Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA

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Transcrição:

Associação Nacional de História ANPUH XXIV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA - 2007 Narrativas da nacionalidade: o caso de Euclides da Cunha e do Contestado. Liz Andréa Dalfré "Um novo Canudos?". Essa chamada abria a página do jornal paranaense Diário da Tarde em 25 de setembro de 1912. Num lapso de memória, o leitor recordaria do conflito ocorrido no sertão baiano há quinze anos, tão bem noticiado pelo famoso jornalista Euclides da Cunha. Dando continuidade à sua leitura se surpreenderia ao constatar que longe de estar ocorrendo no Nordeste, como poderia imaginar por um segundo, os sertanejos de tal insurreição estavam mais próximos dele do que estariam de Euclides da Cunha, caso este ainda estivesse vivo naquela data. O evento acontecia nos limites ainda mal definidos do seu próprio Estado. Mas por que a comparação com Canudos? Quais características, neste evento, poderiam levar a acionar o conflito baiano traçando uma comparação? Civilização versus barbárie Pensar o Brasil, sua especificidade em relação à civilização ocidental, seus problemas e as soluções possíveis ou desejáveis para a resolução do seu atraso e das tensões associadas a essa noção, fizeram parte das narrativas que figuraram em jornais e textos produzidos durante o período do Movimento e logo após a ele. Essas questões se tornam importantes, uma vez que a forma como o Movimento do Contestado veio a ser conhecido, relaciona-se com o momento em que as elites intelectuais e políticas do país projetaram um ideal de nação influenciada por noções apropriadas do darwinismo social, do positivismo e do evolucionismo. Diversos autores defendem a idéia de que as teorias explicativas da nacionalidade brasileira desse período estiveram pautadas em noções comuns, evidenciando um amplo campo imaginário referente ao ser brasileiro e ao território como nação. Formou-se, portanto uma problemática nacional, cujas temáticas e padrões explicativos foram (e na opinião de alguns ainda são) persistentes. Entre diversas transformações, encontra-se também a desilusão de intelectuais brasileiros em relação à República e o caráter missionário que atribuem a suas atividades. Essa missão consistia na afirmação de um conhecimento da realidade social em bases científicas que orientasse o processo de consolidação do Estado nacional e seu papel pedagógico de construtor da nação. (LIMA: 1999, p. 49).

2 A civilização não era somente um fim almejado, era o destino para o qual encaminhava-se a humanidade. Na esteira desta reflexão, a noção de homem e de espaço ganharam importância tornando-se objetos de estudo, análise e classificação privilegiados. Tendo a Europa como modelo, construiu-se uma visão acerca daqueles que aqui moravam, dos que conseguiriam ou já estariam bem próximos a esse ideal civilizatório e, de forma dualista, deixando bem claro quem eram os civilizados, denominaram a barbárie brasileira, classificaram-na, encontrando para ela um lugar, geograficamente determinado. Dessa forma, no litoral estariam aqueles mais aptos a conquistar o lugar reservado para os civilizados; enquanto o lugar de bárbaros coube à população que morava no interior, no sertão, onde os narradores da nacionalidade apontavam a predominância do analfabetismo, da ignorância e do fanatismo. Por outro lado, essa população na maioria das vezes designada por esses pensadores como bárbara e inculta conferiu, para o pensamento do período, a autenticidade para uma nação em vias de formação, em um momento em que se buscava a identidade do povo brasileiro. Certamente, um dos trabalhos que melhor demonstram a importância dada a essas categorias, foi a paradigmática obra de Euclides da Cunha, Os Sertões. Como bem apontou Renato Ortiz (ORTIZ: 1986, p. 16), não por acaso, o título dos dois primeiros capítulos é A terra e O Homem. Também não foi por acaso