JUÍZO DE GOSTO E CRÍTICA DE ARTE: UMA ANÁLISE DOS CONCEITOS DE REFLEXÃO E AUTONOMIA 1

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Transcrição:

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 52 ISSN 1984-6754 JUÍZO DE GOSTO E CRÍTICA DE ARTE: UMA ANÁLISE DOS CONCEITOS DE REFLEXÃO E AUTONOMIA 1 Júlia Casamasso Mattoso 2 Resumo: Tal artigo pretende analisar a autonomia presente no juízo de gosto kantiano a fim de compreender como tal juízo pode servir de base para a crítica de arte. Procuraremos mostrar que julgando de forma autônoma o sujeito está provando o seu gosto, assim como o crítico que procura exprimir uma reflexão genuína sobre a obra de arte. Podemos entender que ambos procuram, não só pelo equilíbrio entre a força de se afirmar e a possibilidade de sustentar se em frente a juízos contrários, mas também pela justa medida entre gosto e subjetivismo. Palavras-chave: Reflexão; autonomia; juízo de gosto; crítica de arte. Abstract: This article intends to analyze the autonomy in Kant's judgment of taste in order to understand how such judgment could be used as a basis for the criticism of art. We will show that judging autonomously, the subject is indeed tasting itself, as well as the critic who pursuits expressing a genuine reflection over the work of art. We can understand that both are seeking, not only the balance between the strength to assert and the possibility to sustain itself facing opposite judgments, but also the fair measure between taste and subjectivism. Keywords: Reflection; autonomy; judgment of taste; art criticism. 1 Artigo recebido em 30/05/2011 e aprovado para publicação pelo Conselho Editorial em 15/06/2011. 2 Mestrado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/7170473715050801. E-mail: julia.mattoso@yahoo.com.br.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 53 ISSN 1984-6754 Primeiro momento: Reflexão como ponto de partida. O pressuposto geral sobre o qual repousa a primeira dedução da Crítica da Faculdade do Juízo funda-se na capacidade de entender que, se conhecimentos e juízos são comunicáveis, sua condição subjetiva também poderá sê-lo. Conhecimentos e juízos, [...] têm que poder comunicar-se universalmente; pois, do contrário, eles não alcançariam nenhuma concordância com o objeto. [...] Se, porém, conhecimentos devem poder comunicar-se, então também o estado de ânimo, [...] tem que poder comunicar-se universalmente. (KANT, 2008, B 65 p. 84) A comunicação do ânimo se dá através dos juízos reflexivos, os quais possuem sua base no sentimento do sujeito acerca de si mesmo, isto é, em relação à suas faculdades cognitivas. O juízo reflexivo do qual pretendemos falar, é definido por Kant como a capacidade de pensar o particular contido no universal, sendo só o particular conhecido e para o qual temos que buscar o universal. Esse universal não é constituído a partir da experiência, pelo contrário, ele se dá na capacidade do sujeito de pensar os fenômenos integrados entre si como subsumidos a uma espécie de lei. Essa lei, ou melhor, esse princípio capaz de condicionar a possibilidade de tais juízos, é o princípio que a faculdade do juízo, enquanto reflexionante procura pensar para si própria como seu fundamento de determinação. Na primeira edição da Introdução da Crítica da faculdade do juízo, o nome que Kant utiliza para falar sobre esse princípio é técnica da natureza. Esse outro nome possui o mesmo significado que é encontrado no princípio de finalidade, visto como a capacidade de pensar um entendimento superior organizador da natureza. O princípio de finalidade é buscado por uma exigência lógica da razão, de ordenação da natureza. Existem duas definições que Kant dá a conformidade a fins (princípio de finalidade), podemos observá-las: na primeira, um fim é o conceito de um objeto enquanto encerra, ao mesmo tempo, a base da realidade desse objeto. (KANT, 2008, B XXVIII p. 24) E a segunda, o fim é o objeto de um conceito, na medida em

