Os mitos: fontes simbólicas da Psicologia Analítica de C.G. Jung



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Transcrição:

Os mitos: fontes simbólicas da Psicologia Analítica de C.G. Jung Resumo: O presente artigo tem como objetivo discorrer sobre a importância do estudo dos mitos e de outras produções simbólicas para a Psicologia Analítica de C.G. Jung. Através do sonho e da fantasia é possível o reencontro do homem com a atmosfera mítica das imagens arcaicas, herança psicológica que conecta a humanidade como um todo. Assim, enfatizaremos o mito do herói e sua relação com a estruturação da consciência, através do desenvolvimento do ego. Em especial, abordaremos a imagem arquetípica do herói no mito de Perseu e sua luta contra a Medusa. Palavras-chave: mitos, símbolos, desenvolvimento do ego, herói O estudo dos mitos na Psicologia Analítica Os mitos e imagens simbólicas têm ganhado importância histórica por conta dos estudos arqueológicos que buscam compreendê-los e interpretá-los, transmitindo um saber simbólico há muito esquecido pelas sociedades ditas civilizadas. Tais pesquisas foram de suma relevância para desmistificar o pensamento corrente que concebe os povos antigos como aculturados. (Jung, 1977) Além disso, a partir dos estudos antropológicos podemos perceber muitos mitos da sociedade moderna e contemporânea que encontram uma raiz paralela com as sociedades antigas. Um exemplo disso é o mito do herói que passa por provações para alcançar um objetivo heróico. Os heróis das mitologias arcaicas muito se assemelham aos heróis contemporâneos da indústria cinematográfica (Super-Homem, Rambo, etc.), o que demonstra que os mitos antigos não deixaram de ter importância simbólica nos dias atuais. A Psicologia Analítica de C.G. Jung foi a psicologia que mais contribuiu para o estudo do material simbólico da humanidade. Jung fez várias viagens, conheceu várias

culturas e com isso pôde vislumbrar uma conexão universal entre os homens, uma herança psicológica construída ao longo da evolução humana. A herança psicológica universal é denominada por Jung de inconsciente coletivo. Os conteúdos do inconsciente coletivo são denominados de arquétipos (tipos arcaicos) que surgem na consciência como imagens simbólicas. Através da concepção de inconsciente coletivo, Jung concebe que todos os homens, primitivos ou modernos, compartilham de um conhecimento arquetípico universal. O inconsciente coletivo rompe com a linearidade espaço-tempo, ampliando a visão do psiquismo para além da simples causalidade. A partir da análise onírica é possível o acesso ao material arquetípico do inconsciente, que de tão arcaico não tem, muitas vezes, sentido para o homem moderno. Deste modo, a análise é de grande importância para o resgate simbólico, para compreensão das imagens oníricas e consequentemente para uma compreensão mais profunda de si mesmo. Para tanto o analista deve ter um conhecimento amplo acerca da origem e do sentido dos símbolos, para assim, fazer analogias entre os mitos arcaicos e o material onírico do paciente. A metodologia da análise junguiana é simbólica-analógica, ou seja, busca amplificar a imagem simbólica, traçando relações de semelhança com outros símbolos, para melhor interpretá-los. A amplificação da imagem onírica a torna acessível à interpretação, uma vez que promove uma visão mais profunda desta por meio de paralelos com toda a produção simbólica da humanidade (mitologia, religião, arte, etc.). Assim, o mito possibilita a amplificação da situação vivida pelo paciente, possibilitando sua melhor compreensão, uma vez que seus sonhos e fantasias têm a mesma raiz dos mitos arcaicos. (Boechat, 2008). O homem e a questão simbólica Jung ao estudar o homem arcaico em comparação ao homem civilizado, concluiu que ambos sentem e percebem o mundo da mesma forma. O homem primitivo não vê o mundo de maneira diferente do moderno, na verdade o que os difere são suas hipóteses, a forma como consideram os eventos da natureza.

