Diversidade sexual nos mangás e animes e a receptividade desses na cultura latino-americana

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Transcrição:

Diversidade sexual nos mangás e animes e a receptividade desses na cultura latino-americana Lisiane Ortiz Teixeira 1 Evandro dos Santos Nunes 2 Os mangás (histórias em quadrinhos japonesas) e animes (desenhos animados japoneses) são fenômenos da cultura pop nipônica, comercializados para diversos países. É possível observarmos códigos de linguagem próprios desses materiais, como a forma dos olhos e a proporção entre a cabeça, o corpo, os braços e as pernas. Os sinais expressivos, a exemplo do rubor na face (interesse romântico), das gotas de água ao lado do rosto (constrangimento), dos dentes pontiagudos e dos olhos apertados (ataques de raiva) também são características das obras em questão. Esses materiais possuem nuances e não devem ser tratados como um simples entretenimento, sendo uma alternativa lúdica para as tensões cotidianas de um mundo exigente e competitivo (CARVALHO, 2007, p. 23). 1 Bacharel em Ciências Biológicas, Discente do Doutorado em Ciências da Saúde, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio Grande, lisiane_ ortiz@yahoo.com.br 2 Licenciado em Educação Física, Especialista em Educação Física Escolar, Discente do Mestrado em Educação, Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande, evandro.amigos.vcs@hotmail.com Esse estudo foi financiado pela FAPERGS. 1641

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO Durante o período Edo (1600-1867), o Japão ficou isolado do restante do mundo, com uma política antiestrangeiros, adotada pelo shogun (general no período imperial) Tokugawa Hidetada. Foi durante esse período que os japoneses desenvolveram novos suportes gráficos e aprimoraram suas técnicas de gravação (SANTOS, 2011, p.2). Já na Era Meiji (1868-1912), ocorreu a abertura dos portos e o contato com o exterior, permitindo a difusão da cultura japonesa para o restante do mundo. Estima-se que as exportações de produtos culturais japoneses girem em torno de 13 bilhões de dólares por ano (CARVALHO, 2007, p.16). Esses produtos midiáticos são produzidos e consumidos por todas as faixas etárias e classes sociais, o que os tornam um importante representante da identidade japonesa. Desse modo, o objetivo do presente trabalho foi analisar como a diversidade sexual é retratada nos mangás e animes e como se dá a receptividade desses materiais midiáticos no mercado latino-americano. A coleta de informações, para posterior análise, foi obtida de forma indireta, por meio de levantamento bibliográfico e bibliografia técnica específica (análise de mangás e animes específicos), orientadas por uma pesquisa descritiva, relatando os reflexos dessa cultura. A pesquisa adotou o método dedutivo, que se orienta por conceitos e abordagens gerais. Para a construção do tema, utilizou-se de imagens para exemplificar e evidenciar o assunto. Mangás No Japão, as vendas de mangás chegam a 2,5 milhões de exemplares em uma única semana (SANTOS, 2011, p.12). As pesquisas desenvolvidas pela Divisão de Economia Japonesa ( JAPÃO, 2005, p.6) registram um crescente aumento no consumo de mangás pelo Ocidente, principalmente nos Estados Unidos e nos países da América Latina. No Brasil, editoras como a Panini, JBC e Conrad ampliam anualmente seus catálogos, investindo em títulos destinados a uma grande diversidade de público. As publicações são mensais, quinzenais, bimensal e edições únicas, dependendo do material. A média é de trinta mangás diferentes publicados mensalmente no 1642