que alguns autores que se voltaram para o Contestado adotaram terminologias aproximadas ou ainda os próprios títulos acima mencionados. Diversas pessoas que analisaram o Contestado, seja no início do século XX ou nas décadas posteriores, apropriaram-se dessas categorias no intuito de explicar o conflito. Muitos, solicitaram a figura euclidiana para relatar os fatos ou utilizaram uma estrutura parecida com aquela presente em Os Sertões para narrar o Movimento do Contestado. Euclides da Cunha, ao escrever sobre Canudos, criou arquétipos que passaram a representar as expectativas das elites intelectuais e políticas do período. De que maneira isso ocorreu e de que forma as narrativas sobre o Contestado se assemelhavam àquelas que serviram de diagnóstico para o restante do país? Para responder a essas indagações, analisaremos o texto de um militar que escreveu sobre o Contestado. Alguns pesquisadores já indicaram a influência euclidiana nas narrativas sobre o conflito, especialmente no que se refere aos textos produzidos pelos militares. Por meio deles, podermos analisar como esse indivíduos anotaram as características do habitat dos moradores do interior, os seus valores e crenças ressaltados, muitas vezes, como exóticos,

3 bem como os caminhos necessários para a resolução de conflitos desse gênero. Além disso, os militares, aqui entendidos como pensadores do Contestado, assumiram o discurso hegemônico da nacionalidade, no interior do qual falar sobre os sertanejos também significou pensar a nação. Que elementos estiveram presentes nesse discurso? Talvez, ao realizarmos esse percurso, poderemos compreender melhor o motivo pelo qual Canudos tem sido adotado com uma certa freqüência nos estudos referentes ao Contestado. Um antropólogo dos sertões O militar que nos interessa para este estudo comparativo é Herculano Teixeira D Assumpção. Seu discurso se inscreve na confluência com as leituras interpretativas da nacionalidade brasileira, já que o autor pretendeu contribuir com uma visão da realidade nacional, com a particularidade de focalizar o sul. Era primeiro-tenente do exército e participou do Movimento do Contestado como secretário do 58 batalhão de caçadores. Depois foi assistente da coluna que realizou o cerco aos rebeldes pelo lado sul. D Assumpção escreveu sobre o conflito em A Campanha do Contestado, publicado em 1917. Na referida obra, D Assumpção descreve o percurso realizado pelas tropas à região contestada, desde o dia em que saíram do Rio de Janeiro, além de narrar momentos referentes ao cotidiano no front. O seu texto não se resume somente a informações relativas à organização das tropas no Contestado, mas apresenta um discurso permeado de reflexões e opiniões pessoais quanto a cultura e aos costumes dos habitantes do interior catarinense, além de relatar acontecimentos anteriores à sua presença no local. Como testemunha, consideravase leal e insuspeito, afirmando que estava sendo guiado pela verdade dos factos e para dizer verdades taes, preciso appellar, com energia, para a serenidade imparcial de relator (D ASSUMPÇÃO: 1917, p. I). Rapidamente percebemos que tal parcialidade serviu somente à sua retórica, pois o autor deixa transparecer, principalmente quanto se refere aos costumes do homem interiorano, a sua formação e a sua opinião. D Assumpção, compartilhou do mesmo pensamento daqueles que acreditavam no fanatismo como um fenômeno decorrente da falta de uma educação letrada entre os sertanejos. Os acontecimentos que constituíram o conflito, na opinião deste militar, seriam provenientes da cancerosa chaga do analphabetismo que se estende por todo o território nacional, talando os pontos mais longínquos, onde não chegam os bafejos saneadores da civilização hodierna. (D ASSUMPÇÃO: 1917, p. I). A distância e o meio aparece aqui como um dos principais motivos do analfabetismo. Interessante notar ainda que os autores que atribuem o fanatismo à ausência de uma cultura letrada no meio sertanejo, não levaram em consideração que, neste período, a grande maioria dos moradores do litoral também não