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 54 ISSN 1984-6754 que este for considerado como a causa daquele (o fundamento real de sua possibilidade). (KANT, 2008, B 32 p. 64) E tudo se dá de forma subjetiva, pois não se acrescenta nada na natureza, apenas disponibiliza-se uma regra para o pensar. É dessa forma que podemos considerar a reflexão, abstraindo o objeto, mas fornecendo regras para pensá-lo. O princípio de finalidade nos possibilita então pensar a natureza como única para nós, como final em relação a todo sujeito e inteiramente interligada não só entre si, mas entre todos os sujeitos. O juízo subjetivo pode adquirir assim uma validade para além da simples subjetividade, pois ao constituir um princípio fundamental de acordo com a faculdade do juízo torna-se completamente discutível por todos os sujeitos. Mesmo sabendo que cada sujeito é único na sua maneira de sentir, a reflexão ultrapassa essa barreira da individualidade, nos mostrando que refletir é sentir intelectualmente. E, partindo do pressuposto que todo sujeito possui a mesma capacidade intelectual, isto é, as mesmas faculdades cognitivas, podemos admitir que todos serão capazes de julgar de maneira reflexiva. Abrindo assim a possibilidade universal da reflexão, afinal podemos refletir sobre diversos aspectos e de formas diferentes, mas utilizamos sempre os mesmos instrumentos, nossas faculdades da imaginação e do entendimento. Logo, um juízo que é subjetivo tende a universalidade a partir da maneira de julgar do sujeito. Este que ao sentir o livre jogo 3 entre imaginação e entendimento, poderá julgar reflexivamente, e mais, estará oferecendo um tipo de argumento para todo e qualquer sujeito buscar o mesmo caminho no seu julgamento. A saber, o juízo reflexivo ou reflexionante pode ser dividido em dois tipos: o juízo reflexivo teleológico, que diz respeito à finalidade da natureza, mas desse não procuraremos dar conta nesse momento, e o juízo reflexivo estético, que diz respeito à apreensão do objeto e sua relação com o sentimento de prazer e desprazer. É sobre esse tipo de juízo que trataremos 3 Ao ajuizar de maneira reflexiva o entendimento sozinho não dá conta de aplicar um conceito determinante e a imaginação vai além de apenas reproduzir uma imagem (pois afinal não há um conceito prévio para o qual ela reproduziria uma imagem), ela passa de uma função reprodutora para uma função produtora (deixa a função esquemática e passa a exercer uma função simbólica). A imaginação torna-se espontânea, sendo ela livre e o entendimento indeterminado, ou seja, a imaginação produz uma imagem livre de um conceito indeterminado.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 55 ISSN 1984-6754 agora, pois a nossa intenção é trabalhar exatamente com o sentimento de prazer que envolve a apreensão de objetos belos, ou no caso da crítica de arte, as obras. Podemos entender então que os juízos estéticos indicam uma determinada representação, mesmo sendo referida a um objeto no próprio juízo. Entretanto, não é entendida como determinação do objeto, mas do sujeito e do seu sentimento. Esses juízos partem sempre da recepção do sujeito e de como ele é afetado na sensibilidade. O juízo estético, por sua vez, também possui uma divisão: entre o juízo sobre o belo, e o juízo sobre o sublime, vamos nos concentrar nesta investigação no juízo estético acerca do belo, que é chamado por Kant de juízo de gosto. O juízo de gosto é requerido para denominar se um objeto é belo ou não, através da sensibilidade com uma referência ao entendimento, de acordo com o livre jogo. Por que nesse momento as duas faculdades cognitivas imaginação e entendimento encontram se em harmonia? Porque diferente do juízo de conhecimento, o juízo de gosto não trabalha com conceitos determinantes já dados. Quando algum objeto é chamado belo, há um acordo entre as duas faculdades. O entendimento não determina nenhum conceito, pois afinal não é um juízo de conhecimento, e a imaginação vai além de seu papel pré-determinado pelo entendimento no juízo determinante. Diferentemente do juízo determinante no qual há uma espécie de coerção de uma das faculdades por aquela que legisla, no juízo de gosto há uma relação harmoniosa entre as faculdades cognitivas (imaginação e entendimento). Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual representações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um. (KANT, 2008, B 29 p. 62) A proposta deste artigo é a analogia entre juízo de gosto e crítica de arte, o que é muito difícil, pois juízo por si só é diferente de crítica. Por isso sugerimos o livre jogo entre reflexão e autonomia, dois aspectos centrais dos temas antes mencionados. Com o livre jogo há uma harmonia, o que quero dizer é que não é nem juízo nem crítica, é o sujeito refletindo. Sendo que esse sentimento do livre jogo produz ideias estéticas, que são como um impulso criativo, daí surge a crítica.