Brasil, chegando a 900 mil exemplares por mês. De acordo com as estimativas das editoras, esse número representa a metade de todos os quadrinhos produzidos no país (SANTOS, 2011, p.12). Das trinta publicações citadas anteriormente, 24 delas podem ser classificadas como homoafetivas, as quais são divididas em várias categorias, apresentadas na sequência. Os Shojo-Ai (tradução literal = amor entre meninas) são mangás e animes lésbicos voltados para meninas. São exemplos Strawberry Panic, Girl Friends (Figura 1), Prism e Wife and Wife. Já os Yuri são romances lésbicos voltados para meninos, com mais cenas de sexo explícito, por vezes considerados pornografia. O Yuri também é chamado de Class S onde o S, segundo Thompson (2010, p. 14), é do inglês Sister. Assim, são meninas que se veem como irmãs e se autoiniciavam nas atividades sexuais para aprendizagem prévia, ficando treinadas para seus maridos (BRAGA-JR, 2012, p.5). São exemplos de Yuri os mangás Kannazuki no Miko, Sono Hanabira ni Kuchizuke wo, Kuttsukiboshi, Shoujo Sect (Figura 2). Figura 1 Mangá Girls Friends (Shoujo-Ai) Figura 2 Mangá Shoujo Sect (Yuri) 1643

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO Já os mangás do tipo Futanari (tradução literal = duas formas) são hentais (pornô japonês), apresentando hermafroditas, intersexuais ou outros indivíduos com corpos femininos e órgãos sexuais que se parecem com pênis (VILLENA, 2012, p. 47). Os órgãos sexuais podem ser clitóris alargados ou realmente pênis (Figura 3). Tecnicamente, o termo também abrange personagens masculinos com ambos os tipos de órgãos sexuais; esses, porém, são normalmente excluídos. São exemplos os mangás Ayafuya, Hitting the books, e The Old College Try. Figura 3 Exemplo de Futanari É comum observar nesse tipo de materiais personagens muito bonitas, de traços finos e delicados, cabelos compridos, lábios carnudos, suaves e de movimentos calmos, que parecem ser mulheres. No entanto, quando essas personagens começam a falar, percebemos que são homens. São os Crossdressing Shota, mangás dedicados aos meninos que gostam de se vestir com roupas do sexo oposto. São exemplos os personagens Shun, dos Cavaleiros do Zodíaco; Kurama, de Yu Yu Hakusho; Marron e Mirufu-yui, de Bakuretsu Hunter; Olho-de-peixe, de Sailor Moon S (Figura 4) e Seiya Kou, de Sailor Moon Stars. Da mesma forma, com facilidade, encontramos rapazes magros, de cabelos curtos e olhos grandes, com expressões resolutas e movimentos rápidos, os quais, 1644

somente com o tempo, descobrimos que se trata de uma menina, como a personagem Haruka, de Sailor Moon S (Figura 5). Esses materiais em que as meninas se travestem são classificados como Bender. Muitos desses mangás têm personagens que não estão envolvidos de forma sexual, representando os conflitos interiores das mesmas em relação a sua identidade. Em inúmeros casos, a personagem do sexo masculino apenas apresenta a forma andrógina, tida como sinônimo de beleza no Japão. Muitas vezes, o travestismo é tratado de forma cômica, como no mangá e anime Ramma Nibun-no-Ichi ou Ramma 1\2, no qual um garoto de dezesseis anos, treinado em artes marciais, é amaldiçoado: toda as vezes em que ele é molhado com água fria, vira uma menina. No caso citado, o travestismo não tem conotação sexual ou de gênero, já que a personagem não apresenta escolha e nem reflete sobre situação. Figura 3 Exemplo de Crossdressing Shota Olho de Peixe, Sailor Moon S Figura 4 Exemplo de Bender Haruka, Sailor Moon S, Super S e Stars 1645

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO O gênero Shonen-Ai (tradução literal = amor de meninos) retrata relações românticas entre homens e é destinado para os homens. Essas relações românticas podem ser leves ou somente insinuadas e geralmente não há retratação do ato sexual. Muitas vezes é apenas uma amizade forte entre garotos e homens. Algumas obras se concentram apenas em relacionamentos Shonen-Ai, mas é comum encontrarmos algo do gênero em histórias sobre qualquer tema e direcionadas a qualquer público, inclusive o infantil. Um exemplo é o Sekai-ichi Hatsukoi 2, cuja classificação direciona-se para maiores de doze anos (Figura 5). Figura 5 Exemplo de Shonen-Ai Sekai-ichi Hatsukoi 2 Em contrapartida, o Yaoi é o romance entre homens, voltado para o público feminino. É um dos maiores gêneros e ainda se encontra em expansão. A palavra Yaoi é um acrônimo das iniciais de yama nashi, ochi nashi, imi nashi, que é traduzido para o português como Sem clímax, sem resolução, sem significado. A expressão originalmente se referia a quaisquer paródias brincalhonas de publicações conhecidas, mas logo assumiu uma conotação apenas relativa à homossexualidade masculina (PERET, 2009, p.4). Também conhecido como Boys Love, surgiu no Japão no final de 1970 sob a forma de doujinshi (mangás amadores), nos 1646