Para o homem moderno, os eventos podem ser explicados através de relações causais perceptíveis. Já o homem primitivo, que tem uma visão mágica do mundo, explica tais eventos através de termos não-perceptíveis, sobrenaturais. A crença nos poderes sobrenaturais, nas sociedades arcaicas, é devida, em parte, às projeções do inconsciente sobre o mundo físico, de tal maneira que não há distinção entre as projeções e o mundo objetivo. Deste modo, enquanto o homem arcaico está inserido física e psiquicamente no seu mundo, o homem moderno acredita estar apartado da natureza. O homem moderno enxerga o mundo de maneira objetiva, negando sua realidade psíquica, ou seja, negando as projeções arcaicas do inconsciente. Nas sociedades tribais os mitos são vivos, pois cumprem sua função de dar sentido ao mundo como nos explica Boechat (2008): Os trabalhos de Malinowski deixaram clara a noção fundamental do mito vivo nas sociedades tribais. Há uma importância essencial da mitologia na organização da vida diária dessas culturas. Sem o mito, essas sociedades simplesmente não se organizariam. O nascimento, a infância, o casamento, a caça e a guerra, o comércio e a morte, todas as atividades, enfim, são ritualizadas e mitologizadas para ganharem sentido. (Boechat, 2008, p. 19) A grande importância dada à objetividade no mundo moderno em detrimento dos mitos constitui, segundo Jung, um perigo ao mundo psíquico, uma vez que aqueles fazem parte do inconsciente coletivo e agem como mediadores entre o consciente e o inconsciente. Sobre a importância do mito como guia e auxilio para lidar com os conflitos, Armstrong (2005) escreve: No mundo pré-moderno, a mitologia era indispensável. Ela ajudava as pessoas a encontrar sentido em suas vidas, além de revelar regiões da mente humana que de outro modo permaneceriam inacessíveis. Era uma forma inicial de psicologia. As histórias de deuses e heróis que descem às profundezas da terra, lutando contra monstros e

atravessando labirintos, trouxeram à luz os mecanismos misteriosos da psique, mostrando as pessoas como lidar com as crises íntimas. Quando Freud e Jung iniciaram a moderna investigação da alma, voltaram-se instintivamente para a mitologia clássica para explicar suas teorias, dando uma nova interpretação aos velhos mitos. (Armstrong, p.15, 2005) O homem antigo dava sentido ao mundo através dos mitos. Com a modernidade o homem perdeu sua capacidade de produção simbólica, passando esta a ter uma importância psíquica, uma vez que o inconsciente conserva essa capacidade. Deste modo, ligação entre os mitos arcaicos e os símbolos do inconsciente é de grande valor para o trabalho analítico, uma vez que permite interpretar os símbolos tanto em seu aspecto histórico universal como no sentido psicológico, como veremos na relação simbólica entre a saga do herói e o desenvolvimento egóico. O desenvolvimento do ego e o mito do herói O arquétipo do herói é algo muito presente na contemporaneidade. Nos filmes, novelas, livros, etc, as sagas heróicas são a todo tempo contadas e recontadas, o que demonstra seu aspecto estruturador da psique. Os desafios do herói representam a luta do desenvolvimento do ego frente às forças regressivas do inconsciente, como explica Henderson: Na luta travada pelo homem primitivo para alcançar a consciência, este conflito se exprime pela disputa entre o herói arquetípico e os poderes cósmicos do mal, personificado por dragões e outros monstros. No decorrer do desenvolvimento da consciência individual, a figura do herói é o meio simbólico através do qual o ego emergente vence a inércia do inconsciente, liberando o homem amadurecido do desejo regressivo de uma volta ao estado de bem-aventurança da infância, em um mundo dominado por sua mãe. (Henderson, p. 118, 1977)

