CONCEPÇÕES ACERCA DO SER NEGRO EM PESQUISA BIBLIOGRÁFICA PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS



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Transcrição:

CONCEPÇÕES ACERCA DO SER NEGRO EM PESQUISA BIBLIOGRÁFICA PARA A EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Rebeca de Alcântara e Silva - UFPI rebeca_alcntara@yahoo.com.br Raira Maria Sousa Rocha - UFPI raira-mariarocha@hotmail.com Introdução O presente trabalho é resultado de estudos realizados como atividade integrada ao projeto de ensino, pesquisa e extensão Formação de professores na UFPI CAFS para a Implementação da Lei N 10.639/2003 - obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afrobrasileira e da educação das relações étnico-racias nas escolas de ensino básico vinculado ao Programa de Bolsa Permanência. No âmbito do projeto temos como objetivo principal formar estudantes universitários, em especial da UFPI, e professores da educação básica na cidade de Floriano, para que valorizem a diversidade étnico-racial, com ênfase na população negra. Para tanto nos baseamos na lei N 10.639 de 9 de janeiro de 2003 que altera a Lei N 9394/96 e versa sobre a obrigatoriedade do ensino da história e da cultura africana e afrobrasileira nas escolas de ensino básico e da educação das relações étnico-racias. O projeto está organizado em várias etapas 1 entre as quais a pesquisa bibliográfica. Após várias sessões de estudo: debates e leituras individuais e coletivas, o grupo reuniu os elementos considerados mais significativos em torno de alguns temas, entre os quais : o ser negro, escolhido para o presente trabalho escrito. Através de nossa trilha investigativa observamos algumas concepções sobre o ser negro presentes em material bibliográfico e percebemos o quão estão permeadas por ideologias, que por sua vez são transmitidas para a sociedade em geral e, em especial para os estudantes de ensino básico. Tais conteúdos ideológicos, a nosso ver, contribuem significativamente para a 1 A primeira etapa do projeto é a pesquisa bibliográfica para que as estudantes bolsistas possam aproximar-se do tema e visitar cada uma sua etnicidade. Em seguida iremos realizar cursos de formação de professores acerca do tema em escolas de ensino fundamental na cidade de Floriano-PI.

2 leitura que fazemos da população negra, de sua história, cultura e de suas relações sociais, podendo elevar ou rebaixar a auto-imagem dos sujeitos negros. Mas afinal, que tendências e concepções sobre o negro estão presentes em nossas investidas investigativas? Quem é esse sujeito que nos aproximamos por meio da pesquisa bibliográfica? Primeiras aproximações com o conceito ser negro Em pesquisa 2 realizada acerca da construção coletiva de conceitos, sobre o ser negro por estudantes universitários, podemos perceber notadamente a variedade de ideologias atravessadas no imaginário individual e coletivo. Entre enumeras concepções presentes na pesquisa o ser negro aparece como coitado que necessita da ajuda do Estado para sobreviver e que não consegue ascender economicamente por esforço próprio. Nesse sentido foi comparado a um urubu que vive dos restos e dejetos da sociedade branca. Como demonstra um dos estudantes partícipe da pesquisa: É o pior bicho, um urubu. É o bicho mais seboso que existe. Esse bicho se sente inferior aos outros animais porque ele sobrevive de coisas deterioradas. Ele vive dos restos da sociedade, do que sobra. Os piores empregos, as piores moradias, uma vida difícil (SILVA, 2007, P. 151). Outra concepção presente no estudo é a do ser negro brasileiro miscigenado. Aquele que porta várias tendências culturais por ter sangue branco, indígena e negro, conceituado como pardo. Por outro lado surge a concepção do ser negro espiritualizado que não esquece suas raízes africanas e vem lutando desde os tempos da escravização criminosa até nossos dias pelos seus direitos como cidadão brasileiro. A pesquisa concluiu que não há uma única identidade negra ou apenas uma concepção acerca do ser negro, mas uma multiplicidade de percepções, o que gera várias tendências de idéias sobre o ser negro no imaginário coletivo. Seria perceber o ser negro sem uma única identidade cristalizada, parada, mas um ser negro móvel, dinâmico e reelaborado nas mentalidades dos povos dependendo das circunstâncias e condições 2 A menina e o erê nas viagens ao ser negro uma pesquisa sociopoética com educadores em formação é uma pesquisa de mestrado que usa como referencial teórico metodológico a sociopoética. Os sujeitos, considerados pelas pesquisas convencionais como objetos de pesquisa, nesse referencial constituem-se em co-pesquisadores e em conjunto com o pesquisador oficial procuram elaborar conceitos novos sobre um tema gerador a partir de técnicas especiais, que utilizam a inventividade e a escuta sensível para a produção do conhecimento científico.