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 56 ISSN 1984-6754 Retornando à Kant, na Analítica do Belo existem quatro momentos para validar o juízo de gosto, são elas: qualidade, quantidade, relação e modalidade. Em consideração a essas quatro categorias respectivamente, o juízo deve ser: universal, pois todo sujeito deve ser capaz não só de entender o meu juízo, mas também de julgar da mesma forma; desinteressado, não deve haver interesse pelo objeto que julgo belo; conforma a fins sem fim, isto é, não deve possuir nem um fim no objeto, nem um fim no sujeito; e necessário, porque todos devem julgar da mesma forma, ou seja, necessariamente. Depois dessa breve analise do juízo reflexivo que pode nos levar aos fundamentos de possibilidade que envolvem o juízo sobre a beleza. Então verificaremos a seguir como se dá esse juízo de gosto no âmbito da autonomia do sujeito. Demonstrando que ao ser legitimo o seu juízo, isto é; universal, desinteressado, conforme a fins sem fim e necessário, o sujeito profere de forma autônoma, em bases sólidas, um juízo que deve ser considerado por todos como universalmente válido. Segundo momento: autonomia, o equilíbrio entre subjetividade e necessidade. Visto que o sentimento de prazer e/ou desprazer surge do livre jogo entre as faculdades da imaginação e do entendimento, e que esse estado de ânimo pode ocorrer em qualquer ser humano, a comunicabilidade universal de um sentimento irá pressupor então um sentido comum. Esse sentido comum, do qual Kant está falando, é a busca para designar a concordância entre o livre jogo das faculdades cognitivas, e a procura por estabelecer uma espécie de norma indeterminada, através da qual o sujeito possa reivindicar a universalidade do seu juízo. Essa norma indeterminada significa um tipo de regra, que se dá no âmbito da reflexão a qual eu devo julgar não só por mim, mas por todos. Então, é através de uma espécie de bom senso ao julgar que o juízo se torna legitimo, de modo que o sujeito tem consciência de estar formulando muito mais do que um juízo privado.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 57 ISSN 1984-6754 [...] visto que a comunicabilidade universal de um sentimento pressupõe um sentido comum; assim, este poderá ser admitido com razão, e na verdade sem neste caso se apoiar em observações psicológicas; mas como a condição necessária da comunicabilidade universal de nosso conhecimento [...] (KANT, 2008, B 66 p.84) No momento do ajuizamento do gosto, o sujeito encontra-se em um exercício pleno de sua singularidade, mas ao mesmo tempo se sente universal, na medida em que a presença do outro se faz como uma espécie de ideia reguladora sentido comum 4. Dessa forma, podemos entender que proferir um juízo sobre a beleza significa expressar, não só o prazer obtido pelo livre jogo entre as faculdades cognitivas, mas também é a própria pretensão à complacência de qualquer sujeito. E: Além disso, de cada juízo que deve provar o gosto do sujeito, é reclamado que o sujeito deve julgar por si, sem ter necessidade de, pela experiência, andar tateando entre os juízos dos outros e através dela instruir-se previamente sobre a complacência ou descomplacência deles no mesmo objeto; por conseguinte, deve proferir seu juízo de modo a priori e não por imitação, porque uma coisa talvez apraza efetivamente de um modo geral. (KANT, 2008, B 137 p. 128-129) É por isso que o gosto reivindica, nas palavras de Kant; simplesmente autonomia 5. Quando o sujeito julga está apelando para uma situação de direito e não uma simples constatação de prazer, assim é preciso demonstrar a validade de tal apelo, pois esse fato determinará a sua inscrição em uma faculdade autônoma. Esta autonomia se mostra justamente por provar o gosto do sujeito, que sai de seu capricho subjetivo revelando a todos seu pensamento, e não obstante espera que lhe seja outorgado o direito de falar em nome de todos. Esta seria uma ambiguidade presente no juízo autônomo, que ao julgar por si sem se apoiar em juízos alheios, o sujeito tem a árdua tarefa de agir sozinho e ao mesmo tempo junto 4 Por senso communis, porém, se tem que entender a ideia de um sentido comunitário <gemeinschaftlichen>, isto é, de uma faculdade de ajuizamento que em sua reflexão toma em consideração em pensamento (a priori) o modo de representação de qualquer outro, como que para ater o seu juízo à inteira razão humana e assim escapar a ilusão que, a partir de condições privadas subjetivas as quais facilmente poderiam ser tomadas por objetivas teria influência prejudicial sobre o juízo. (KANT, 2008, B 157 p. 139 140) 5 O gosto reivindica simplesmente autonomia. Fazer de juízos estranhos fundamentos de determinação do seu seria heteronomia. (KANT, 2008, B 132 p. 129).