Neumann (2000), em seus estudos sobre o desenvolvimento da consciência e sua emergência, fala da condição primordial da totalidade, que seria o caos indiferenciado, o uróboros, onde não há diferenciação entre a criança e a mãe, ou seja, o ego está contido no inconsciente, como a criança, na mãe. Assim, Neumann aborda a importância do vínculo mãe-filho, principalmente durante o primeiro ano de vida da criança, pois nesse período, denominado de estado urobórico pós-uterino, o self (a totalidade psíquica) da criança ainda está simbolicamente contido na mãe. Qualquer ruptura na relação primal mãe-filho perturba a separação normal e oportuna do self da criança daquele da mãe e resulta no desenvolvimento de um ego ferido, frágil e dependente. O ego frágil, com insuficiente apoio interno da força organizadora e reguladora do self, é uma presa fácil do narcisismo, da neurose e da psicose. Somente com um self positivamente ativado é que pode haver suficiente apoio interno para permitir o desenvolvimento de um ego autêntico, capaz de separar-se psicologicamente da mãe (e também do pai) e estabelecer um relacionamento adequado e individual, tanto com o mundo interior quanto com o mundo exterior. O self (o si-mesmo), diferentemente do ego, que é o sujeito da consciência, é o sujeito de toda a psique inconsciente. É também o arquétipo que representa a totalidade e o centro regulador da psique, sendo freqüentemente simbolizado por uma mandala ou uma união de opostos (como seria o Tao na filosofia oriental). É do self, da totalidade psíquica, que emerge a consciência individualizada do ego, à medida que o indivíduo se desenvolve. Com isso, Jung define: O Self não só é o centro, mas também a circunferência inteira que abraça a consciência e o inconsciente; é o centro desta totalidade, da mesma maneira que o ego é o centro de consciência. (JUNG, C.W. Vol. XXII, 44, apud SHARP, 1997, p. 142) Desse modo, o verdadeiro contato com o self seria obtido através do processo de individuação, que é único para cada ser humano. O processo de individuação tem como objetivo desenvolver a personalidade individual, o potencial que cada um tem dentro de si,

a fim de conseguir discernir as mensagens vindas do self que o guiarão à auto-realização. Segundo Von Franz: A experiência dessa extremidade mais elevada, ou centro, traz ao indivíduo um senso de significado e de realização, na presença do qual ele pode aceitar a si mesmo e encontrar um caminho intermediário entre os opostos presentes na natureza interior. Em vez de ser uma pessoa fragmentada, obrigada a apegar-se a apoios coletivos, o indivíduo torna-se um ser humano inteiro, autoconfiante, que já não precisa viver como um parasita do seu ambiente coletivo, mas que enriquece e fortalece esse mesmo ambiente com sua presença. (Von Franz, 1997, p. 63) Assim, o ego frágil sente-se pressionado pelo mundo externo e busca meios de lidar com isso agindo defensivamente, se desvirtuando do processo de individuação, apegandose a apoios coletivos. Pode recolher-se num estado exageradamente introvertido, retirandose para o mundo da fantasia, com o perigo de ser inundado pelo inconsciente, ou pode perder o senso de interior por um ajustamento exageradamente extrovertido, cedendo às pressões ambientais no seu agir. (Weinrib, 1993) Jung sugere em sua teoria uma relação simbólica entre o arquétipo materno e o inconsciente, pois, como a mãe é fonte da vida física, também o inconsciente é a fonte da vida psicológica. Portanto, a mãe e o inconsciente podem ser vistos como símbolos femininos equivalentes. O impulso de retorno à mãe pode ser visto como um impulso de volta ao inconsciente. Sob certas circunstâncias, isso pode ser regressivo, levando à neurose e à psicose; doença psicológica ou morte. Em outras circunstâncias, ou seja, no processo de individuação, a regressão pode ser temporária e em prol da renovação psicológica e do renascimento simbólico ( recuar para saltar melhor ). Sobre a regressão e o processo de cura, Jung diz: Parece que o processo de cura mobiliza essas forças para alcançar os seus objetivos. É que as representações míticas, com seu simbolismo característico, atingem as profundezas da alma humana, os subterrâneos da história, aonde a razão, a vontade e a boa intenção nunca chegam. Isso

