LIXO EXTRAORDINÁRIO E A LUTA DOS CATADORES DE MATERIAL RECICLÁVEL

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Transcrição:

LIXO EXTRAORDINÁRIO E A LUTA DOS CATADORES DE MATERIAL RECICLÁVEL Priscylla Leite De Moraes Universidade Federal De Uberlândia priscylla1311@hotmail.com Maria Clara Tomaz Machado Universidade Federal De Uberlândia mclaratmachado@yahoo.com.br O presente trabalho busca compreender a realidade dos catadores de materiais recicláveis do Jardim Gramacho na cidade de Duque de Caxias, Rio de Janeiro, Brasil, através do vídeo documentário Lixo Extraordinário, gravado pelo artista plástico Vik Muniz durante os anos de 2007 a 2013. Abrangendo desde o início da gravação até a influência e repercussão do vídeo no dias atuais, paralelo a isso buscamos compreender as lutas empreendidas por eles na Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano Jardim Gramacho ACAMJG. Este documentário se torna conhecido através de sua indicação ao Oscar, sendo uma nova chance de uma co-produção brasileira ganhar o prêmio e, portanto divulgado pela mídia junto às suas fotografias, inovadoras e comoventes, que suscitam o interesse de muitos, inclusive da atual proposta de pesquisa, que propõe discutir o vídeo documentário enquanto representação da realidade vivida pelos catadores no aterro. A motivação para o estudo desse tema foi além das inúmeras questões que as obras do artista propõem, o estágio como bolsista no Laboratório de Pesquisa em Cultura Popular e Vídeo Documentário DOCPOP vinculado ao Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, sendo financiados dois projetos pelo Programa de Extensão Universitária PROEXT/MEC: Populis em Ação: capacitação técnica para gestores e profissionais do patrimônio cultural e Programa de Preservação Cultural: Memórias, identidades e culturas populares no qual os focos de estudos eram o vídeo documentário enquanto recurso imagético para o estudo historiográfico através

de Grupos de Estudos, Ciclo de Debates, Palestras e Encontros em torno do tema, onde tive acesso a uma vasta leitura historiográfica quanto à relação entre cinema e história. Para participação dos eventos era necessária uma bibliografia básica para levantar o debate iniciando com Fernão Pessoa Ramos em Mas afinal... o que é mesmo um documentário? explicitando as técnicas de construção do vídeo documentário assim como seu caráter de realidade, posteriormente tive acesso ao texto de Ismail Xavier em O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência que trata como o historiador deve utilizar os recursos imagéticos em sua pesquisa tendo consciência do caráter de ficção dos filmes e a necessidade do diálogo com tais representações da realidade. Com estes e outros textos fui tecendo uma leitura crítica dos documentários e filmes, podendo começar a indagar meu objeto de pesquisa. Desse modo vinculo meus conhecimentos da narrativa fílmica aos livros produzidos por Vik Muniz Reflex: Vik Muniz de A a Z e Vik Muniz: Obra completa a fim de compreender a vida, obra e intenções do artista, como chegou ao tema e seu modo de produzir. Através dessas obras percebemos que Vik Muniz já utilizava comidas para compor suas obras assim como As crianças de açúcar que trabalhavam no Caribe, a Monalisa de Chocolate, e a capa do CD da banda brasileira Tribalistas feita de chocolate, passando a trabalhar também com os restos de alimentos e objetos o lixo, criando várias imagens como a abertura da novela Passione exibida pela Rede Globo de Televisão durante os anos de 2010/2011 estrelando, Reinaldo Gianecchini (ator brasileiro) nas obras de Muniz. O artista decide conhecer um pouco mais da realidade dos materiais em que utilizava em sua arte, buscando no Jardim Gramacho o maior aterro sanitário do mundo o palco para essa nova obra. O que chamou sua atenção foi à triste história de mais de 1500 homens e mulheres que viviam como catadores de material reciclável a ser revendido para as indústrias de transformação. Ali, a miséria humana se acumula entre casebres, favelas, tratores de esteiras, pás carregadeiras, ônibus e centenas de pessoas que, vistos de cima, parecem formigas transitando pelos restos produzidos pela sociedade de consumo.