3 históricas, educacionais, entre outras. A pesquisa elabora, finalmente, um devir 3 negro. Segundo Zila Bernd (1988,) o poeta senegalês Senghor acreditava que existe uma alma negra. Ele falava dessa alma negra como a psicologia do negro africano. Senghor acreditou nessa alma emotiva do negro em contraposição à racionalidade do branco. Essa alma do negro africano está carregada de valores negros, tais como a vida, a emoção e o amor. Para Lívio Sansone o termo negro se refere mais diretamente ao fenótipo negróide, bem como a algum contexto especial que liga o indivíduo a África. Adverte o pesquisador que o que aqui entendo por negro são as pessoas que, em algum contexto específico, vêem a si mesmas e são vistas pelas pessoas de fora como sendo de ascendência africana ou parcialmente africanas (2003, p. 212). Nesse caso ser negro associado à África nos remete a uma negritude tradicional. É negro o sujeito que preserva vínculo com o continente africano seja pelos traços negróides, ou por sua adesão às várias manifestações da cultural afrobrasileira independente da cor de sua pele. A estigmatização do ser negro No imaginário ocidental, a idéia do negro é relacionada ao perigoso, ao mal. Nesse sentido, Julvan Moreira de Oliveira analisa o mal nos mitos que influenciaram o pensamento ocidental. Segundo ele, no pensamento ocidental a escuridão, a sombra e a cor negra assumiram representações simbólicas do mal, da desgraça, da perdição e da morte. Estes atributos negativos, presentes em muitos mitos, são associados às populações que possuem a cor negra, como um estigma, principalmente através da educação (2003, p. 01). A mitologia solidificou no Ocidente as dicotomias: luz e trevas, Deus e diabo, branco e negro, deuses benéficos e divindades do horror. O mal sempre se opondo ao que é luz. O diabo é negro: Seth aparecia por vezes como um porco negro, Dioniso também era ocasionalmente negro e o mundo dos mortos é escuro desde a Grécia, passando 3 Maiores detalhes podem ser consultados em BAREMBLITT (1998).

4 pelo Irã, indo até Roma. Existe nesse imaginário ocidental a figura do herói, indivíduo que enfrenta criaturas monstruosas. O herói está relacionado à cor branca, na mesma medida em que o monstro ou demônio estão relacionados ao negro, às trevas (OLIVEIRA, 2003). Esse conjunto de heranças culturais, oriundas do pensamento mitológico, influenciou a construção da idéia do negro como um ser humano inferior. Posteriormente, no século XV, com as grandes descobertas, procurou-se saber se tanto os ameríndios quanto os vários grupos de negros africanos seriam realmente humanos como os europeus. Algumas teorias sustentaram a idéia de que os povos descobertos eram bestas, nãodescendentes de Adão, por força do pensamento teológico-político vigente naquele período. Mesmo com o enfraquecimento de tais ideologias cristãs e o fortalecimento da racionalidade universal, construída pelos filósofos ilustrados, diversos teóricos corroboraram a construção de um pensamento que privilegiava a raça branca em detrimento da negra. Segundo Santos, a chave de seus argumentos encontra-se na utilização do conceito de raça, transportado da zoologia e da botânica para a nascente ciência do homem em três grandes raças hierarquizadas dentro de uma escala de valores, na qual a sua própria raça ocuparia uma posição superior [...]. Buffon explicava a inferioridade dos negros africanos pela teoria do clima. Segundo ele, vivendo entre os trópicos [...] os negros não encontraram condições ideais para o desenvolvimento corporal, moral, intelectual e estético tal como o fizeram os povos europeus, situados num clima temperado (2002, p. 10-11). A teoria da distinção racial baseada nas ciências biológicas surge no século XIX, teoria sobre a qual se pauta a idéia de que alguns indivíduos são forjados pela natureza para o comando e outros para a obediência, que seria então o caso das raças branca e negra respectivamente. Consoante a essa visão, Santos afirma ainda a existência da idéia de que o sangue negro deteriora o branco. O negro seria marcado pela imaginação, sensibilidade e sensualidade e o branco, pela inteligência, praticidade, ética e moral (2002, p. 12). O branco estaria em um estágio evolutivo acima do negro, que se encontraria em estágio ainda primitivo. As teorias acima mencionadas potencializaram práticas racistas as mais variadas. Desde a colonização até a abolição da escravatura na penúltima década do século XIX, a população negra brasileira foi tratada pela elite branca como coisa, apesar das mais variadas maneiras de resistência a essa idéia de coisificação. As estratégias