quais autores se apropriavam de personagens de mangás populares e os representavam em relacionamentos românticos homossexuais idealizados (CÉ, 2010, p.3). Esse tipo de mangá também possui nomenclatura própria como as palavras Seme (literalmente traduzido como atacante ) e uke ( receptor ), termos originados das artes marciais e que, em essência, não carregam qualquer conotação sexual. No Yaoi, esses termos são utilizados para designar o papel que o personagem desempenha na relação (CÉ, 2010, p.4), o que equivale em português ao que se convencionou como ativo e passivo, respectivamente. É comum que o seme seduza o uke que, por sua vez, é mais jovem, mais baixo, com um corpo mais delicado e olhos grandes, além de, obviamente, menos experiente. Um enredo comum nesse tipo de produto descreve a primeira relação sexual do uke após um período de resistência (PERET, 2009, p.5). O gênero circula entre o drama romântico-trágico, ao demonstrar as vicissitudes enfrentadas pelos protagonistas em defesa de sua paixão ou romance, envolvendo às vezes suicídio, fuga da sociedade ou o constante impedimento da concretização sexual ou do relacionamento (CÉ, 2010.p.4). São exemplos de Yaoi: Gravitation, Sex Pistol e Boku no Pico. Alguns autores (ARANHA, 2010b, p. 245.; MCLELLAND, 2005, p.21) afirmam que o Yaoi é descomprometido em relação aos relacionamentos gays e suas principais questões. No entanto, esse gênero é escrito por mulheres e para mulheres que vivem em um país onde o machismo é tão forte que elas devem sempre se curvar aos homens. Assim, o público feminino leitor desse gênero recria seu mundo através do relacionamento de dois homens, colocando, porém, nas falas masculinas, conteúdos que diriam respeito não ao universo homossexual masculino, mas ao próprio universo feminino. Assim, o propósito do Yaoi não é discutir o universo gay, mas sim uma forma de afirmação feminina e, por isso, ele não peca ao deixar de lado tais discussões relativas à homossexualidade masculina. Aranha (2010a, p. 992) classifica o Yaoi em dois subtipos: o Yaoi Bishônen e o Yaoi Bear (Figura 6). O primeiro relaciona-se a personagens com características andróginas, com personagens de traços finos e apresenta cenários de fundo bem construídos. Já o Yaoi Bear gira em 1647

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO torno da imagem de homens maduros, peludos (com barba ou não), musculosos e/ou gordos (ARANHA, 2010a, p.997), com imagens com traços mais rudes e com foco no personagem, sendo que, muitas vezes, o fundo é formado apenas por uma cor escura. Como é possível observar, o público-alvo do Yaoi Bear não são as mulheres e, por isso, essa categoria deveria ser classificada como um novo gênero de mangás e animes. Animes Figura 5 Diferenças no arquétipo dos mangás Yaoi Bishônen (esquerda) e o Yaoi Bear (direita). No Brasil, o anime é conhecido desde meados dos anos 80, quando algumas emissoras de televisão começaram a passar séries como Speed Racer, Zillion e Candy Candy. No entanto, foi somente na década de 90, com a exibição da série Os Cavaleiros do Zodíaco, pela Rede Manchete, que a animação japonesa começou a ganhar espaço no Brasil. O êxito deste permitiu a transmissão de outros animes de sucesso, como Sailor Moon, Dragon Ball e Pokémon. Com eles, as emissoras (tanto de televisão aberta quanto fechada) começaram a investir na exibição de animes, culminando na criação de um canal de TV fechada chamado Animax, no qual só são exibidos desenhos japoneses (FARIA, 2008, p. 1). Uma característica dos animes, diferente dos desenhos ocidentais, é que eles têm uma serialização, ou seja, a história continua de um episódio para outro, apresentando início, meio e fim. Além disso, os 1648