Essa realidade estimulou Vik Muniz a realizar além do documentário e das fotografias de arte, um trabalho que também é social por que não político? Os personagens que escolhe tanto para o filme quanto para os retratos são os sujeitos sociais que sobrevivem desse lixão. Mesmo de maneira controversa, porque sabe que esse triste lugar não pode ser mudado apenas por uma ação sua, ele espera contribuir para que os catadores sintam orgulho de si mesmos e possam com os milhares de dólares que doou à associação desse aterro sanitário (ACAMJG) investir em projetos sociais para qualificação profissional do que ali trabalham. 1 Ao criar personagens Muniz procura associá-los às atividades que eles desenvolvem em seu trabalho ou nas relações afetivas e de gênero que perpassam a realidade deles. O exemplo disso é Suellen, mãe que relata sua trajetória de vida e encena com seus filhos a pintura Madonna com Criança de Giovanni Bellini (1510). Tião, presidente da ACAMJG, que é visto como revolucionário pelo artista se deixa retratar como O Suicídio de Marat de Jacques-Louis Davis (1793), ou a passadeira Isis que posa como Mulher Passando Roupa de Pablo Picasso (1904). Alguns episódios retratados no filme mostram também, através das memórias dos depoentes do filme, a violência presente na periferia, tal como o relato sobre o assalto em que levaram $ 12.000,00 que os catadores haviam ganhado após um dia de trabalho. E outros como o depoimento de Suellen (mãe) que se assustou ao se deparar com um bebê morto no lixão. Verificam-se situações que os aparelhos tecnológicos desprezados pela classe média são exaltados por estas pessoas; por exemplo, a empolgação dos catadores ao verem um gravador de voz no lixão. No lixo esses atores sociais percebem a diferença de classes, pois aparelhos descartados por outras pessoas são por eles valorizados, e a dedução de qual classe social vem uma melissa e a qual pertence um aparelho celular com touch screen. É percebendo esta realidade, por meio de livros também refugados por outras pessoas, como obras de Nietzsche e Maquiavel, que Tião Santos decide formar uma biblioteca na ACAMJG. 1 Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano Jardim Gramacho criada e liderada por Sebastião Carlos dos Santos.

Com isso a abordagem historiográfica que a pesquisa segue é a da Escola dos Annales 2 (1925-2013) que rompendo com a história oficial que privilegiava os heróis, a política e os grandes acontecimentos, abrem novas perspectivas, e também ultrapassa o determinismo marxista. Dessa maneira, o fenômeno social adquire diversos prismas, no qual a complexidade do evento histórico passa a ser inquirido. Não só o real, a verdade, mas a trama, cujas utensilagens mentais permitem visualizar a riqueza das representações tecidas pelos sujeitos sociais quando recontam sua história. Por isso, as novas formas de abordagens, os novos temas e objetos. 3 Se desde 1970 essa nova história tem como foco as mentalidades e o imaginário, 1990 demarca uma nova fase a da história cultural 4. Chartier, Revel, Ginzburg, entre outros criticam as mentalidades como repleta de generalizações, a proposta é que se pense a cultura envolvida numa teia de relações sociais. Por essa nova perspectiva historiográfica os significados simbólicos, as imagens, as representações fílmicas, literárias e artísticas se constituem em novas narrativas, nas quais os sujeitos sociais evidenciam o seu passado e, nesse trâmite, a diversidade de fontes com os quais o historiador tem agora a possibilidade de dialogar. Sendo assim o que nos atrai enquanto historiador nesse trabalho de Vik Muniz é pensar num diálogo entre história e ficção, história e arte e, nesse sentido, o filme e as fotografias não só como documentos, mas como evidencias de uma realidade desse Brasil, 8ª potência do mundo, que ainda lida com as injustiças sociais e a discriminação de excluídos e marginalizados. Nesse caso, os desqualificados do mundo formal do trabalho, que evitam como eles mesmos afirmam a prostituição, o crime e as drogas, se submetendo a viver do lixo descartado pela sociedade. A história ambiental aqui se cruza para entendermos esse contexto. De há muito essa não é uma ocupação nova, porém multiplicada pelos milhares de trabalhadores que sofreram com o encolhimento do número de empregos formais frente à tecnologia avançada. É como relata o historiador Antônio de Pádua Bosi: [...] Como conseqüência, um número cada vez maior de pessoas perdeu suas fontes tradicionais de remuneração, encontrando-se diante da 2 Cf.: BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1977. 3 LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Org). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979. 4 Cf.: PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