5 de resistência variavam desde a fuga, passando pelo acordo entre escravizado e escravocrata e chegando mesmo à compra de alforrias, o que concorreu para amedrontar a elite brasileira à época. Estimava-se que a população negra brasileira de então girasse em torno de 70%. Não era difícil, portanto, temer um levante, pois, desde o início mesmo da escravidão no Brasil, os sujeitos escravizados elaboravam e reelaboravam formas de combate à escravização criminosa. O medo do ser negro e a elite branca brasileira. O conjunto de ideologias sobre o negro, elaboradas na história do Ocidente, impregna o Novo Mundo. Ao longo do regime de escravização negra no Brasil, foi constituindose o estigma da cor, norteado pelas teorias racistas de dominação da elite brasileira branca. No século XIX, é iminente a possibilidade da imigração. Com a esperada abolição, intelectuais e políticos vêem-se diante do problema de o que fazer com o negro ex-escravo e futuro cidadão. Esta temática tomou conta de debates, jornais, do Senado e demais segmentos sociais. Surge então o medo de o povo negro, ao ser liberto, tome o país, retirando a população branca de sua condição privilegiada (AZEVEDO, 1997). Como a sociedade brasileira constituía-se de uma minoria de ricos proprietários de terra, uma maioria de escravos (negros e mestiços) cativos e fugitivos e uma pequena parcela de cidadãos pobres livres, começou-se a pensar em inúmeras formas de deter a formação de uma possível nação negra no país. A imigração então passou a ser encarada como uma solução honrosa para eliminar o signo de atraso que o negro representava e o medo da miscigenação em larga escala. O alastramento das teorias racistas só aumentou com a Abolição: ora, se os negros não eram inferiores, por que não progrediram como os imigrantes que chegaram aqui? Somando-se um mito após o outro, inferioridade, vagabundagem incompetência. Foi-se esboçando o perfil do homem negro como anticidadão, como marginal (SANTOS, 2002, p. 119). Nyamien afirma que alguns autores brasileiros, como Oliveira Vianna, acreditavam que o imigrante europeu representava a possibilidade de purificação étnica. Apostava-se no mestiço como um tipo em evolução que, embora não chegasse a atingir a superioridade dos brancos, poderia ser utilizada em algumas profissões mais finas (1999, p. 84). O pensamento da intelectualidade brasileira era influenciado

