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Transcrição:

2 Prelúdio Fui patriota e não fui, Paulistano e não fui, Comunista e não fui, Mulato e não fui, Mas um dia afinal toparei comigo Mário de Andrade em Eu sou trezentos

12 O percurso acadêmico que antecede a esta Tese foi dedicado a pesquisar a impossibilidade do sujeito encontrar um objeto que o satisfaça plenamente, e os possíveis caminhos de contorno na arte. Minha Dissertação de Mestrado, publicada posteriormente sob a forma de livro, procurou abordar o que é a voz na psicanálise, tendo como argumentos os conceitos de pulsão, objeto a e invocação. Seguindo a sugestão de Freud (1980[1907]) e de Lacan (1989[1965]), para os quais o artista possui um saber sobre o inconsciente, escolhi a arte (literatura, música, cinema, pintura, cerâmica) para embasar a articulação entre a voz e outros conceitos psicanalíticos mencionados acima, e circunscrevê-la como o mais importante objeto pulsional da subjetividade. O título da Dissertação A voz na psicanálise: Um sopro de vida aponta para a importância atribuída a este objeto no universo do sujeito. O tema proposto por esta Tese deriva em parte da pesquisa do Mestrado e de trabalhos anteriores a respeito da criação artística e do desejo. Vários textos apresentados e publicados serviram para a construção do presente trabalho. Os artigos anteriores a esta Tese deixaram em aberto algumas questões. Dentre elas, três causaram mais inquietação. Em tempos de descobertas e avanços da tecnologia, com a ciência tão ansiosa por responder o enigma e a dor de existir, como está o homem diante do desejo? Onde se coloca a dimensão trágica frente ao privilégio do absurdo tão presente no espírito dos nossos tempos? Como a arte modernista se colocou neste contexto? Atualmente existem inúmeras propostas de solução para o sofrimento humano, como se a felicidade fosse uma simples química a ser ministrada e administrada. Neste sentido, onde se coloca o mal-estar? Se o referencial escolhido for a filosofia de Nietzsche ou a obra freudiana, nas quais o mal-estar é considerado inerente a viver e desejar, como então explicar a frenética ilusão moderna quanto a uma vida sem desperdícios de tempo, contradições, e perdas, enfim, uma vida sem desejo e sem falta? É bastante comum em tempos tão densamente marcados pelo imediatismo nas mudanças, encontrar pessoas ansiosas por se livrarem de seus males, a partir de soluções miraculosas. Contudo, se o homem moderno tem inquietações referentes ao seu tempo, há algo, que apesar de malvisto e mal-dito, não saiu de cena: o desejo e

13 as contradições inerentes a ele. Apesar de variarem as contextualizações, a vida envolve sempre paradoxos, uma vez que o sujeito é dividido. A confirmação disso é que a frase do coro da tragédia de Édipo: A vida não quer sarar... Sarar, aliás, o que é? pode ser bem contextual na Modernidade. Deste modo, se em um primeiro momento de pesquisa ganhou destaque a teoria psicanalítica no estudo da voz e da sublimação na criação artística, agora se trata de desdobrá-la em uma proposta transdisciplinar, na qual a obra modernista de Mário de Andrade é o instrumento de estudo para que seja investigada a dimensão trágica do desejo na modernidade. É possível que, neste momento, o leitor se faça a pergunta: por que um trabalho de pesquisa em psicanálise não foi buscar sustentáculos em suas próprias bases? Neste caso, faço minhas as palavras de Lacan e de Clarice Lispector: Nem no que diz o analisando, nem no que diz o analista, não existe outra coisa além da escrita 1 Escrevo como escrevo sem saber como e porque é por fatalidade de voz. O meu timbre sou eu. Escrever é uma indignação. É assim: Será que estou me traindo? Será que estou desviando o curso de um rio? Tenho que ter confiança nesse rio abundante... Há tantos anos me perdi de vista que hesito em procurar me encontrar. Estou com medo de começar. Existir me dá às vezes tal taquicardia. Eu tenho tanto medo de ser eu. Sou tão perigoso que me deram um nome e me alienaram de mim. 2 A idéia de cursar um Doutorado em Letras configurou-se, portanto, a partir de um olhar crítico que exigiu deslocar o foco de uma perspectiva centrada na teoria psicanalítica para uma abordagem mais rica, que propõe a literatura como o eixo principal, ao qual se conjugam contribuições filosóficas e psicanalíticas. Nesta Tese, propus-me a realizar uma reflexão sobre a voz na criação literária modernista. Justamente por ser perpassado por uma intertextualidade que convida a 1 LACAN, J. Écrits, p. 68. 2 LISPECTOR, C. Um sopro de vida ( pulsações), p. 16.

