A NECESSIDADE DE UM NOVO ENFOQUE SOBRE AS ATRIBUIÇÕES DO SENADO FEDERAL SOB A PERSPECTIVA DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO Luiza Alves Chaves Graduada em Direito pela PUC/MG Professora de Direito Administrativo PALAVRAS-CHAVE: Senado Federal - Teoria Geral do Federalismo Pacto Federativo Representação dos Estados INTRODUÇÃO: A Constituição Federal, a partir de seu artigo 53, estabelece imunidades e vedações ao Poder Legislativo, a fim de assegurar aos membros deste a independência e liberdade para o exercício de suas atribuições constitucionais. O conjunto dessas normas é denominado Esrtatuto dos Congressistas. As imunidades, prerrogativas estatuídas em razão do cargo, e não da pessoa que o ocupa, dividem-se em absolutas ou materiais e em relativas ou formais. As absolutas conferem aos parlamentares federais, estaduais e municipais, estes na circunscrição de seu município, a inviolabilidade em virtude suas opiniões, palavras e votos. Iniciam-se com a posse do representante. Já as relativas, também chamadas processuais, protegem os parlamentares federais e estaduais, concedendo-lhes prerrogativa de foro e estabelecendo, desde a diplomação, que somente poderão ser presos em caso de flagrante de crime inafiançável. Entretanto, considerando o presente cenário político nacional, o que se busca aqui analisar são as hipóteses em que os parlamentares, não obstante as inviolabilidades constitucionamente
previstas, podem perder seu mandato antes do fim da respectiva legislatura.. Tais se encontram no artigo 55 da Carta Maior. São elas: Art. 55. Perderá o mandato o Deputado ou Senador: I - que infringir qualquer das proibições estabelecidas no artigo anterior; II - cujo procedimento for declarado incompatível com o decoro parlamentar; III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos previstos nesta Constituição; VI - que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. O 2º do mesmo artigo assevera que nos casos dos incisos I, II e VI, a perda do mandato será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta, mediante provocação da respectiva Mesa ou de partido político representado no Congresso Nacional, assegurada ampla defesa. Afere-se que a Constituição somente faz menção expressa à decisão por voto secreto e ao quórum de maioria absoluta. Assim, o procedimento a ser adotado para o curso do julgamento fica a cargo das disposições constantes no regimento interno da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal. Como base para análise, tomemos o primeiro caso envolvendo o presidente do Senado, Renan Calheiros, cujo julgamento ocorreu na última quarta-feira, dia 12 de setembro de 2007. O parlamentar em questão foi acusado de ter despesas pessoais pagas por um lobista ligado à Construtora Mendes Júnior. Mencionada conduta seria, em tese, incompatível com o decoro parlamentar. No desfecho, a decisão final foi pela absolvição do senador, por um placar de 40 votos pela não cassação, contra 35 favoráveis à perda do mandato e 6 abstenções.
Conforme o regimento interno do Senado Federal, permite-se que os parlamentares se abstenham de votar. In verbis. Art. 288. As deliberações do Senado serão tomadas por maioria de votos, presente a maioria absoluta dos seus membros (Const., art. 47), salvo nos seguintes casos, em que serão: (...) III por voto favorável da maioria absoluta da composição da Casa: (...) c) perda de mandato de Senador, nos casos previstos no art. 55, 2º, da Constituição; 2º Serão computados, para efeito de quorum, os votos em branco e as abstenções verificadas nas votações. (Nova Redação). Art. 291. Será secreta a votação: I quando o Senado tiver que deliberar sobre: (...) b) perda de mandato de Senador, nos casos previstos no art. 55, 2º, da Constituição. Esta previsão, a priori, não parece ser a mais correta, visto que, ao precederem ao julgamento, a respectiva Casa Legislativa exerce função atípica, tendo em vista que aplica a lei ao caso concreto mediante processo regular. Sendo assim, quando da apreciação de processo que busca decidir acerca da perda ou não de mandato de parlamentar, dever-se-iam aplicar ao julgamento as regras concernentes ao Poder Judiciário, uma vez que, como dito acima, nessas hipóteses o Poder Legislativo estaria exercendo atribuição materialmente jurisdicional. Ao ser imbuído da função judicante, o parlamento fica vinculado às prerrogativas e deveres conferidos aos magistrados. Sabe-se que ao apreciar um caso o juiz não pode se furtar de proferir uma decisão, salvo quando declarado impedido ou suspeito. Em conseqüência, os parlamentares também não poderiam ter essa faculdade, qual seja, votar ou não em um julgamento colegiado de competência da Casa Legislativa. Para estes julgamentos a Constituição Federal já confere certo privilégio, o qual consiste na possibilidade de a votação ser secreta. Desse modo, a previsão constante do Regimento