6 pelas teses européias do racismo científico por um lado e também se casavam com as idéias brasileiras de superioridade branca por outro. Discursos ideológicos racistas sobre a etnia negra incorporaram-se ao imaginário social e orientaram as práticas dos cidadãos, transformando-se em senso comum. Estas práticas continuam exercendo seu poder ideológico tanto entre os segmentos brancos como entre uma grande parcela dos afrodescendentes. Valorização positiva do ser negro Contudo, ao lado de todo o mal, fruto do racismo criminoso, gingou a força determinada do povo negro que procurou singularizar, frente a todas as adversidades, seu ser negro, sua cosmovisão africana e logo a representação de si valorizada. A essa representação positiva do negro/a pelo negro/a Guimarães chama de modernidade negra que se inicia de fato com a abolição da escravatura e ainda significa efetivamente: A incorporação dos negros ao Ocidente enquanto ocidentais civilizados e acontece em dois tempos que às vezes coincidem, às vezes não: um primeiro, em que muda a representação dos negros pelos ocidentais, principalmente através da arte, fruto intelectual do mal-estar provocado pelas guerras e pelas lutas de classe na Europa; o segundo se inicia com a representação positiva de si, feita por negros para si e para os ocidentais (2003, p.03). Essa modernidade negra que apresenta ao mundo a positivação do negro por ele mesmo pode seguir três trilhas, de acordo com Guimarães: A norte-americana, cuja primeira contração foi o New Negro Movement (ou Harlem Renaissance); a franco-africana, que tem também início nos anos 1920, mas se consolida apenas nos anos 1940; e a latino americana, que também se inicia nos anos 1920 e se cristaliza no pós-guerra (2003, p.09). Muitos atores sociais contribuíram para a consolidação desse olhar positivado para o ser negro, ou como diria Guimarães, essa modernidade negra. Entre tantos nomes podemos aferir Alain Locker na América; Aimée Césaire das Antilhas e ainda o célebre Léopold Senghor do Senegal. No campo diretamente ligado às representações simbólicas posso ainda lembrar René Marran, com Batouala em 1921, o primeiro romance negro da história; Shuffle Along, primeiro All-black musical apresentado na Broadway de Flournoy Miller e Aubrey Lyles; Cane de Jean Toomer de 1925. E por

7 fim, Aimé Césaire escreve na década de 1930 o Cahier d um retour au pays natal na revista Volontés escrita esta que fundou o movimento francês da negritude. Já em 1947 surge a revista da negritude intitulada Présence africaine em Paris. Em nosso país tais tendências agigantam-se como ainda contribui Guimarães: No Brasil as iniciativas inspiradas no movimento pela valorização da negritude 4 já aparecem no primeiro jornal negro Menelick, em 1915, enquanto em 1931 a militância negra cria a Frente Negra Brasileira impulsionando assim, o movimento de valorização da identidade negra (2003, p.10). Nas três ultimas décadas do século XX, de acordo com a pesquisadora Florentina da Silva Souza (2005) cresce vertiginosamente o número de escritores/as que se julgam como negros/as exigindo a inscrição de suas vozes como parte de sua textualidade cultural na construção de suas auto-representações. Seguindo Fanon (1995), pode-se afirmar que os textos afrobrasileiros visam a denunciar os véus da representação de origem européia que coloca o seu padrão fenotípico e cultural como modelo absoluto SOUZA (apud Fanon 2005, p. 54). O movimento negro brasileiro quando passa a se preocupar em construir uma imagem valorizada do ser negro, seja no teatro experimental do negro, seja nos poemas, contos e romances negros, desenvolve uma máquina de guerra contra o racismo estigmatizador do esteriótipo afrodescendente. O movimento negro orienta e incentiva seus militantes à publicações de desenhos identitários os escritores militantes aproxima-se da cosmologia africana, os mitos africanos, as religiões de matriz africana, as práticas culturais próprias de seus ancestrais e os movimentos culturais de origem afro (SOUZA 2005). Entendemos que os conceitos que conferem ao ser negro/a valor positivo nessa pesquisa de teor bibliográfico, concordam com a tendência que o século XX impõe fruto da luta e da resistência, bem como da produção artística, literária e acadêmica do movimento negro e do povo negro em geral. São conceitos que se insurgem negando um padrão de 4 A negritude foi antes de tudo um movimento de aceitação de si por parte dos negros nos anos 1940 em Paris. Foi a descoberta da grandiosidade do ser negro.uma atitude política de reconhecimento da humanidade dos afrodescendentes por eles mesmos que sobreviveu ao linchamento psicológico condicionante imposto pela racionalidade científica que fazia crer na inferioridade biológica da raça negra.