personagens sofrem a ação do tempo, como em Dragon Ball, no qual o personagem principal, Goku, começa criança, cresce, casa, tem filhos, envelhece e, por fim, morre. Muito dos animes são baseados e fiéis aos mangás que lhe deram origem, sendo muitos voltados ao público infanto-juvenil. No entanto, inúmeros são censurados nos países da América Latina. Receptividade dos mangás e animes nos países da América Latina Devido às diferenças culturais no modo da apresentação da diversidade sexual nos produtos midiáticos, muitos mangás e, principalmente animes, são censurados. A censura vai desde a edição dos episódios até a não exibição dos mesmos. Um exemplo de anime censurado é o CardCaptor Sakura. A série de setenta episódios foi lançada no fim dos anos 90 e conta a história da menina Sakura Kinomoto que, acidentalmente, liberta um baralho de cartas mágicas de um livro e passa a capturá-las e a controlar a magia delas. O anime foi transmitido sem censura nos canais abertos Chilevisión (Chile), Canal 5 (México) e América TV (Peru). No Brasil, o canal a cabo Cartoon Network passou a série original sem cortes. Já na Rede Globo, ocorreu a censura, baseada na presença de duas relações de conotação homossexual. A primeira foi entre a protagonista Sakura e a sua amiga Tomoyo, que gosta de filmá-la e vesti-la com fantasias especiais para as missões, causando grande constrangimento na jovem e tímida heroína. O anime sofreu cortes e alterações de dublagem para deixar o relacionamento entre as duas amigas mais próximo de uma amizade exagerada e quase caricatural. Já a segunda relação é entre o personagem Touya (o irmão mais velho de Sakura) e Yukito (melhor amigo do Touya). Em um episódio, Sakura declara seu amor por Yukito, mas ele responde que seu coração já tem dono e, para surpresa dele, ela declara saber ser o seu irmão o dono do coração do Yukito (PERET, 2009, p.6). Essa parte foi censurada e não foi transmitida. 1649

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO Sailor Moon (Bishojo Senshi Sera Mun), de Naoko Takeushi, foi outro desenho censurado. Na trama, Usagi Tsukino descobre ser a reencarnação da Princesa Serenity, do reino lunar chamado de Milênio de Prata, e forma um grupo com outras meninas, todas reencarnações das guerreiras protetoras daquele reino (PERET, 2009, p.6). No Brasil, o anime foi transmitido pela TV Manchete e pelo canal a cabo Cartoon Network. A série apresenta várias relações homoafetivas: no segundo arco da primeira temporada (Fase R), os vilões são Kunzite e Zoicite, dois alienígenas do sexo masculino que mantêm um relacionamento. Na terceira temporada, surgem duas guerreiras mais experientes e poderosas (Haruka Tenoh - Sailor Urano e Michiru Kaioh - Sailor Netuno), que moram juntas e mantêm um relacionamento bem-definido. Haruka se veste de homem (inclusive no uniforme escolar), tem cabelos curtos, dirige carros velozes, é boa de briga e realiza várias atividades esportivas, enquanto Michiru é artista, amante da pintura e da música. No Chile, a primeira vez em que o anime foi transmitido, na década de 90, não houve censura. No entanto, na retransmissão, em 2012, três episódios não foram transmitidos porque retratavam a relação entre Haruka e Michiru. No Peru, o jornal O camino (2012, p.1) publicou a declaração da Organização Não Governamental (ONG) Movimento de Integração e Libertação Homossexual (MOVILH), que solicitou esclarecimento à emissora chilena em relação à censura: Las expresiones de afecto o cariño entre personas del mismo sexo, al igual que las heterosexuales, no son sinónimo de pornografía o de sexo explícito, del cual se protege a menores en nuestra televisión. Es tiempo ya de comprender ello. Já na Fase Super S, um dos vilões e integrantes do Trio Amazonas é o personagem Olho de Peixe (Fish Eye), um rapaz com características andróginas, que persegue rapazes e gosta de se travestir de menina. Na fase Stars, os três cantores do grupo musical Threelights são, na 1650