4 tinham acesso à educação formal. D Assumpção, assim como muitos outros pensadores do período, negligenciou o número de analfabetos existentes na parte mais civilizada do Brasil. D Assumpção mostrou-se um verdadeiro antropólogo dos sertões. Os hábitos de vida, a forma de vestir e de conversar do habitante do interior, a geografia regional, enfim, os mais variados detalhes foram percebidos e registrados por esse militar com base em suas observações e por meio de relatos colhidos dos moradores do local. Distante de qualquer neutralidade axiológica, D Assumpção enfatizou o seu ponto de vista e deixou transparecer a cultura da qual fazia parte, evidenciando a necessidade de classificar o outro. A impressão que se tem é que quanto mais diferente e exótico este parecesse, menos culpa sentiriam aqueles que contra eles se voltassem. É interessante observar que Herculano Teixeira D Assumpção possuía uma formação muito próxima à de Euclides da Cunha. Além de compartilhar da formação no exército também era membro efetivo de um Instituto Histórico e Geográfico (de Minas Gerais). Marilene Weinhardt, realizou uma interessante discussão a respeito da aproximação entre esses dois autores. Segundo ela, Euclides da Cunha conseguiu perceber os problemas relativos aos modelos explicativos da nacionalidade do período no qual escrevia e D Assumpção, por sua vez, ainda seguia uma concepção fechada, concebendo essas teorias como verdadeiras. Para esta autora, D Assumpção pode ser caracterizado como fruto da militarização, o que o fazia sentir uma confiança inabalável na necessidade de defesa da pátria e da formação da nação com a obediência cega à hierarquia, observando como única possibilidade para a construção e solidificação do Estado, a violência contra os rebeldes. Euclides da Cunha, por sua vez, teria absorvido as reformas pelas quais o exército passou e que objetivaram um ensino mais voltado à participação na vida pública. Apesar de Herculano Teixeira D Assumpção não refletir sobre o Movimento de Canudos, o texto euclidiano, a estrutura de pensamento e as noções presentes em Os Sertões também podem ser percebidas na leitura de Campanha do Contestado quando observamos, por exemplo, as características atribuídas pelo militar aos habitantes do interior do país, referindo-se aos seus aspectos negativos e positivos. O texto segue a mesma forma de descrição da obra euclidiana evidenciando os elementos que tornam o homem do interior um sertanejo: a forma de andar, de sentar, de falar, as roupas, a preguiça e, em seguida, o enaltecimento da coragem, valentia e destreza quando montado em seu cavalo. Essas duas direções de definição encontram-se presentes, de forma semelhante, nas narrativas desses dois autores.

5 Conforme Euclides da Cunha: O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. (...) É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules- Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo cai é o termo - de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável. É o homem permanentemente fatigado.(cunha: 2001, p. 105) Após descrever o lado caracterizado como negativo do sertanejo, no qual enaltece seu andar desengonçado, a preguiça característica e a humildade que incomoda. Euclides da Cunha descreve os pontos positivos que observa no habitante do sertão, quando em um desencadear das energias adormidas, o sertanejo se transfigura e reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. (CUNHA: 2001, p.106). Essa dualidade, é apontada, de maneira exótica, como a forma de vida característica do sertanejo. D Assumpção parece ter traçado um paralelo com essa descrição euclidiana, ao relatar a forma de vida do sertanejo do sertão catarinense: O aplomb do sertanejos, quando elle se dirige a qualquer pessoa, é de pouca duração. Começa a conversar com certa pose, mas, minutos depois, o corpo derrea e, si