necessidade de buscar alternativas. Neste contexto, a rua constituiu-se como um espaço dentro do mercado de trabalho que parecia abrir suas portas aos trabalhadores desempregados. Assim, o trabalho dos catadores aparece como uma das diversas formas que hoje fazem da rua seu lugar de trabalho. 5 Esse novo ofício irá enfrentar vários problemas, o primeiro a acentuar é o da informalidade, que não lhe oferece os devidos direitos legais como nas demais profissões. O segundo é a discriminação social em relação a essas pessoas que, por trabalharem com o lixo, são mal vistas pela sociedade que os joga para escanteio, por não estarem nos padrões adequados de roupas e cheiros de acordo com o mercado formal. A questão da saúde dos catadores no aterro também é algo preocupante, visto que o lixo é fonte de transmissão de muitas doenças como leptospirose, tétano, dengue, febre tifóide, cólera, esquistossomose, câncer, intoxicação, alteração do ciclo menstrual, malária etc. Antônio de Pádua Bosi retoma no trabalho citado a obra O Bicho de Manuel Bandeira. Esse literato, em 1947, retratava a vida de pessoas que caçavam comida no lixo, mas ainda sem fins lucrativos. Nela, salientou os conflitos entre Berrão, que comprava e revendia papel para reciclagem, e diversos catadores que recolhiam o material em sacos. Na rotina diária da catação de papel, os catadores tentavam disputar com Berrão o controle sobre o trabalho. 6 De lá para cá o número de pessoas que sobrevivem dessa prática aumentou influenciada também pela preocupação com a contaminação do solo, dos lençóis freáticos e nascentes de rios, abrindo espaço para a consciência ecológica e o desenvolvimento da legislação ambiental. Todavia, essa preocupação não reverberou no que diz respeito aos cuidados com essa modalidade de trabalho. Ao aproximarmos a narrativa fílmica da história 7 acreditamos ser convexa a possibilidade de se transitar entre o cotidiano desses atores que perambulam pelo lixão. Suas memórias, seus depoimentos e suas lutas, expressas por meio da sua associação demonstram as múltiplas transversalidades entre o real e a sua representação. É claro que nós historiadores sabemos que esse documentário ocorre (2007-2010) num tempo 5 BOSI, Antônio de Pádua. A organização capitalista do trabalho informal : o caso dos catadores recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 23, n. 67, 2008. 6 Idem. 7 Cf: BARTHES, Roland. O óbvio e o obtuso. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1990.. A câmara clara. São Paulo. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 2000.