8 pensamento historicamente construído pelas teorias racistas que impregnaram as mentalidades e as práticas sociais no mundo ocidental. Conclusões Encontramos em nossa trajetória de pesquisa várias concepções sobre o ser negro. Em primeiro percebemos tendência à denúncia de sua estigmatização por meio da inferiorização da raça negra africana e a superioridade da raça branca européia. Para os estudiosos que tratam das relações raciais a representação negativa do negro na sociedade brasileira é comum e recorrente, o que acaba interferindo na construção do imaginário coletivo e individual sobre esse segmento étnico, comprometendo a construção da identidade, já que a mesma nos parece ser uma construção histórica. Em seguida constatamos literatura voltada à reconstrução da história da escravização criminosa dos povos africanos. Os pesquisadores deixam entrever que o ser negro é um ator social que sempre lutou pelo seu reconhecimento como cidadão brasileiro, sem nunca ter se deixado escravizar. Não foi por menos que a elite branca racista brasileira temia fervorosamente a abolição da escravatura. Era o ser negro construindo sua história e suas lutas para alimentar o eterno enfrentamento da condição de escravizado imposta pela elite brasileira. Era um ser negro militante, abolicionista, politizado e partícipe das mudanças oriundas do Brasil ao final do século XIX, apesar do estigma da cor. Uma terceira tendência em nossa pesquisa nos permite perceber o ser negro como um sujeito que deseja uma nova representação de si. Desde o movimento internacional da negritude, passando pelo teatro experimental do negro (TEN), movimentos sociais de maioria afrodescendente até a produção cultural, literária, artística, científica contemporânea presentes em pesquisas, músicas, poemas, artigos científicos, entre outros. Passamos a perceber que existe na sociedade atual uma leitura positiva acerca do ser negro. Preocupa-nos, para além da denúncia da história racista e das estratégias de estigmatização da nação brasileira, a valorização positiva do ser negro/a, da sua pertença étnico-racial, notadamente no âmbito da educação. Sendo assim entendemos que a tendência de valorização do ser negro coaduna-se com os objetivos traçados nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Africana e Afrobrasileira. Ela pretende fortalecer o processo de afirmação identitária positiva do

9 povo negro e da elevação de sua auto-estima, bem como do reconhecimento de sua importância e de seu papel como ator social atuante e engajado na construção da nação. A nosso ver, após concluirmos essa breve, mas frutífera trajetória de pesquisa bibliográfica, o ser negro é um conceito rico em possibilidades associativas. Ou seja, entendemos o ser negro como um devir negro. Como para Baremblit quando assevera que Se o ser é devir, ele nunca se repete. O que se repete é a diferença absoluta (1988, p.88). Nesse sentido concluímos, sem a pretensão de encerrar o debate, que através do que os professores lêem e assimilaram sobre essa temática e, conseqüentemente, do que oferecem aos seus alunos como leitura de base para o entendimento do assunto é que são construídas grande parte das idéias, concepções e tendências acerca do ser negro. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, C. M. M: Onda negra medo branco. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. BERND, Zilá. O que é negritude. In: Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988. BAREMBLITT, Gregório. Introdução a esquizoanálise. In: Coleção Esquizoanálise e esquizodrama. Belo Horizonte: Biblioteca do instituto Félix Guatarri, 1998. FILHO, Domício Proença: A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos avançados. Vol 28 no 50. São Paulo 2004 GUIMARÃES, Antônio Sergio Alfredo: A modernidade negra Reunião da ANPOCS, Caxambu, outubro de 2002, GT: Teorias sociais e transformações contemporâneas. MUNANGA K. Para entendermos o negro no Brasil de hoje: história, realidade, problemas e caminhos. São Paulo: global: Ação Educativa Assessoria, pesquisa e Informação, 2004. (Coleção Viver, Aprender). NYAMIEN, Francy Rodrigues da Guia: Ser negro nas vozes da escola. Dissertação de Mestrado em Educação Brasileira; UFC, Fortaleza, 1999. OLIVEIRA, Julvan Moreira de: Matizes imaginárias e arquetipais do Negro como mal no pensamento educacional do Ocidente. Trabalho publicado no cd-rum da 26 a Reunião Anual da AMPED: Poço de Caldas, 2003.

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