não tem um assento perto, elle procura um encosto ou abaixa-se até ficar de cócoras. Nesta sua predilecta posição, elle fala horas e horas. A sua loquacidade é característica. (...) Nos povoados, o seu caminhar é tardo, o seu semblante é humilde, o seu todo é muito simples: nessas occasiões elle não causa temor a ninguém. Mas, quando escarranchado no seu cavallo, notável é a sua agilidade. Mesmo a todo o galope, elle maneja o laço com destreza e com elle prende os mais esportos baguaes. (D ASSUMPÇÃO: 1917, p. 199-200) Um lado considerado negativo, o descansar de cócoras, o caminhar lento e a aparência humilde. Como pontos positivos, a agilidade, a ligeireza do jaguar. As narrativas prosseguem nos dois autores e diversos pontos de comparação podem ser traçados, pendendo ora para descrições que enaltecem as manifestações de força e agilidade, ora para relatos que qualificam o sertanejo como crédulo, deixando-se facilmente arrebatar pelas superstições

6 mais absurdas (CUNHA: 2001, p.124), dominados pela ignorância que gera superstições que muito concorrem para os seus continuados desvarios. (D ASSUMPÇÃO: 1917, p. 201) D Assumpção, assim como Euclides da Cunha, acredita que devido à ignorância, os moradores do interior deixavam-se facilmente dominar por pessoas alfabetizadas. Para ele, a possibilidade de resolver os problemas que atingiam essa parte do país residia na educação de sua população. Embora defendesse essa idéia, termos como bandidos do sul foram recorrentes em seu texto e utilizados na legitimação das ações militares executadas contra os rebeldes. A questão do exotismo da população sertaneja foi um dos principais caminhos descritivos adotados por D Assumpção, um homem que vivia na parte mais civilizada do Brasil, portanto, estranho em relação aos hábitos e costumes interioranos. Os monges também foram alvo de suas reflexões. João Maria de Jesus, por exemplo, era, na opinião do militar, um typo digno de detida analyse. (D ASSUMPÇÃO: 1917, p. 216-218) Embora nunca o tivesse visto, descreveu detalhadamente sua forma de vestir e os objetos que trazia consigo. Em sua narrativa, esse monge e propheta foi representado como um indivíduo bondoso, conselheiro, desinteressado, e que nunca ofereceu oposição às autoridades ou se aproveitou do prestigio que adquiriu entre seus adeptos. Ao contrário de José Maria, que teria incitado a população sertaneja a aderir ao fanatismo demolidor. Para D Assumpção, este era um homem inteligente (e alfabetizado), que teria calculado os resultados que poderia obter dominando aquela população ignorante e preparando-a para a luta armada. Essas descrições dos monges, permitem verificar que D Assumpção lançou mão de arquétipos na construção do seu texto, descrevendo pessoas que não conhecia e que já haviam falecido quando este militar foi para a região contestada. Prevaleceu, neste caso, uma representação já incutida no imaginário social do período pelos menos por parte dos militares referente a esses personagens. O acontecimento, o autor, a obra... Diversos autores indicaram que a recorrência ao Movimento de Canudos nas ciências humanas, em detrimento de outros movimentos sociais, deve-se ao sucesso que alcançou a obra euclidiana Os Sertões. Segundo Francisco Foot Hardman, Os Sertões - concebido a partir da experiência vivida por Euclides da Cunha como relator da Guerra de Canudos - foi um elemento fundamental na constituição de uma memória sobre Canudos o qual, incluindo mito e história, transformou-se em uma narrativa épico-dramática canônica da literatura brasileira (HARDMAN: 1998, p. 129-130). Citando o caso da Guerra do Contestado, o autor aponta a falta de um autor-narrador à altura da prosa poética de Euclides em movimentos

