, perfazem 10 números, portanto o número de dígitos é 2 10 Existem 100+1 = 10 2 números de três dígitos, portanto usamos 3 10 2 dígitos para escrevê-los Em geral, existem {{ 100 {{ 0 +1 = 10 m 1 m m 1 Publicado na Revista do Professor de Matemática, n 33, 1 quadrimestre de 17, págs 30 a 35 Republicado em Jornal de Matemática Elementar, ano 16, n 17, Lisboa, junho de 18, págs 10-12 1
números de m dígitos Surgiu então a soma D m = + 2 10 + 3 10 2 + + m 10 m 1, que é o número total de dígitos usados para escrever todos os números com m ou menos dígitos Percebi que seria preciso encontrar uma fórmula fechada para D m Examinei primeiro o caso particular m = 5, o que me inspirou como proceder no caso geral Obtive assim o seguinte: D m = ( 1 + 2 10 + 3 10 2 + + m 10 m 1) = { 1 + 10 + 10 2 + + 10 m 1 + 10 + 10 2 + + 10 m 1 + 10 2 + + 10 m 1 + 10 m 1 = { 1 + 10 + 10 2 + + 10 m 1 + 10(1 + 10 + + 10 m 2 )+ 10 2 (1 + + 10 m 3 )+ 10 m 1 (1) { 10 m 1 = + 10 10m 1 1 + 10 2 10m 2 1 m 1 10 1 + + 10 = (10 m 1) + 10(10 m 1 1) + 10 2 (10 m 2 1) + + 10 m 1 (10 1) = (10 m 1) + (10 m 10) + (10 m 10 2 ) + + (10 m 10 m 1 ) = m10 m (1 + 10 + + 10 m 1 ) = m10 m 1 m Dado um número natural N com n dígitos, existem N 10 n 1 + 1 números com n dígitos de 10 n 1 a N, inclusive Assim, o número total de dígitos usados para escrever os números 1, 2, 3,, N é D n 1 + n(n 10 n 1 + 1) = (n 1)10 n 1 1 n 1 + n(n 10 n 1 + 1) = = n(n + 1) (10 n 1 + 1 n 1 ) = n(n + 1) 1 n, o que demonstra a fórmula de M d Ocagne 2
3 Demonstração pelo Método da Indução Finita Enquanto desenvolvia a demonstração anterior, lembrei-me de utilizar o Método da Indução Finita O resultado foi o seguinte Seja P (N) a afirmação: ao escrever os números naturais 1, 2, 3,, N, onde N tem n dígitos, escrevemos n(n + 1) 1 n dígitos Se N = 1, o número acima é 1(1 + 1) 1 = 1, o que corresponde à realidade Portanto, P (1) é verdadeira Suponhamos que P (N) seja verdadeira Para provar que P (N + 1) é verdadeira, temos dois casos a considerar: 1 caso: o número de dígitos de N + 1 é n Então o número de dígitos necessários para escrever 1, 2, 3,, N +1 é n(n + 1) 1 n + n = n((n + 1) + 1) 1 n, e vale P (N + 1) neste caso 2 caso: o número de dígitos de N + 1 é n + 1 (isto significa que N = (n s)) Então o número de dígitos necessários para escrever 1, 2, 3,, N +1 é n(n + 1) 1 n + n + 1 = (n + 1)(N + 2) 1 n N 1 Observe que 1 n+1 1 n = 111 {{ 1 11 {{ 1 = 10 n e N + 1 = {{ +1 = 10 n n+1 n n Portanto, 1 n+1 1 n = N + 1, e 1 n N 1 = 1 n+1 Em conseqüência n(n + 1) 1 n + n + 1 = (n + 1)(N + 2) 1 n+1, e P (N + 1) vale também neste caso Em virtude do Método da Indução Finita, a afirmação P (N) vale para todo N 1 Com isto encerramos esta segunda demonstração da fórmula de M d Ocagne 4 O problema inverso A fórmula de M d Ocagne resolve diretamente problemas do tipo: quantos dígitos Consideremos agora o problema inverso, que pode ocorrer nas duas formas seguintes: se, ao escrevermos os números naturais 1, 2, 3,, N, escrevemos d dígitos, quanto vale N? Ou então: escrevendo-se a sucessão dos números naturais 1, 2, 3,, qual é o d-ésimo dígito? Se nos propusermos a utilizar a fórmula de M d Ocagne para resolver problemas deste tipo, é necessário observar algumas propriedades Começamos com alguns exemplos Exemplo 1 Ao escrever os números naturais 1, 2, 3,, N, um indivíduo observou que escreveu 1002 dígitos Qual o valor de N? Solução Afirmo que N tem 4 ou menos dígitos De fato, se N tivesse 5 ou mais dígitos, o número de dígitos usados seria maior ou igual ao número de dígitos usados para escrever 1, 2, 3,, 10000, que é 5(10000 + 1) 11111 = 3884 > 1002 Suponhamos que N tenha 4 dígitos A equação a ser resolvida é 3