14 uma releitura, Amar, verbo intransitivo 3, o romance-idílio de Mário de Andrade, foi escolhido a fim de examinar a hipótese de que a expressão da dimensão trágica do idílio, e mais amplamente do desejo, resiste e insiste na voz da ficção modernista através da polifonia. Cumpre destacar, que dado este objeto de estudo, este trabalho fez incursões na filosofia e na música sem, contudo, pretender abarcar a densidade desses campos. Em outras palavras, elegendo a obra de Mário de Andrade como instrumento, pretende-se com esta Tese realizar um percurso de pesquisa que analise tanto o lugar da voz na produção literária modernista, como o espaço transitivo entre a ficção e o mundo moderno, colocando em relevo, através da criação polifônica, os elementos estruturais que sustentam uma importante reflexão acerca da condição humana na Modernidade. Este trabalho na área de Estudos de Literatura inscreve-se na linha de pesquisa Questões de Representação na Literatura, vinculada ao Projeto Representação literária e vida cultural, já que a psicanálise e as propostas filosóficas de Benjamin e Nietzsche podem servir de fontes de investigação para as relações entre o cânone literário e a Cultura. Parodiando Mário, seu texto permite trezentos e cincoenta recortes mais um, o desta proposta, que pretende abordar a voz, máscara, polifonia e tragédia atravessadas pela arte expressionista, a recepção moderna, o narrar cinematográfico, o desenvolvimento urbano e da tecnologia no início do século XX. Para tal, esta tese tem como um de seus instrumentos metodológicos a análise literária de Amar, verbo intransitivo. Entretanto, cabe marcar que a pesquisa bibliográfica, que a fundamenta, deve trabalhar esta criação literária através das relações intra e intertextuais, que nela se articulam, sendo a análise feita pela iluminação das vozes de vários autores colocadas em polifonia. 4 3 ANDRADE, M. Amar, verbo intransitivo - Idílio. 16 edição. Biblioteca de Literatura Brasileira, vol. 2, Belo Horizonte, Villa Rica. Todas as citações desta obra ao longo desta tese indicar-se-ão no corpo do texto pela abreviatura AVI e do número da página de que foram extraídas. 4 Polifonia é uma composição musical em que várias melodias se desenvolvem independentemente mas dentro de uma mesma tonalidade. O coro trágico é um exemplo de polifonia.