porque elas também provêm daquelas profundezas e falam uma linguagem, que, na verdade, a razão contemporânea não entende, mas mobilizam e põem a vibrar no íntimo do homem. A regressão que poderia assustar-nos à primeira vista é, portanto, muito mais um reculer pour mieux sauter, um concentrar e integrar forças, que no decorrer da evolução vão constituir uma nova ordem. (Jung, C.G., 2007, p. 13). Assim, a diferenciação do ego do inconsciente, não se dá de forma absoluta, uma vez que o ego necessita recuar para restabelecer suas relações com o self, de modo a preservar sua saúde psíquica. Em alguns mitos o herói deve passar continuamente pelas trevas, por provações, para posteriormente vencer o monstro. As provações do herói representam sua morte simbólica para posterior renascimento, pois permitem ao ego-herói, o contato com sua sombra, os aspectos ocultos, reprimidos da personalidade. Através da morte simbólica (katábase ou rito iniciático), o herói passa a ter maior conhecimento de suas forças e fraquezas, alcançando a maturidade necessária para transpor os desafios de sua jornada. Deste modo, o símbolo do herói representa uma tentativa do inconsciente de levar a libido regressiva para um ato criativo, mostrando assim o caminho para a solução do conflito. Assim, o arquétipo do herói está associado aos ritos de passagem, fundamentais para estruturação da consciência, através do mitologema do herói que mata o monstro, como veremos no mito de Perseu que mata a Medusa. O mito de Perseu: Uma visão mítica acerca do desenvolvimento do ego Na perspectiva junguiana, o estudo do material mitológico, presente na história da humanidade, é fundamental para um olhar mais profundo do ser humano. Isso se deve ao fato do mito expressar estórias simbólicas que transmitem imagens significativas, que tratam das verdades dos homens de todos os tempos. (Boechat, 2008) Jung compreende que ao se mitologizar a psique, possibilitamos uma melhor compreensão dos processos psíquicos, uma vez que o mito traz uma ampliação da situação existencial vivida pelo paciente em análise.

Assim, seguindo essa proposta analisaremos o mito de Perseu e sua luta contra a Medusa, que simboliza o desenvolvimento do ego frente os aspectos regressivos do inconsciente. Neste mito, Perseu é incumbido de trazer para o rei Polidectes, seu padrasto, a cabeça de Medusa, ser monstruoso com cabelos de serpente. Esta, por transformar em pedra todos que a olham, representa o arquétipo da mãe devoradora e sua influência regressiva que aprisiona seus filhos. O rei Polidectes pretendia se livrar de Perseu enviando-o para tal missão. Polidectes, com medo de ser destronado por Perseu, propôs um torneio no qual o vencedor seria quem trouxesse a cabeça da Medusa, e o instinto aventureiro de Perseu não o deixou recusar. O herói representa a natureza humana, que muitas vezes em sua imperfeição, é dominado pela vaidade, pelo orgulho (hybris), lançando-se em missões sobre-humanas, muito além de sua capacidade. Daí surgir seres superiores, divinos, para proteger e auxiliar o herói em sua jornada. Esses seres divinos são representações do self que possibilitam ao ego o alcance de um novo estado de consciência. No mito em questão, Perseu foi vitorioso graças à ajuda de Atena, Hades e Hermes, seus deuses tutelares. Atena deu a ele um escudo tão bem polido, que podia se ver o reflexo ao olhar para ele, Hades lhe deu um capacete que torna invisível quem o usa, e Hermes deu a ele suas sandálias aladas, objetos que foram definitivos para a vitória de Perseu. O escudo de Atena, semelhante a um espelho, foi o instrumento fundamental no confronto com a Medusa, uma vez que simboliza a reflexão, aspecto necessário a Perseu. Atena (Minerva, na mitologia romana) na mitologia grega era filha de Zeus, nascida de sua cabeça. Ela é conhecida como a deusa da inteligência e sabedoria (além de ser a deusa que preside as artes e os trabalhos manuais). No mito Atena representa o arquétipo da anima de Perseu, sua contraparte feminina, sua guia ou mediadora entre o mundo interior e o self. Atena representa a mãe superior ou espiritual que auxilia seu filho na passagem da infância para a vida adulta. Assim, podemos perceber no mito de Perseu os dois aspectos do arquétipo materno: devorador (Medusa) e o transformador (Atena). (WOOLGER E WOOLGER, 1987).

