CULTURA E IDENTIDADE NUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA: UM ESTUDO SOBRE A COMUNIDADE MANOEL CIRÍACO, DE GUAÍRA, PR

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Transcrição:

CULTURA E IDENTIDADE NUMA COMUNIDADE QUILOMBOLA: UM ESTUDO SOBRE A COMUNIDADE MANOEL CIRÍACO, DE GUAÍRA, PR Jéssica de Lima da Silva (PIBIC/CNPq-UNIOESTE), Geni Rosa Duarte (Orientador), e-mail: geni_rosaduarte@yahoo.com.br. Universidade Estadual do Oeste do Paraná/Departamento de História/Marechal Cândido Rondon, PR. Palavras-chave: quilombola, identidades, etnia Resumo O presente artigo tem como objetivo traçar os resultados obtidos a partir da pesquisa sobre a Comunidade Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos, de Guaíra, PR. A pesquisa visou levantar bibliografia sobre questão quilombola e produzir fontes para futuras pesquisas acerca da construção de uma identidade étnica, que se pretende legitimar na comunidade citada. Introdução A Comunidade Negra Manoel Ciríaco é formada por descendentes de uma família e leva o nome de seu patriarca. Ela está localizada no Maracaju dos Gaúchos, em Guaíra, desde 1964, quando Manoel Ciríaco trouxe sua família, originária de Minas Gerais para a região oeste do Paraná, após ter morado por alguns anos em São Paulo, na cidade de Caiabu. Maracaju dos Gaúchos fica na área rural do município, com predomínio de descendentes de italianos. Em Guaíra, a família Ciríaco construiu suas casas, a princípio muito precárias, como o irmão mais velho, José Maria (falecido no final de 2009), relatou durante uma entrevista por mim realizada no dia 30 de agosto de 2008. Segundo ele, as casas eram feitas de pau a pique e durante muito tempo eles dormiram em tarimbas (uma cama feita de madeira ou bambu). Entre tantas dificuldades relatadas durante essa entrevista, Zé Maria (como é chamado pelos familiares) ressaltou a dificuldade com o clima frio da região e com a falta de alimento para a numerosa família, bem como a discriminação (problema ainda presente) que sofriam na região, principalmente a sofrida pelas crianças que freqüentavam a escola. Na época em que chegaram a Guaíra, a família era composta por cerca de 72 pessoas, sendo que hoje a comunidade conta com pouco mais de 40 membros. Isso se deve ao fato de que outros irmãos se mudaram da região, uns foram morar na área urbana de Guaíra e outros retornaram para o Estado de São Paulo, residindo hoje em Presidente Prudente. A escolha por sair das terras adquiridas pelo pai resultou da dificuldade em manter toda a família tirando o sustento da pouca terra que possuíam.

