JUSTIÇA COMO METÁFORA

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Transcrição:

JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO Regina Rossetti* Resumo Este artigo tem por objetivo apontar a palavra justiça, em seu aparecimento pela primeira vez na história da filosofia ocidental, como uma metáfora jurídica para a explicação do surgimento do universo. Trata-se de pesquisa bibliográfica e da análise da mais antiga frase escrita do pensamento filosófico em que se encontra a palavra justiça, a chamada sentença de Anaximandro. Palavras-chave: Justiça; origem; metáfora. INTRODUÇÃO Anaximandro é considerado, pela tradição, um filósofo pré-socrático que viveu no século VI antes de Cristo e foi discípulo do primeiro filósofo, Tales de Mileto. De Tales não restou nenhum fragmento escrito, mas o mesmo não ocorreu com seu sucessor, de cujo pensamento restou um único fragmento de texto. Assim, esse fragmento de Anaximandro é o primeiro texto escrito conhecido na história da filosofia, o que faz que a chamada sentença de Anaximandro seja reconhecida como a mais antiga sentença do pensamento ocidental. Nessa primeira frase escrita que foi transmitida * Doutora em Filosofia pela USP com pós-doutoramento. Docente do Programa de Mestrado em Comunicação da USCS.

4 JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO pela filosofia ocidental, encontra-se a palavra justiça (díke). 1 Segundo Peters o primeiro uso da dike num contexto filosófico ocorre no único fragmento de Anaximandro (PETERS, 1974, p. 54). O objetivo deste artigo é tratar o termo justiça, como aparece pela primeira vez em um contexto filosófico, como uma metáfora da origem do universo. Em que sentido e por que Anaximandro usou a palavra justiça quando tratava de explicar o surgimento de todas as coisas e a origem do universo é o problema tratado nesta reflexão sobre a busca da origem históricofilosófica da palavra justiça. A metodologia utilizada é a pesquisa bibliográfica. JUSTIÇA NA ORIGEM DO UNIVERSO A mais antiga frase do pensamento filosófico ocidental que foi transmitida é a sentença de Anaximandro. Segundo Heidegger, essa sentença é realmente a mais antiga entre as que nos foram transmitidas (HEIDEGGER, 1979, p. 21). O filósofo alemão propõe sua tradução literal da seguinte maneira: Ora, a partir daquilo do qual a geração é para as coisas, também o desaparecer para dentro disto se engendra segundo o necessário; pois eles se dão justiça e penitência reciprocamente pela injustiça, segundo a ordem do tempo (HEIDEGGER, 1979, p. 24). Antes de tudo, causa estranheza a linguagem, mas não se pode esquecer que esse texto tem 2.600 anos, e foi escrito em grego arcaico. Por isso, alguns cuidados se impõem no uso de uma terminologia mais autêntica e original, característica dessa fase arcaica do pensamento, para dar conta de compreender a forma de pensamento própria desse período original. A tradição, em grande parte oral, da sabedoria, já obscura e escassa pela distância dos tempos, já evanescente e tênue para o próprio Platão, mostra-se, a nossos olhos, francamente falsificada pela inserção da literatura filosófica (COLLI, 1996, p. 10). 1 Díké é uma palavra grega que significa: compensação, processos legais, justiça (PETERS, 1974, p. 53, Verbete: diké).

REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 5 Tarefa nada fácil, porque são inúmeros os problemas de acesso ao pensamento dos primeiros sábios. Primeiro, Anaximandro está em uma fase da história onde há uma tradição que privilegia a transmissão oral dos pensamentos, em que se escreve com dificuldade, isto quando se escreve, o que dificulta em muito a expressão unívoca dos pensamentos. Em segundo lugar, o que restou do registro de seus pensamentos, dadas as péssimas condições de conservação, ficou na forma de fragmentos, cujas lacunas podem permitir inúmeras interpretações diversas. Terceiro, a tradução feita para línguas modernas de um grego arcaico pode gerar, por sua vez, muitos desentendimentos. Portanto, somente resta ater-se ao pensamento dos primeiros sábios, tal como ele é dado. Mas do que trata a sentença de Anaximandro? Frente ao problema do primeiro princípio, sobre o qual se debruçaram todos os sábios, Anaximandro, também, procurava explicar o surgimento de todas as coisas. Para tanto, propunha o apeíron (o ilimitado) como o princípio a partir do qual todas as coisas surgem. O que interessa especificamente é a explicação que Anaximandro dá do processo pelo qual as coisas saem e retornam a esse princípio, porque nesse momento o sábio recorre a termos retirados de sua experiência e escolhe a palavra diké para expressar sua teoria. Então, a sentença diz: pois eles se dão justiça e penitência reciprocamente pela injustiça, o que Anaximandro estava querendo explicar? Essa frase pode querer significar que o processo pelo qual as coisas saem de seu princípio e a ele retornam ocorre como se fosse a reparação pela injustiça cometida, isto é, como uma espécie de compensação pelo dano cometido para que o equilíbrio e o acordo harmônico se mantenham no mundo. Uma explicação possível para o aparecimento, aqui, da palavra justiça, é pensá-la como uma metáfora de explicação do surgimento de todas as coisas. Por isso, Kirk afirma que a palavra justiça foi usada por Anaximandro como uma metáfora legalista retirada de seu uso comum na sociedade humana: metáfora legalista derivada da sociedade humana: a prevalência de uma substância à custa do seu contrário é injustiça,

6 JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO e a reação verifica-se através da aplicação do castigo, como a restauração da igualdade de algo mais que igualdade, portanto o prevaricador fica, também privado de parte de sua substância original. Esta é dada à vítima, além daquilo que lhe pertencia, e por sua vez conduz ao excesso, por parte da primeira vítima, que passa a cometer uma injustiça contra o antigo agressor (KIRK et al, 1994, p. 119). Para Heidegger, é normal que uma teoria da natureza descreva os processos de surgimento das coisas por analogia aos acontecimentos correntes da vida humana: É por isso que a sentença de Anaximandro fala de justiça e injustiças nas coisas, de castigo e de penitência, de expiação e pagamento. Noções morais e jurídicas se imiscuem na imagem da natureza (HEIDEGGER, 1979, p. 24). De que outra forma dizer o que ainda não se conhece senão por meio daquilo que já se conhece. Mas seria essa somente uma forma poética de dizer as coisas? Talvez não. Não se pode esquecer que, para o grego arcaico, não existiam as disciplinas particulares como são conhecidas hoje. Não havia separação entre os domínios do direito, da moral, da física, da biologia, tudo fazia parte do campo da sabedoria. Entretanto, isso não quer dizer que os primeiros pensadores não conheciam a ética, a física, o direito, a biologia, apenas não estabeleciam delimitações entre esses conhecimentos, porque se está em uma era em que ainda não haviam surgido os limites entre o mundo físico e a vida humana. Assim, palavras fundamentais pensadas a partir da experiência e transpostas para o campo teórico de explicação do universo (como a palavra justiça) tinham uma significação ampla, de longo alcance para além do campo restrito das disciplinas particulares (no caso o direito e o costume), e podiam ser usadas para explicar os acontecimentos do mundo físico. Note-se que não se trata de uma mistura entre as considerações jurídicas e físicas, simplesmente porque distinções entre esses campos do conhecimento ainda não haviam sido feitas, isto porque não se pode misturar aquilo que ainda não foi separado.

REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 7 Mas que significação ampla seria essa? O que poderia significar primordialmente a palavra justiça? Segundo Heidegger, díke primordialmente quer dizer estar nos eixos, estar articulado, em acordo. E seu oposto a adikía diz, primeiro, que a díke está ausente e, segundo, que por onde ela impera as coisas não andam certas. Assim, justiça originalmente pode significar estar em acordo, articulado e injustiça significaria que algo está fora dos eixos (fora das juntas), ou seja, há uma desarticulação, um desacordo: Adíkia, a desarticulação é o desacordo ( HEIDEGGER, 1979, p. 38). Esse pode ter sido o primeiro sentido dado à palavra justiça, como apareceu escrita pela primeira vez na sentença de Anaximandro. A partir daí segue-se toda a história do pensamento ocidental e à palavra justiça muitos e diversos foram os sentidos que lhe atribuíram. OS PRIMEIROS SÁBIOS E O SURGIMENTO DA FILOSOFIA Para compreender o contexto filosófico da sentença de Anaximandro, são necessárias algumas considerações gerais sobre o surgimento da filosofia grega. Isto porque essa fase arcaica do pensamento ocidental está muito distante no tempo do pensamento contemporâneo. Para explicitar algumas das características mais importantes desse período original do pensamento ocidental, se faz aqui uma divisão entre sabedoria e filosofia. Segundo Colli, a passagem da sabedoria à filosofia deu-se exatamente no surgimento da dialética entendida como discussão racional, cuja primeira expressão se encontra nos diálogos de Platão. Nesse sentido, a filosofia começa com Platão, logo, tanto Sócrates como aqueles anteriores a Sócrates pertencem ao âmbito da sabedoria. Fiéis à designação do termo filosofia (amor à sabedoria), os filósofos não seriam sábios, apenas amigos da sabedoria; dessa maneira se faz aqui, também, uma distinção entre sábios e filósofos. Segue a linha de interpretação de Colli acerca do nascimento da Filosofia que, por sua vez, tem como base geral a perspectiva de interpretação proposta por Nietzsche ao expor a origem da tragédia grega, referenciando-se na imagem de dois deuses gregos: Dionísio e Apolo. Portanto, nesta reflexão, quando trata do pensamento

8 JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO anterior a Sócrates, se está no domínio da chamada sabedoria, fonte da qual surge posteriormente a filosofia. Buscar as origens da filosofia grega e, portanto, do pensamento ocidental, é ir ao encontro da sabedoria, em cuja direção os amigos da sabedoria, isto é, os filósofos, olham com reverência: Platão olha reverente o passado, um mundo em que existiram os verdadeiros sábios. Por outro lado, a filosofia é apenas a continuação, um desenvolvimento da forma literária introduzida por Platão; contudo esta surge como fenômeno de decadência, na medida em que amor à sabedoria está mais abaixo da sabedoria (COLLI, 1996, p. 09). O pensamento dos primeiros sábios não é plenamente racional, mas enigmático e misterioso: Os ensinamentos da sabedoria, como as revelações dos mistérios, pretendem transformar o homem no íntimo, elevá-lo a uma condição superior, fazer dele um ser único, quase um deus, um theios anér [...] (a sabedoria) exprime certamente o segredo, formula-o em palavras, mas o povo não pode apreender seu sentido (VERNANT, 1973, p. 40-41). A passagem da sabedoria à filosofia é a passagem do pensamento envolto no enigma e no mistério para um pensamento mais abstrato, racional e discursivo: Se a origem da sabedoria grega está na mania, na exaltação pítica, numa experiência mística e dos mistérios, então como se explica a passagem desse fundo religioso para a elaboração de um pensamento abstrato, racional, discursivo? (COLLI, 1996, p. 61). O pensamento enigmático é aquele que acena para a verdade por meio do enigma que precisa ser decifrado, numa intuição primordial e imediata daquele que sabe. O pensamento filosófico busca fundar-se no lógos, na palavra que é pensamento, no discurso. Mas isto não significa que sabedoria e filosofia sejam antitéticas, são na verdade duas fases sucessivas do mesmo fenômeno fundamental da busca do conhecimento.

REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 9 Entendem-se sábios, aqui, simplesmente como aqueles pensadores pertencentes ao período do pensamento grego denominado por Sabedoria. Não se faz aqui qualquer referência aos tradicionalmente conhecidos Sete Sábios da antiguidade grega. Segundo Vernant, tais narrativas não passam de uma mistura de dados puramente lendários, de alusões históricas, de sentenças políticas e de chavões morais, a tradição mais ou menos mítica dos Sete Sábios (VERNANT, 1973, p. 49). Os sábios que iniciaram no ocidente o movimento de pensamento que, posteriormente, deu origem à Filosofia, tornaram-se conhecidos como pertencentes ao grupo dos pensadores pré-socráticos. Todavia, não se deve enxergar, nos assim chamados Pré-Socráticos, um grupo homogêneo e destacado dentro da história da filosofia; ao contrário, questiona-se aqui a divisão histórica que unifica em um grupo vários pensadores diferentes em seus modos particulares de pensar, simplesmente porque anteriores a Sócrates. São pensadores que refletiram dentro de seu movimento próprio, com pensamentos distintos e intuições originais de cada um, e que serviram de fonte ao pensamento filosófico que lhes é posterior. Os pré-socráticos constituíram, desde Aristóteles, o problema histórico e o fundamento sistemático da filosofia ática clássica, isto é, o platonismo. Nos últimos tempos, esta conexão histórica teve uma tendência a passar a segundo plano devido ao desejo de compreender cada um daqueles pensadores em si mesmo, na sua própria individualidade, como filósofo original, assim destacando melhor relevo à sua verdadeira importância (JAEGER, 1995, p. 191). Da mesma forma que não há um grupo coeso chamado Pré-Socrático, também não há, a rigor, uma problemática filosófica única, ou seja, não há a questão filosófica pré-socrática. Isto porque uma questão, enquanto uma proposição filosófica, é algo posto pelo pensamento filosófico que é historicamente posterior e funda-se primordialmente no logos: Quanto ao método, a filosofia quer ser explicação puramente racional da totalidade que é seu objeto. O que vale na filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica: é, numa palavra, o lógos (REALE, 1995, p. 29).

10 JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO Pensadores como Tales, Anaximandro e Pitágoras constituem-se, na verdade, na raiz, na fonte da problemática filosófica que somente é posta pelos filósofos posteriores, por exemplo, Aristóteles. Assim, não se tratará aqueles anteriores a Sócrates como um grupo homogêneo de filósofos que possuem uma problemática única, mas sim como pensadores originais considerados em suas diferenças. Os primeiros sábios foram pensadores distintos uns dos outros, cuja ligação entre eles é a de um tênue prosseguimento entre uma pergunta levantada anteriormente e que se torna motivo de reflexão para os posteriores, dando origem às chamadas escolas filosóficas. Em termos de pensamento, há um movimento ininterrupto que não finda com o próprio pensador, mas prolonga-se por via de outro pensador. É como se esses sábios simplesmente perguntassem o que é, depois respondessem; e não satisfeitos com a primeira resposta, perguntassem por que é o que é; e respondessem ao por quê. Isto é pensar, é mover o pensamento por meio do indagar. Olhavam, questionavam, penetravam seus próprios espíritos e começavam a pensar. Destaca-se do contexto geral, onde ocorre o surgimento do movimento de pensamento, que dá origem ao pensar filosófico, o ser que busca saber e que parte espontaneamente do primado de sua própria existência sem ao menos questionar a razão da procura, a razão do que procura, sem ao menos questionar sua própria razão. Está-se em um momento pré-filosófico, no âmbito da sabedoria, do saber originário, no qual questões acerca do conhecer ainda não foram propostas. O ser humano parte em busca do conhecimento sem questionar o que é conhecimento, parte por um movimento espontâneo e natural de seu ser. Por meio da chamada observação, coloca-se em busca daquilo que há em todos os planos da natureza, isto é, põe-se a buscar no todo de seu ser, sua essência. 2 E na busca do saber, os primeiros que buscaram, moveram seus pensamentos no sentido do ser, indagando sobre o que é. E dentre todas as indagações, esta é espontaneamente a primeira, a mais original: perguntar o que é; e quando se pergunta pelo que é, pergunta-se pelo ser, pela essência, isto é, pergunta-se pela origem: 2 Aussi les plus anciens philosophes s occupèrent-ils uniquement de spéculations sur le monde qui les entourait (BURNET, 1952, p. 10).