político da preparação para a conferência Rio +20, 8 quando os órgãos que tratam da política ambiental em nível federal, estadual e municipal, intentam subsumir com o lado negativo do cartão postal da cidade maravilhosa. Já dizia os versos de Fernanda Abreu. Rio 40 graus Cidade Maravilha Purgatório da beleza e do caos Capital do sangue quente Do Brasil Capital do sangue quente Do melhor e do pior Do Brasil [...] 9 Daí uma série de projetos, propostas e ações governamentais para a desativação desse aterro que, de fato, é fechado em 2012. A ACAMJG nesse ínterim luta e discute em favor dos direitos desses trabalhadores que se vêem na eminência do desemprego puro e simples. Para onde ir? O que fazer? É possível pensar que a obra de Vik Muniz e seu envolvimento com os trabalhadores tenham aberto outras possibilidades para enfrentar o futuro? Aqui não há como fugir de uma nova linha de trabalho dentro da área das ciências humanas que já nos reservam uma bibliografia pertinente ao que diz respeito à preservação do meio ambiente. Associações de catadores de materiais recicláveis, diversas ONGs, universidades, secretarias do meio ambiente, tem discutido não só sobre a questão ambiental, mas também como integrar e respeitar as tradições e os costumes daqueles que trabalham nestes lugares. 10 Essas leituras irão subsidiar os acontecimentos que viveram e têm vivido os trabalhadores de Gramacho. A relação entre documentário e história é muito nova no que diz respeito à maneira como essa última lida com as narrativas, agora à disposição do pesquisador. De certa perspectiva este projeto tem como fundamentação teórica a história cultural e nela a cultura e, em específico, o documentário de Vik Muniz será compreendido como um 8 Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento Sustentável que ocorreu durante os dias 13 a 22 de junho de 2012, Rio de Janeiro, Brasil. 9 ABREU, Fernanda. et. al. Rio 40 graus. In: Sla 2 be sample. Rio de Janeiro: EMI-Odeon, 1992. 10 Cf: MARTINEZ, Paulo Henrique. O sentido da devastação: para uma história ambiental no Brasil: Esboço, Florianópolis, nº13, 2005; ROSENDAHL, Zeny (org.) Paisagem, tempo, cultura. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 1998; PELEGRINI, Sandra. Cultura e natureza: os desafios das práticas preservacionistas na esfera do patrimônio cultural e ambiental. Revista Brasileira de História. São Paulo, V. 26, nº 51, 2006.

conjunto de significados partilhados socialmente para explicar o real vivido. 11 Aqui estabelecemos um elo entre a narrativa fílmica. Desse modo, representação (documentário 12 ) e lutas sociais se cruzam nas fontes impressas, como matérias de circulação nacional lançadas na Folha de São Paulo, no jornal O Globo e em blogs que circundam o filme Lixo Extraordinário em matérias referente à Vida e Obra de Vik Muniz, matérias que trazem uma crítica ao vídeo documentário, às premiações do filme (por exemplo, Sundance), o Oscar e a derrota do filme, a divulgação da mídia a concorrência do Oscar, personalidade do catador Tião Santos. Essas matérias de jornais foram feitas para atrair um público leitor das noticias mundiais a fim de estarem a par dos acontecimentos, produzidas por jornalistas que tentam suprir essas necessidades de caráter informativo, produzidas na época que o documentário concorreu ao Oscar no Rio de Janeiro e em São Paulo, disponibilizado pelo sistema online. Em paralelo as matérias do filme e seus personagens são necessários utilizar também fontes que falem sobre a política ambiental de reciclagem, como as propagandas do Instituto Coca-cola Brasil que trazem Tião como ator principal através do tema Semana Otimismo que transforma um incentivo da empresa a reciclagem, para atrair consumidores de seu produto, utilizando o catador que concorreu ao Oscar como marketing no ano de 2012 sendo disponibilizadas fontes no site, em revistas e seus vídeos no site de compartilhamento de imagens Youtube, também estudamos a construção do novo pólo de reciclagem da ACAMJG, o papel da ACAMJG na mídia, a ACAMJG e sua preocupação com a sustentabilidade e a situação de trabalho e renda dos catadores, no qual nossas fontes são blogs ambientais, blogs da ACAMJG, facebook, produzidos por associações para informar o público do que acontece com o meio-ambiente desde a gravação do filme até os dias atuais, sendo um estudo de redes sociais. Todas essas fontes impressas devem ser devidamente vinculadas às fotografias produzidas por Vik Muniz, fonte importante de estudo como ferramenta de apoio ao 11 PESAVENTO, Sandra Jatahy (org.) História e linguagens: texto, imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. 12 MUNIZ, Vik. Vik Muniz: Obra Completa 1987-2009. Rio de Janeiro: Capivara, 2009.