Em 2006 (embora haja uma imprecisão em relação ao ano), através da indicação de uma conhecida da família, o Grupo de Trabalho Clóvis Moura 1 realizou uma pesquisa, que culminou com o reconhecimento da comunidade como remanescente de quilombo: quilombolas. Desde então, um representante da comunidade, atualmente o senhor Adir Rodrigues, participa com freqüência de reuniões estaduais e nacionais com governantes, secretários e membros de outras comunidades quilombolas e do movimento negro, esses últimos que mais recentemente passaram a freqüentar a comunidade periodicamente. Ressalte-se que desde 2004, depois de uma reunião com educadores negros do Paraná, o governo decidiu montar o Grupo de Trabalho Clóvis Moura para realizar pesquisas e mapear comunidades quilombolas no território paranaense. O objetivo, de acordo com o Grupo, seria reparar o tempo em que essas comunidades negras estiveram na obscuridade no Paraná, através da promoção de direitos básicos (água, luz, moradia, educação). Além disso, objetivam abrir caminho para que outros órgãos, como a Fundação Cultural Palmares, tenham contato com essas comunidades e as certifique como quilombolas. E ainda, procuram abrir caminho para que o INCRA possa atuar na questão da demarcação de terras, a fim de receber também políticas públicas federais mais específicas às comunidades quilombolas. Nesse processo, entre 2004 e 2007, foram reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares 34 comunidades quilombolas no Paraná. Desde esse reconhecimento, a comunidade quilombola de Guaíra passa por um processo que poderíamos discutir como sendo de construção de uma identidade étnica negra, pautada na distinção entre eles e outros grupos. Em parte, isso decorre de ações que conferem aos quilombolas tratamento diferenciado em relação a grupos não-quilombolas, como políticas públicas que visam uma reparação ao passado de escravidão e segregação racial. Podemos nos referir a Stuart Hall ao trabalhar com essa questão; em seu artigo Que negro é esse na cultura negra? ele afirma a tendência atual de que grupos outrora marginalizados, tais como os negros, para ocupar os espaços dominantes, participando da luta pela hegemonia cultural existente na cultura popular. Citamos, no caso brasileiro, como exemplo, ações como as cotas em universidades, mas também facilidades econômicas, tais como suporte à produção agrícola, com sementes e adubos, a demarcação das terras, realizada pelo INCRA. Aliás, destacamos que em Guaíra, como em outras localidades em que essa política vem sendo realizada, essa política de demarcação de terras tem gerado conflitos que fizeram aflorar outras questões, em especial de caráter étnico. Nesse sentido, a pesquisa realizada visou, primeiramente, levantar bibliografia sobre a problemática do negro no pós-abolição, refletindo mais 1 O Grupo de Trabalho Clóvis Moura foi criado em homenagem ao sociólogo negro um dos mais importantes intelectuais do país, com o objetivo de fazer a ponte entre o Governo do Estado do Paraná e as comunidades quilombolas. O Grupo de Trabalhos faz o levantamento da população quilombola, verifica suas necessidades e as encaminha para as secretarias responsáveis.

especificamente nas questões que concernem à posse da terra e à construção de uma identidade negra, questões bastante presentes hoje no debate do movimento negro sobre os remanescentes de quilombo. Para isso, além do levantamento de bibliografia, foram produzidas entrevistas com membros da comunidade, no intuito de investigar a apropriação do termo quilombola por eles, o que, conforme relatos, não foi encarado naturalmente quando do reconhecimento, mas que é hoje bastante presente entre seus membros. O que fica expresso num discurso pautado pela exaltação de um passado escravo, ou mesmo pela aceitação de práticas supostamente pertencentes a uma cultura negra. Primeiro, é nítido que não se trata de uma comunidade quilombola nos termos em que ela é tradicionalmente concebida, como uma cultura pura, fruto de um isolamento em relação à sociedade circundante. A comunidade localizada em Guaíra estabelece ricas relações sociais desde que se estabeleceu na região, e a partir dessas relações se moldou e se molda culturalmente. Há aí um hibridismo cultural, tomando da expressão utilizada por Nestor Canclini, em seu livro Culturas Híbridas, em que percebemos uma troca de culturas, uma assimilação da(s) cultura(s) do outro, entre outras funções, para tornar-se igual a ele, aceito nas relações que se estabelecem entre eles. Além disso, não se pode falar de uma única identidade. Como nos aponta Stuart Hall, em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade, o sujeito pós-moderno vive um processo de fragmentação de identidade, resultado de uma contemporaneidade marcada por descentramentos. A partir disso, os sujeitos se constituem não de uma identidade, mas de várias identidades, construídas a partir de sua vivência. O referencial que pautou a discussão está relacionado tanto à discussão de etnia quanto de identidades culturais, numa perspectiva que leva em conta que as identidades (inclusive étnicas) são construídas dentro da narrativa (fontes orais, no caso da pesquisa em questão) e obedecendo às inquietações do presente de determinado grupo, que nessa pesquisa é o grupo quilombola da região de Guaíra. Esse grupo reivindica uma identidade negra descendente de escravos e está atualmente em disputa territorial com as propriedades rurais do entorno. Partimos, nessa discussão, do posicionamento de que não existe a priori uma identidade, mas uma diversidade de situações a partir das quais os indivíduos interagem, criando e recriando relações dentro de um mesmo grupo e em relação a ele e os demais grupos com os quais convivem. Materiais e métodos A pesquisa foi realizada a partir do levantamento bibliográfico, realizado na biblioteca da universidade (UNIOESTE) ou no acervo pessoal, bem como através de sites que hospedam artigos acadêmicos e também através da realização de entrevistas com o método de fonte oral com alguns membros da Comunidade Quilombola Manoel Ciríaco dos Santos. Também foi levantada a legislação sobre a temática quilombola e sobre a questão agrária, para entender de que forma o Estado lida com a problemática, além