4(N + 1) 1111 = 1002, que não tem solução para N N Vamos supor então que N tenha 3 dígitos A equação a ser resolvida é 3(N + 1) 111 = 1002, da qual resulta N = 370 Exemplo 2 Ao escrever os números naturais 1, 2, 3,, N, um estudante observou que escreveu 4534 dígitos Qual o valor de N? Solução Como 4534 tem 5 dígitos, conjecturamos que N deve ter 5 dígitos De fato, se N tivesse mais do que 5 dígitos, o número total de dígitos seria 6(100000 + 1) 111111 = 48885 > 4534 Portanto, N tem 5 ou menos dígitos Suponhamos que N tenha 5 dígitos A equação a ser resolvida é 5(N + 1) 11111 = 4534, de que resulta N = 11300 Exemplo 3 Escrevendo-se a sucessão dos números naturais 1, 2, 3,, qual é o 10000 dígito? Solução O 10000 dígito está em um número natural N, que deve ter no máximo 5 dígitos Pondo n = 5 na equação n(n + 1) 1 5 = 10000 não dá certo Pondo n = 4, obtemos N = 2776 + 3 4 Observando que 4(2776 + 1) 1 4 = 7, vemos que o 10000 dígito é atingido ao se escrever o 3 dígito de 2777 Portanto, o dígito procurado é 7 O estudo destes três exemplos e de outros similares nos leva a considerar a função f : N N, f(n) = n(n + 1) 1 n, onde n é o número de dígitos de N, e 1 n = 11 1 (n 1 s) Interessam-nos as seguintes propriedades de f: a) f é estritamente crescente, e, portanto, injetiva; b) Im(f) N ; c) se o número de dígitos de N é n, então o número de dígitos de f(n) é n Para verificar a), observe que f(n +1) = f(n)+ número de dígitos de N +1 Logo, f(n +1) > f(n) para todo N 1 Isto prova também a afirmação b): se f(n) < m < f(n + 1), então m / Im(f), e existem tantos números m s nessa condição quantos são os dígitos de N + 1, menos um Para verificar c), observe que, se n é o número de dígitos de N, então N 10 n 1 Daí f(n) f(10 n 1 ) = n(10 n 1 + 1) 1 n = n(10 n 1 + 1) 10n 1, que se verifica ser 10 n 1 Logo, o número de dígitos de f(n) é n A propriedade c) foi utilizada nos exemplos acima na seguinte versão equivalente: se o número de dígitos de f(n) é m, então o número de dígitos de N é m O exame dos exemplos acima pode nos levar a conjecturar que se m é o número de dígitos de f(n), então o número de dígitos de N é m ou m 1 De fato, isto vale para m 10 Mas, f( {{ ) = 108888888888 {{ 11 13 Finalmente, observamos que é possível exprimir f(n) em função de N apenas Se n é o número de dígitos de N, temos 10 n 1 N < 10 n n 1 log N < n n 1 = log N n = log N + 1 Aqui, log é o 4
logarítmo na base 10, e é a função do maior inteiro Assim, ( ) f(n) = log N + 1 (N + 1) 1 log N +1 Isto nos sugere outra forma de abordar o problema inverso: resolver a equação f(n) = d em N tomando para f a expressão acima Entretanto, esta abordagem só é praticável usando-se recursos computacionais Para encerrar, deixo ao leitor estudante um enigma Quando eu estava examinando exemplos para o problema inverso, considerei o seguinte caso: o número de dígitos é d = 18 Como 18 tem 3 dígitos, sabemos que N tem 3 ou menos dígitos Suponhamos que tenha 3 Então a equação é 3(N + 1) 111 = 18, donde 3(N + 1) = 300, e segue que N = Assim, começamos supondo que N tem 3 dígitos, mas obtivemos N com dois E N = é a resposta correta, o que se verifica resolvendo a equação 2(N + 1) 11 = 18 Como explicar isso? Existem outros casos? 5 Referências bibliográficas [1] Dickson, L E, History of the Theory of Numbers New York, Chelsea Publishing Company, 152 [2] RPM 30, problema n 1, página 43, seção Problemas São Paulo, Sociedade Brasileira de Matemática, 1 quadrimestre de 16 5