7 onde o número de mortes se aproximaram ao de Canudos. Segundo Hardman a ausência da lembrança de outros movimentos no imaginário da memória nacional pode ter ocorrido devido à falta de um Euclides da Cunha e, pelo mesmo motivo, esses conflitos não conheceram repercussão equivalente. Edgar De Decca ao realizar uma reflexão em torno da relação entre história e literatura, indica a inexistência de uma narrativa dramática e marcante na literatura para os mortos anônimos do Contestado quando estes buscaram erigir-se como sujeitos históricos (DECCA: 200, p. 141-142). Os Sertões, por sua vez, constitui para este autor uma narrativa que possui sua autonomia em relação aos seus referentes. Nesta obra, a imagem mítica do sertanejo teria sido marcada pela narrativa épica euclidiana. Na opinião do historiador, até a década de 1930, a literatura teria servido também ao propósito de resgatar do silêncio da história os personagens anônimos, assumindo o projeto de uma história social e cultural brasileira. Neste sentido, visto a ausência de um escritor à altura de Euclides da Cunha, o Contestado não teria conhecido a mesma repercussão. A consagração euclidiana O sucesso da obra euclidiana não pode ser atribuído exclusivamente ao gênio de Euclides da Cunha. Devemos considerar, como indicam diversos estudiosos do pensamento social brasileiro, que Os Sertões sofreu um processo de sacralização desde o momento de sua publicação, em 1902 e alcançou sucesso por estar inscrita nas possibilidades e necessidades das épocas que a elegeram como a Bíblia da nacionalidade. Regina Abreu realiza um estudo enfocando a monumentalização de Os Sertões e a forma como este livro passou a ser considerado o mais representativo do povo brasileiro, uma espécie de Bíblia da nacionalidade e como Euclides da Cunha, o seu autor, tornou-se um mártir do pensamento social brasileiro. A autora compreende o processo de eleição da obra euclidiana como parte de um fenômeno cultural mais abrangente, o qual envolveu intelectuais e políticos numa rede ampla de constituição e legitimação da nação brasileira.(abreu: 1998). Abreu busca a origem e a permanência de Os Sertões como patrimônio e símbolo nacional, evidenciando as demandas sociais que estiveram relacionadas a esse processo de monumentalização, tanto por meio de programas educacionais, como através de inúmeras edições e da eleição de um lugar no mapa nacional, caracterizado como fundante da obra. A partir de Os Sertões, o progresso e a civilização, passaram a ser observados por uma ótica diferenciada, não somente como fim desejado mas como devir, como caminho inevitável para o qual se dirigia a humanidade.

8 Após verificar a trajetória pessoal de Euclides da Cunha, Regina Abreu procura mostrar as demandas sociais que possibilitaram a eleição de Os Sertões como símbolo nacional e de Euclides da Cunha como um narrador da nacionalidade. Considerações finais Como muitos autores indicaram, a obra euclidiana criou sombras sobre movimentos que ocorreram posteriormente. Mas como não utilizar como referência o conflito de Canudos? Como bem indicou Marilene Weinhardt, A evocação de Canudos situa os acontecimentos na esfera do conhecido, mas essa evocação não contribui para torná-los menos temíveis. (WEINHARDT: 2000, p. 29). A utilização de chamadas no Diário da Tarde fazendo menção ao conflito baiano, aparecem como um alerta, indicando a possibilidade de um novo embate. Para os letrados que viveram no início do XX, fazia sentido falar de Canudos, uma vez que muitos deles acompanharam, por meio dos noticiários da imprensa, o conflito nordestino. E constituía um importante aviso referir-se ao já conhecido, até mesmo como forma de prevenção. Além disso, existiria uma melhor justificativa para a repressão e critica à irracionalidade do que acionar o movimento de Canudos, que tantas feridas deixou na República? Por um lado, a obra euclidiana não permitiu que o Contestado figurasse na memória nacional, por outro evidenciou as falhas recorrentes do novo regime, mostrando que ele não fora criado para (e por) todos os brasileiros. Evidenciou ainda a falta de preparo, de um objetivo comum do exército e demonstrou que a utopia moderna da ordem e do