REVISTA PÁGINAS DE FILOSOFIA 11 Assim, num primeiro momento, a totalidade do real, phýsis, foi vista como cosmo e, portanto, o problema filosófico por excelência foi o problema cosmológico: como surge o cosmo, qual o seu princípio? Quais as fases e os momentos da sua geração? etc. É esta a problemática que, essencial ou, pelo menos, prioritariamente, absorve toda a primeira fase da filosofia grega (REALE, 1995, p. 32). Assim, perguntaram os primeiros sábios pela origem do todo, do cosmos, e chegaram a respostas distintas. E na resposta de Anaximandro encontra-se uma referência explícita à justiça. CONSIDERAÇÕES FINAIS Todas essas dificuldades impõem restrições que, por vezes, impedem a afirmação que assegura a fidedignidade do pensamento original desses sábios e, portanto, também do significado preciso da sentença de Anaximandro. Frente a essas dificuldades, deve-se ficar em silêncio e nada ousar dizer ou pensar? Ou será que ainda resta a alternativa de levantar questionamentos e suposições, mais do que assegurar a verdade absoluta de uma interpretação? E então qual é a tarefa do filósofo frente a um pensamento tão antigo? Consideramos que se trata muito mais de propor questões acerca do pensamento destes sábios do que responder a essas questões, inspirados na sábia atitude de interrogação daquele que talvez tenha sido o último dos sábios, Sócrates. E também, inspirar-se em Bergson, para quem é mais importante saber bem propor os problemas do que resolvê-los. Assim, deve-se ser filósofo e continuar a indagar o que é justiça. Porque se essa palavra não fosse fundamental para a vida humana, não teria persistido por tanto tempo.

12 JUSTIÇA COMO METÁFORA DO SURGIMENTO DO UNIVERSO REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORNHEIM, G. A. Os filósofos pré-socráticos. São Paulo: Cultrix, 1972. BURKERT, Walter. Religião grega na época clássica arcaica. Trad. de M. J. Simões Louveiro. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993. BURNET, J. L Aurore de la pensée grecque. Trad. de A. Raymond. Paris: Payot, 1952. COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Trad. de Federico Carotti. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.. La sagesse grecque. Trad. de Pascal Gabellone. Paris: Éditions de L Éclat, 1991, v. 2. JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. Trad. de Arthur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995. HEIDEGGER, Martin. A sentença de Anaximandro. Trad. de Ernildo Stein. In: SOUZA, J. C. de. (dir.) Os pré-socráticos. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (Col. Os Pensadores). KAHN, C. H. Anaximander and the Origin of Greek Cosmology. New York, Londres, 1960. KIRK, G. S. RAVEN, J. E. SCHOFIELD, M. Os filósofos pré-socráticos. Trad. de Carlos A. L. Fonseca. 4. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994. LEGRAND, Gérard. Os pré-socráticos. Trad. de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Zahar, 1991. PELBART, Peter Pál. Primeira parte: Desrazão e Loucura. In: Da clausura do fora ao fora da clausura. São Paulo: Brasiliense, 1989. PETERS, F. E. Termos filosóficos gregos. Trad. de Beatriz R. Barbosa. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1974. REALE, Giovanni. História da filosofia antiga. Trad. de Marcelo Perine e Henrique C. de Lima Vaz. São Paulo: Loyola, 1995. 5V. SOUZA, J. Cavalcante de. (dir.). Pré Socráticos: textos escolhidos. São Paulo: Nova Cultural, 1989 (Col. Os Pensadores). VERNANT, Jean-Pierre. Mito e pensamento entre os gregos. Trad. de H. Sarian. São Paulo: Difel, Edusp, 1973. ZELLER, Édouard. La philosophie des grecs. Tome I. Trad. de É. Boutroux Paris: Hachette, 1877.