verdade, as sailor starlights, cuja transformação em sailors guerreiras inclui a mudança de gênero. Na América Latina, Zoicite e Olho de Peixe foram transformados em mulheres (a versão brasileira respeitou a identidade do Olho de Peixe) (CONDE, 2012, p.1). Já em relação aos Threelights, na fase Stars, na América Latina e Espanha, não houve alterações, diferente de outros países, como Estados Unidos e Austrália, que nem apresentaram essa fase (HOLMES, 2013, p.1). Outro desenho que foi censurado no Brasil, México, Argentina, Chile e Peru foi o episódio Beauty and the Beach (A Bela e a Praia) do anime Pokémon. O motivo da censura foi de que o episódio influenciaria a homossexualidade. Nele, James se produz de mulher para poder participar de um concurso de biquínis que está acontecendo na praia. Ele veste uma espécie de corpo inflável, que lhe dá seios bastante volumosos. (GRISCI, 2011, p.1). Nos países citados anteriormente, o episódio em questão não foi transmitido. Figura 6 Episódio de Pokémon censurado Os Cavaleiros do Zodíaco é um dos animes e mangás mais conhecidos no Ocidente. Na trama, os cavaleiros de bronze, tendo à frente o jovem Seiya de Pégaso, enfrentam diferentes desafios para salvar Saori, a reencarnação da deusa Atena, protetora da Terra e da humanidade. Muitos consideram esse anime como homoafetivo, devido às emoções de Shun, sua atitude pacifista e o formato feminino de sua armadura 1651

DISCURSO, DISCURSOS E CONTRA-DISCURSOS LATINO-AMERICANOS SOBRE A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO (que chega a ter seios), sendo que muitos o consideram gay. Em outras obras paralelas, ele aparece como uke para Hyoga, cavaleiro de Cisne cuja vida foi salva por Shun em uma cena famosa. Nessa cena, Shun abraça o cavaleiro de Andrômeda, transferindo para ele seu calor corporal a fim de impedir que ele morresse de frio (PERET, 2009, p. 7). Após a descrição de todas essas categorias, observamos que os japoneses tendem a classificar cada tipo de relacionamento com um nome e uma descrição característica. Isso torna o tema em foco (diversidade sexual) mais concreto e próximo da realidade. O japonês, independentemente do sexo, gênero ou identidade sexual, pode encontrar um grupo ao qual pertence, sentindo-se acolhido e podendo encontrar outras pessoas como ele. Isso é diferente nos países da América Latina, onde percebemos que o tema não é abordado e ainda é censurado. Muitos desenhos foram censurados sob a alegação de que estimulariam a homossexualidade. No entanto, um casal heterossexual pode ser apresentado na mídia sem o risco de constituir uma influência negativa. Essa diferença entre os dois tipos de casais só mostra que a homossexualidade ainda é marginalizada nos países da América Latina. Independentemente do gênero do mangá ou anime, o que podemos observar é que os relacionamentos se dão entre as pessoas, mostrando que o amor pode nascer de qualquer situação. Assim, apesar do tradicionalismo e machismo característicos do Japão, é possível observar que a diversidade sexual é abordada de forma mais direta e sem tanto pudor quanto no Ocidente. As pessoas, desde a sua infância, deparam-se com situações que passam a fazer parte do seu dia a dia e, dessa forma, permitem que a diversidade sexual possa ser amplificada, respeitada e exercida. O número de mangás comercializados e a quantidade de exemplares vendidos só ressaltam a receptividade desses pelo leitor latino-americano. Em relação aos animes, contudo, a receptividade pelos canais de televisão, pela imprensa e pelos pais é acompanhada da censura, com edição ou deleção de cenas e episódios referentes à diversidade sexual. Esse fato é o reflexo de como a nossa sociedade retrata e posiciona-se diante desse assunto. 1652

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