A Medusa representa a mãe terrível, devoradora, que paralisa seus filhos, permanecendo em estado caótico e inconsciente. Desse modo, a luta contra a Medusa nos alude ao processo de integração do ego, através da saída do estado urobórico, onde não há diferenciação entre a consciência e o inconsciente. A petrificação da Medusa nos remete aos estados psicóticos de extrema regressão presentes nas formas graves de esquizofrenia (estupor catatônico). (Boechat,W., 2008). Por fim, a deusa Atena representa os aspectos transformadores do self, pois cede o instrumento capaz de vencer a petrificação, através do olhar indireto do reflexo do espelho. O escudo de Atena possibilita o movimento, a criatividade, a reflexão, ou seja, é o instrumento que mobiliza a transformação psíquica, para um novo estado de ser, mais consciente e diferenciado. Considerações Finais Na perspectiva junguiana o conhecimento dos mitos é importante para melhor compreensão do material arquetípico que irrompe ao longo do trabalho analítico. Assim, o propósito da Psicologia Analítica não é valer-se dos mitos para explicar a clínica de um paciente, ou pior, de vários pacientes. Na verdade, a Psicologia Analítica propõe uma amplificação dos símbolos em análise, através do método simbólico-analógico. Este método orienta-se a partir da percepção do material que provém do inconsciente do analisando, através de símbolos oníricos, da expressão plástica ou, por outras técnicas terapêuticas, não se restringindo as interpretações gerais e deterministas. Deste modo, o estudo dos mitos e dos símbolos do inconsciente é a chave para um conhecimento profundo do ser humano, um conhecimento que vai além do palpável e do racional, que possibilita o religar do homem consigo mesmo e com a humanidade como um todo. A mitologia é o sonhar coletivo dos povos. (Boechat, 1996, p. 23)

Bibliografia Armstrong, K. Breve História do Mito. São Paulo, Cia das Letras, 2005. Boechat, W. (org.). Mitos e Arquétipos do Homem Contenporâneo. Petrópolis, Vozes, 1996.. A Mitopoese da Psique. Petrópolis, Vozes, 2008. Fernandes, I. O Herói: Uma Jornada Através dos Tempos. In: RPG e arte. Rio de Janeiro: Banco do Brasil, 1998. Henderson, J.L. In: O homem e seus símbolos/ Carl G. Jung e M. L. von Franz [et al] Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977. Jung, C. G. Memórias, sonhos e reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1977..Chaves-resumo das obras completas Jung/ Carl Gustav Jung; [coordenação editorial] Carrie Lee Rothgeb, National Clearinghouse for Mental, Health Information; tradução Arlene Ferreira Caetano]. São Paulo: Editora Atheneu, 1998.. A Prática da Psicoterapia. Obras Completas vol. XVI Petrópolis: Vozes, 2007. Neumann, E. O Medo do Feminino e Outros Ensaios sobre a Psicologia Feminina. São Paulo: Paulus, 2000. Sharp, D. Léxico Junguiano: Um Manual de Termos e Conceitos. 5ª edição. Editora Cultrix. São Paulo, 1997. Silveira, N. Jung: Vida e Obra. Coleção Vida e Obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994. Von Franz, M-L. Reflexos da Alma Projeção e Recolhimento Interior na Psicologia de C. G. Jung. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1992.. C. G. JUNG: Seu mito em nossa época. 6 a edição. Editora Cultrix. São Paulo, 1997. Weinrib, E. Imagens do Self. São Paulo: Summus, 1993

Woolger, J.B. e Woolger, R. J. A Deusa Interior: Um Guia sobre os Eternos Mitos Femininos que Moldam nossas Vidas. São Paulo: Cultrix, 1987. Autora: Gabriella Gomes Cortes. Psicóloga graduada pela UFRJ. Pós-graduanda em Psicologia Analítica pelo IBMR. Psicóloga da Prefeitura de Niterói (SMAS).