de um laudo antropológico realizado por pesquisadores da Unioeste, campus de Toledo e Foz do Iguaçu, bem como o relatório emitido pelo Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Ressaltamos a importância dos depoimentos orais, tendo em vista que é através deles que fica expresso o processo da construção de identidades através de memórias (também construídas no momento da narrativa), que se mostram diferentes de acordo com o momento presente vivido pelo sujeito que se expressa, e que carrega em sua fala não só a sua visão de mundo como a visão dos grupos nos quais eles se inserem, os grupos negros quilombolas, no caso da presente pesquisa. Resultados e Discussão O objetivo da pesquisa é, portanto, perceber como se dá o processo de construção de uma identidade étnica em uma comunidade negra, pensando no processo que ocorre desde seu reconhecimento como grupo diferenciado, através do contato com o movimento negro e outros elementos que colaborem nessa construção, da apropriação do que é considerado cultura negra, em oposição a uma cultura não-negra (a partir do pressuposto de que somos o que somos em relação ao outro). Buscamos perceber os conflitos que essa redefinição identitária causa dentro do grupo, através da construção mesma da imagem pessoal deles, e também o que mudou em relação à comunidade do Maracaju dos Gaúchos, a visão que o Maracaju tinha e como isso foi modificado, principalmente pela questão da terra, que se mostrou o agente gerador de um outro tipo de relação entre os não-negros e os negros, ou brancos e não-brancos. Conclusões A partir da pesquisa, pudemos constatar que a comunidade quilombola de Guaíra tem se organizado no sentido de conseguir privilégios através de políticas públicas, principalmente através da afirmação como quilombolas e a conseqüente inserção nas discussões do movimento negro em relação a uma reparação histórica que passa por essas políticas públicas. Essa estratégia de afirmação de uma identidade negra quilombola ex-escrava serve, portanto, para inserir a comunidade em um grupo maior que tem, atualmente, lutado por direitos tais como acesso à terra, à educação, à financiamento para atividades agrícolas, etc. Além disso, fica claro que as relações estabelecidas entre os quilombolas e os demais moradores do Maracaju dos Gaúchos mudou. Antes do reconhecimento, era comum que os hoje quilombolas (antes apenas meninos ou morenos ) trabalhassem nas terras do Maracaju como bóias-frias. Depois do reconhecimento, essa relação permanece, ainda que em menor grau, já que uma horta, resultado de incentivo do governo estadual, passa a ser cultivada na comunidade quilombola; apesar da horta, o trabalho para outros produtores ainda é a maior fonte de renda. Depois que teve início o trabalho do INCRA na comunidade, essa relação de

trabalho sofreu uma forte mudança, reflexo da mudança de relação social anteriormente estabelecida entre esses sujeitos. Referências CANCLINI, Néstor García. Culturas Híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: EDUSP, 1997. HALL, Stuart. Identidade Cultural na pós-modernidade. Trad: Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2005.. Que negro é esse da cultura negra? In:. Da diáspora. Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. PARANÁ. Grupo de Trabalho Clóvis Moura. Relatório 2005/2008. Curitiba, 2008. PORTELLI, Alessandro. A filosofia e os fatos. Tempo, Rio de Janeiro, vol. 1, n. 2, 1996, p. 59-72.