15 Esse dialogismo entre Mário de Andrade e outros autores tem o objetivo de contrastar, confirmar e ampliar a hipótese de que o potencial de transfiguração trágica resiste na arte literária modernista sustentando o desejo através da polifonia. Para tal, a Tese se estrutura como um fugato 5, focalizando sete partes. A primeira se constitui neste Prelúdio 6 que apresenta os acordes textuais que marcarão o caminho desta composição. Como cabe a uma exposição 7 polifônica, a desta Tese apresenta os diversos elementos temáticos que atravessam Amar, verbo intransitivo. Para esta apresentação escolheu-se colocar em relevo a voz da literatura abordando a criação literária andradina como instrumento de leitura da modernidade, e em seguida iniciar as primeiras conjugações entre psicanálise e literatura. O entrelaçamento da ficção com a história, com a economia capitalista, com a estrutura social do início do século XX, o início da psicanálise no Brasil e a própria cidade de São Paulo como uma metrópole em formação são pontos que norteiam esta exposição com o objetivo de pensar a explosão do moderno. No episódio 8 focaliza-se a voz a partir de uma articulação entre psicanálise e música. Como um tom vizinho à literatura, a psicanálise pode pensar a criação literária a partir de suas conceituações de pulsão, invocação e extimo. Esta parte não se limitará a abordar o autor Mário de Andrade enquanto poeta e crítico musical. A 5 Fugato ou fuga é uma composição polifônica em estilo contrapontístico, sobre um tema único (sujeito), exposto sucessivamente numa ordem tonal, determinada pelas leis da cadência. Cumpre esclarecer que o estilo contrapontístico baseia-se, principalmente, na reprodução sucessiva dos mesmos movimentos rítmicos por duas ou mais vozes nos diversos graus da escala. A fuga se compõe de prelúdio, exposição, episódio, estreto, resposta, contraponto e coda. 6 Prelúdio é o tipo de composição instrumental que introduz uma obra, sempre precedendo, portanto, outro movimento (como na fuga), um grupo de movimentos (como em uma suíte de danças) ou uma obra em grande escala (como uma ópera). 7 Exposição é a parte inicial de uma fuga em que são apresentados os diferentes elementos temáticos que fazem parte da composição. 8 No contexto musical, episódio designa a parte da composição em que o tema é apresentado nos tons vizinhos. 9 Em A escrava que não é Isaura, consciente das possibilidades da palavra, Mário adverte que há musicalidade musical e musicalidade oral. O aspecto da melodia predomina, sem dúvida, na obra poética de Mário. Temos a música no seu aspecto mais rebelde: na musicalidade das palavras que aparecem rompendo com as regras gramaticais. É a poesia, no limite da linguagem, se querendo música, e no poeta, morando um trovador.

16 musicalidade da palavra 9 é que será o guia para se pensar a implicação da voz como objeto da pulsão que desenha a criação. O Estreto 10 foi essencialmente reservado para trazer Bakhtin, discutindo polifonia e carnavalização em Dostoievski, como uma voz que se conjuga e harmoniza com a de Mário de Andrade na criação polifônica Amar, verbo intransitivo. Como na fuga cumpre à resposta 11 a função de réplica, foram colocados em cena a filosofia nietzschiana e a psicanálise como os replicantes. Se na tragédia grega a resposta é apresentada pelo coro, nesta tese o coro das vozes de Mário de Andrade, Freud e Nietzsche inscrevem o trágico e o desejo como marcas do humano que se contrapõe à perspectiva da lógica racional e pragmática dos tempos modernos. O contraponto 12 é a discussão a respeito da obra Amar, verbo intransitivo marcando o surgimento do novo, pois traz no seu bojo a marca da réplica se combinando harmoniosamente com o início do fugatto. Várias vozes se apresentam para mostrar que a criação literária andradiana conjuga carnavalização e transfiguração em um deslizar da voz através das máscaras. Na medida em que esta Tese se estrutura como uma composição musical, a coda 13 neste trabalho, demonstra as conseqüências da reflexão empreendida ao longo do texto, sem, contudo, pretender um fechamento. A abertura do inacabado andradino convida a entrada de novas reflexões. Esta é trilha desta tese. Cumpre agora deixar que as vozes cantem, para que cada leitor escute, ao seu modo, cada acorde da música da palavra. 10 Estreto é a repetição por uma voz conseqüente, diversa daquela que apresentou a melodia pela primeira vez. 11 Resposta ou réplica é a parte da fuga em que o sujeito é apresentado em outro grau da escala melódica. 12 O contraponto marca que a réplica faz parte da composição musical, assim o tema novo passa a acompanhar o sujeito, com o qual se combina harmoniosamente. Várias vozes se apresentam sem infringir as regras da harmonia. Na fuga é a parte principal, a própria polifonia. 13 Coda é a finalização de uma fuga que se caracteriza por não ter um fim, abrindo outra vez para novas melodias.