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 58 ISSN 1984-6754 com os outros. Ainda tendo a extrema precaução para evitar excessos de originalidade, o que é o papel da reflexão. Esta, por sua vez, não impede o erro, mas compromete o sujeito a ação legitima do uso de suas faculdades. Isto é, a reflexão faz com que o sujeito busque sempre julgar de forma universal, tentando evitar uma autonomia infundada, ou seja, juízos que mostrem apenas uma fruição sensorial. Dessa forma, o comprometimento do sujeito com o seu julgamento mostra-se na tentativa de um consentimento universal. Tal juízo reflexivo e autônomo caracteriza-se, então como um pedido que estabelece a capacidade de qualquer sujeito de reconhecer o caráter bem fundado do que se experimenta no ajuizamento do belo. Este pedido é um meio pelo qual o sujeito de gosto pode assegurar-se de sua validade. Desse modo é possível construir a base legitima para que os juízos de gosto, mesmo sendo eles singulares, tenham direito a uma universalidade exemplar. Afinal, o que o sujeito procura alcançar não é uma aprovação fortuita de um sentimento, mas um tipo de aceitação de uma ideia que pode ser admitida por todos. Assim, se o sujeito agir de acordo com seu sentimento e procurar estabelecer um exemplo diante da regra indeterminada do sentido comum, ele é capaz de fundar seu juízo em bases seguras para enfrentar julgamentos contrários. Dessa forma podemos vislumbrar que o mérito final do juízo de gosto é buscar sempre um equilíbrio entre a própria força de se afirmar e a possibilidade de sustentar seu julgamento em frente a juízos contrários. Esse equilíbrio é dado justamente pela autonomia, pois o sujeito que age por si, sem se apoiar em juízos alheios, tem a capacidade de perceber a importância do seu juízo e tem o mérito de compartilhar aquilo que sente. Logo, a autonomia é mais importante que a imitação. Essa autonomia deixa de ser uma peculiaridade e passa a ser o tema central do juízo, pois afinal é a partir dela que podemos julgar de forma equilibrada e solida, afirmando o nosso gosto e acima de tudo fazendo dele ponto de partida para todo e qualquer sujeito. A partir daí podemos notar que a noção de universalidade presente nos juízos de gosto, que exige do sujeito um pôr-se no lugar dos outros, revela uma compreensão bastante fértil da própria subjetividade, tão fértil que está no fundamento de qualquer análise da alteridade. O pôr-se em lugar alheio concede ao outro dignidade, a dignidade uma subjetividade, da subjetividade do outro.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 59 ISSN 1984-6754 É nesse patamar de reflexão intersubjetiva que nos aponta o caminho pelo qual queremos seguir, o que diz respeito à crítica de arte. Buscaremos relacionar esta crítica com o juízo que acabamos por descrever de maneira simples e breve, veremos adiante a intenção de aproximar essa visão kantiana da comunicação do ânimo com a operação produtiva do critico de arte. Veremos que a busca do critico é a mesma busca de qualquer sujeito ao julgar sobre a beleza, só que levada até as ultimas consequências. Terceiro momento: crítica de arte, livre-jogo entre reflexão e autonomia. O equilíbrio que perpassa por toda a estética kantiana, o qual o sujeito deve buscar entre a mera opinião e os excessos de originalidade, é o mesmo que busca a crítica de arte. Mostrar o gosto pela obra e ter a capacidade de julgar a beleza genuinamente, para poder chegar à universalidade, é a intenção da crítica. Não só isso, mas também a crítica busca uma unidade entre juízo e obra, ou seja, falar da obra de dentro dela mesma. O processo reflexivo na busca de universais não disponíveis, segundo os resultados imprevisíveis do livre jogo das faculdades cognitivas do sujeito (imaginação e entendimento), e a presença de um principio de