Interno do Senado Federal que permite a abstenção de votar aos parlamentares não pode ser manipulada a fim de se afastar a responsabilização constitucionalmente estabelecida. Conforme dados veiculados na imprensa nacional, os seis votos de abstenção foram o motivo da absolvição. A exemplo, citem-se as palavras do líder do PSDB no Senado, Arthur Virgílio: "Eu estava preparado para o placar de 41 a 40 para que lado fosse, mas as abstenções mostraram uma covardia física de pessoas que já estavam protegidas pelo voto secreto". "O calvário não é só de Renan, é nosso. Ninguém esperava abstenção num processo como esse. Lavar as mãos foi o que levou a esse resultado, disse o democrata. Não bastassem as severas críticas existentes em relação à possibilidade de se furtar de proferir voto, seja ele secreto ou não, verifica-se que o julgamento ocorrido no Senado ainda apresenta outras máculas. O SENADO E A DINÂMICA DA SOCIEDADE BRASILEIRA As decisões proferidas em julgamentos realizados pelo Poder Legislativo devem apresentar-se racionais, completas e compatíveis com os elementos de prova constantes do processo. Uma vez que o sistema de íntima convicção do juiz já foi superado, prevalece o sistema do livre convencimento motivado, no qual o magistrado tem a liberdade na seleção e valoração dos elementos de prova para proferir decisão, mas deve, necessariamente, justificar seu pronunciamento. Assim, não obstante estar exercendo função atípica de julgamento, os parlamentares, mesmo que através de votação secreta, deveriam pautar seu voto em elementos concretos e valorados, de maneira que a motivação implícita garantisse a inexistência de qualquer contradição capaz de propiciar mínima perplexidade entre a decisão final e as provas. As prerrogativas constitucionais do parlamento visam a assegurar sua independência e autonomia, e não a impunidade. Tanto é que, para garantir a repressão dos atos execráveis, o legislador constituinte asseverou no 4º do art. 55 que a renúncia de parlamentar submetido a
processo que vise ou possa levar à perda do mandato terá seus efeitos suspensos até as deliberações finais da Casa respectiva. Desse modo, a disposição constitucional que assegura a votação secreta em caso de perda do mandato ou a previsão regimental que faculta o exercício do voto na sessão de julgamento não podem ser distorcidas a ponto de se fundamentar uma decisão destoante dos elementos probatórios existentes nos autos do procedimento. Ao se verificar que a decisão final proclamada pela Casa Legislativa referente às hipóteses presentes nos incisos I, II e VI do artigo 55 da Constituição Federal é manifestamente incompatível com as provas coletadas nos autos, caberá recurso ao Poder Judiciário a fim de que analise a legalidade da medida. Isto porque no Brasil prevalece o mecanismo de controle da jurisdição única, no qual o Poder Judiciário tem a última palavra. Tal mecanismo também é conhecido por sistema inglês. Nesse sentido, a lição de Alexandre de Moraes, que afirma que as medidas políticas sujeitas à discrição de um dos poderes são incensuráveis, salvo quando tomadas com desrespeito à Constituição ou às leis. (Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional 16ª ed. São Paulo: Atlas, 2004.) Sabe-se que, em regra, a discricionariedade de uma medida não pode ser revista pelo Judiciário. Entretanto, o Supremo Tribunal Federal já se pronunciou no sentido de que, quando o motivo ou objeto desta medida afetam a própria legalidade, pode sim haver o controle jurisdicional. Esta revisão consiste em controle de princípios constitucionais, que embasam até mesmo o mérito administrativo, que deve ser razoável, ou seja, legal. É fato que a Constituição proclama em seu art. 2º que são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Completa tal enunciado o disposto em seu art. 60, 4º, III, qual seja, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: III - a separação dos Poderes. Assim, o que se está defendendo não é a sujeição de todos ao Poder Judiciário ou a não soberania do veredido proferido pela respectiva Casa Legislativa em se tratando de julgamento
de seu parlamentar, mas sim a necessidade de se efetivar o sistema de freios e contrapesos, a fim de se manter o equilíbrio e a harmonia da democracia brasileira. O Princípio da Separação dos Poderes pressupõe a amplitude da liberdade de crença e ação do parlamentar, como forma de se garantir a democracia e de se evitar que o Legislativo ceda frente a pressões dos demais Poderes. Todavia, este invólucro de proteção ao parlamento não torna os representantes do povo no Congresso intangíveis, isto é, fora do alcance da lei. Isto porque as prerrogativas conferidas pela lei aos parlamentares não podem servir de escudo protetivo para salvaguardá-los de práticas ilícitas. Segundo o Princípio Republicano, que, conforme voto proferido pelo Ministro Joaquim Barbosa consiste em cláusula pétrea, todas as autoridades que exerçam parcela do poder devem ser responsabilizadas, ou seja, estão sujeitas aos instrumentos de combate à impunidade, diferentemente do que ocorria com os monarcas absolutistas, os quais eram considerados irresponsáveis. CONCLUSÃO: Assim, a previsão constitucional de que o parlamentar cujo procedimento seja declarado incompatível com o decoro parlamentar deve perder o mandato, após julgamento pela respectiva casa, é norma imperativa que não pode ser frustrada com base em disposições infraconstitucionais. Enfim, ao se verificar que um fortuito julgamento, realizado pelo Poder Legislativo, é viciado, seja porque os parlamentares se valeram da opção conferida pela lei interna de que eventualmente podem se abster de votar, a fim de conduzir de meneira sorrateira a certa decisão, seja porque a decisão final foi de encontro às provas arrecadas ao longo dos autos, haverá possibilidade de se provocar o Poder Judiciário, como órgão guardião da legalidade. Tal se justifica em razão de que em ambos os casos estar-se-ia ferindo determinação constitucional, consistente no dever de se apurar e responsabilizar a autoridade que procedeu de forma odiosa.