vídeo documentário, além de um diálogo com os livros de Vik Muniz, os programas de televisão (entrevista com Jô Soares, Profissão Repórter), propagandas comerciais (Coca-cola) encenadas por Sebastião dos Santos Presidente da Associação e seu desempenho carregando a tocha olímpica em Liverpool nos permitirão compreender a imbricação desse tema com as questões políticas e sociais dele advinda. Daí, a necessidade de decodificar os diversos elementos que compõem o filme (Roteiro, direção, produção, edição, entre outros), com base na metodologia Esse projeto de pesquisa se fundamenta na chamada História Cultural, e se propõe a refletir sobre a cultura, compreendendo-a como um conjunto de significados partilhados socialmente para explicar o real vivido. Tal como afirma Pesavento: [...] A cultura é ainda uma forma de expressão e tradução da realidade que se faz de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais se apresentam de forma cifrada, portanto, já um significado e uma apreciação valorativa. 13 Também é por meio da história cultural que foi possível pensar a relação entre ficção e história, tão cara a nossa proposta, pois pretende lidar com o real e o imaginário, o documentário como uma representação desse real e a arte como a sua (re) significação. Sabemos de antemão que a história não pode ficcionar a realidade, inferir evidências, criar personagens, mudar cronologicamente os seus eventos. Todavia, a história ao lidar com um passado, incapaz de ser novamente vivido, torna-se uma construção dele, por meio de um discurso imaginário e aproximativo sobre aquilo que teria ocorrido um dia e que nos foi legado por meio de evidências, também elas produzidas a partir de uma visão de mundo. Por isso, a história, em certa medida, aproxima-se, por meio de sua narrativa da ficção, porque joga com o possível, as conjecturas, o plausível, o verossímil. Nesse viés, a (re) figuração do tempo é um elemento central da narrativa histórica, bem como o é para o vídeo documentário. Entretanto, enquanto o artista pode explorar nuances do real de forma imaginativa, a história vai buscar os traços deixados pelo passado. A sua meta é descobrir como o evento teria ocorrido, processo esse que comporta urdidura, montagem, seleção, recorte, exclusão. Tal edição, que configura a narrativa final, procede de esquemas acadêmicos, mas também envolve a subjetividade, a sensibilidade do sujeito que historia o seu objeto. Tais considerações nos levam a 13 PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. p. 15, Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

percorrer uma historiografia consistente no que diz respeito a duas temáticas tão caras a esse projeto: as que se referem às relações entre cinema e história e aquelas que se encontram no cruzamento entre natureza e cultura, hoje definido como uma história do meio ambiente. O cinema enquanto narrativa visual da modernidade surge como uma das expressões derradeiras em fins do século XIX. Desde então o que tem encantado platéias nos mais distantes rincões do mundo é a sua possibilidade de contar histórias a partir de uma nova linguagem que, por meio das imagens, luz e movimento, relatam o provisório da vida. Com isso nosso objetivo principal é compreender a realidade vivida pelos trabalhadores do Aterro Sanitário Jardim Gramacho, estabelecendo os possíveis nexos entre história e ficção, políticas ambientais e a luta dos catadores de lixo. Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. A câmara clara. São Paulo. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 2000.. O óbvio e o obtuso. São Paulo: Ed. Nova Fronteira, 1990. BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. São Paulo: Cia das Letras, 2009.. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo. São Paulo: Cosac Naify, 2003.. O que é cinema. São Paulo: Brasiliense. BOSI, Antônio de Pádua. A organização capitalista do trabalho informal : o caso dos catadores recicláveis. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, v. 23, n. 67, 2008. BURKE, Peter. A escola dos Annales (1929-1989): A Revolução Francesa da Historiografia. São Paulo: Ed. UNESP, 1977. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.

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