finalidade (conformidade a fins sem fim) exigem do homem de gosto, no momento da recepção e do ajuizamento estético, uma operação criativa. Esta operação se renova a cada nova experiência, podendo então transformar-se em uma critica da experiência estética. A possibilidade da crítica, todavia, apóia-se na obra de arte com a intenção de autosuperação, ou seja, falar sobre aquilo que está escondido na obra, um tipo de continuação no discurso de quem é expectador da obra. Toda obra passível de crítica quer transcender a si mesma, desejando abrir mão de sua autolimitação formal e continuar sua reflexão através de outros meios, o meio do julgamento juntamente com o meio da critica. No processo da crítica instaurado pela obra de arte, a reflexão está em seu âmago. A obra de arte é, portanto, um medium-de-reflexão, nas palavras de Benjamin.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 60 ISSN 1984-6754 Então, depois de entender que a crítica também parte da reflexão, assim como o juízo de gosto, fica um pouco mais simples visualizar essa ligação juízo critica. A crítica afinal nada mais é do que um juízo legitimo que procura mostrar a obra de um ângulo não visto antes, assim como o postulado do juízo autônomo. Pois o sujeito que julga unicamente por si, atua como o crítico que busca um pensamento novo, que também deve ser admitido por todos como válido. A crítica preenche sua tarefa na medida em que, quanto mais cerrada for a reflexão, quanto mais rígida a forma da obra, tanto mais múltipla e intensivamente as conduza para fora de si, dissolvendo a reflexão originária numa superior e assim por diante. Neste trabalho ela se apóia nas células germinais da reflexão, nos momentos positivamente formais da obra, que ela dissolve em momentos universalmente formais. (BENJAMIN, 1993, p. 79)

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 61 ISSN 1984-6754 Referências ARENDT, Hannah. Lições sobre a Filosofia Política de Kant. Trad. André Duarte de Macedo.Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1993. BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Trad. de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1986. [Obras Escolhidas, vol. I] BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad., Prefácio e Notas de Marcio Seligmann-Silva. São Paulo: Iluminuras, 1993. BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. de Irene Aron. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006. CENCI, Ângelo V. (org). Temas sobre Kant: metafísica, estética e filosofia política. Porto Alegre: Edipucrs, 2000.

Synesis, v. 3, n. 1, 2011, p. 62 ISSN 1984-6754 DE DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. Rio de Janeiro Revista de Mestrado em História da Arte EBA, UFRJ: 1998. DELEUZE, Gilles. A Filosofia Crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 1994. HEIDEGGER, M. Nietzsche. Vol. 1, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. A doutrina kantiana do belo. Sua interpretação equivocada por meio de Schopenhauer e de Nietzsche. p. 98 113. KANT, Immanuel. Crítica da Faculdade do Juízo. Trad. Valério Rohden e Antônio Marques. 2. Ed - Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. TROMBETTA, Gerson Luís. O que há de moderno na estética de Kant: uma 'outra' leitura dos paradoxos da Crítica da Faculdade do Juízo Estética. In: HANSEN, Gilvan L.; CENCI, Elve M. Racionalidade, modernidade e universidade: Festschrift em homenagem ao prof. Leonardo Prota. Londrina: CEFIL. Editora da UEL, 2000. p. 129-156.. Pode um juízo de gosto ter direito à universalidade? Revista de Filosofia e Ciências Humanas, Passo Fundo, ano 14, n. 1, p. 23-44, jan./jun. 1998.. Harmonia e Ruptura: A Crítica da Faculdade do Juízo e os rumos da arte contemporânea. Orientador: Professor Doutor Hans-Georg Flickinger. Rio Grande do Sul: PUC-RS, Abril de 2006.