progresso estavam distantes de se tornarem realidade em um país onde ainda existiam povos barbáros, os quais o discurso e a bala não foram capazes de domar exterminar. Nesse movimento de aproximação dos dois conflitos, há uma comparação pertinente a ser feita. Depois de quase um século do seu trágico acontecimento, referir-se ao Contestado, a Canudos ou a outros movimentos é indicar permanências na história brasileira, na busca desenfreada por uma unidade nacional e na contestação do Outro. Lembrar desses acontecimentos é também dar voz a essa inquietação que nos persegue, de denunciarmos e rememorarmos a posição do Estado, das forças oficiais em sua conquista por uma civilização homogênea e coesa. E, o que é mais importante, rememorar esses fatos é afirmar o fracasso, ainda que parcial, dessas instituições. Parafraseando Edgar De Decca, os homens comuns somente na contravenção encontram seu lugar na história, através das narrativas de seus crimes contra o poder estabelecido. Nesse sentido, podemos aproximar diversos movimentos sociais, mostrando que somente no momento em que representam um perigo para a ordem estabelecida, esses

9 indivíduos são passíveis de lembrança. Lembrar dos movimentos brasileiros para refletir acerca do papel das instituições, da formação dos discursos, dos sentidos criados no decorrer da nossa história são fundamentais para pensarmos a respeito da sociedade na qual vivemos. Ainda conforme De Decca, nas narrativas de massacres, um acontecimento remete ao outro, formam uma série que subverte à lógica histórica do antes e do depois e, por esse motivo, Canudos ilumina o Contestado, que revela a Revolta da Chibata, que denuncia as mortes não investigadas da greve anarquista de 1917... (DECCA: 2000, p. 152). BIBLIOGRAFIA ABREU, Regina. O enigma de Os Sertões. Rio de Janeiro: Funarte: Rocco, 1998. CARVALHO, F. S. de. Relatório apresentado ao General de Divisão José Caetano de Faria, Ministro da Guerra. Rio de Janeiro. Imprensa Militar, 1916. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In: Revista Estudos Avançados. São Paulo: Editora da USP, v. 11, n. 5, p. 173-191, 1991. CUNHA, Euclides da. Os Sertões: campanha de Canudos. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. 2. Ed. São Paulo: Ática, 2001. DALFRÉ, Liz Andréa. Outras narrativas da nacionalidade: o Movimento do Contestado. Curitiba-PR, 2004, 156 f. Dissertação (Mestrado em História) Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná. D ASSUMPÇÃO, H. T. A campanha do contestado: as operações da columna do sul. Bello Horizonte: Imprensa Official, 1917. DECCA, Edgar Salvadori de. Quaresma: um relato de massacre republicano entre a ficção e a história. In: ; LEMAIRE, Ria. (orgs.). Pelas margens: outros caminhos da história e da literatura. Campinas, Porto Alegre: Ed. da Unicamp, Ed. da Universidade UFRGS, 2000, p. 137-158. Diário da Tarde. Curitiba, 1912-1916. GALVÃO, Walnice Nogueira. Anotações à margem do regionalismo. Literatura e Sociedade. São Paulo, n. 5, p. 44-55, 2000.. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais 4ª. expedição. São Paulo: Ática, 1994. HARDMAN, Francisco Foot. Tróia de taipa: Canudos e os irracionais. In:. (org.). Morte e progresso: cultura brasileira como apagamento de rastros. São Paulo: Unesp, 1998, p. 125-136. LIMA, Nísia Trindade. Um sertão chamado Brasil: intelectuais e representação geográfica da identidade nacional. Rio de Janeiro: Revan: IUPERJ, UCA, 1999. ORTIZ, Renato. Memória coletiva e sincretismo científico: as teorias raciais do século XIX. In:. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1986. RODRIGUES, Rogério Rosa. Os sertões catarinenses: embates e conflitos envolvendo a atuação militar na Guerra do Contestado. Santa Catarina, 2001. 115 f. Dissertação (Mestrado em História) Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina. WEINHARDT, Marilene. Mesmos crimes, outros discursos? Algumas narrativas sobre o Contestado. Curitiba: Ed. da UFPR, 2000.