Transposição Didática Interna: Suas Características E Novos Desafios Marcus Bessa de Menezes Faculdade Maurício de Nassau marcusbessa@ig.com.br RESUMO Esse artigo propõe um novo olhar sobre o processo de Transposição Didática proposto por Yves Chevallard. Identificando, através de nossa dissertação de mestrado, a transformação do saber realizada pelo professor no interior da sala de aula, a Transposição Didática Interna, a qual irá nos remeter a Vigilância Epistemológica do saber. Além de enfocar alguns pontos que não nos parece bem definidos: Como o papel do aluno nesse processo de transposição outro elemento humano nas relações com o saber no interior do cenário didático que faz surgir uma, possível, nova fase da transposição didática a Transposição Didática Discente e as possíveis relações com outros fenômenos didáticos como o Contrato Didático, gerando os efeitos de transposição. Palavras chaves: Transposição didática, contrato didático e sala de aula. Introdução Temos, hoje, diversas pesquisas que nos apontam evidências de uma certa diferenciação entre o que é previsto para ser ensinado e o que realmente é ensinado em sala de aula (essa diferença pode ser identificada através do gerenciamento do tempo do saber em jogo no cenário didático, expectativas do professor em relação ao saber, criações didáticas), isso sem levar em consideração à distância entre o que é ensinado em sala de aula e o que é efetivamente aprendido pelos alunos. Em um trabalho realizado por E. Josse (1992), intitulado Análise do discurso de professores, foi feito um estudo comparativo do discurso de dois professores de matemática, perante uma mesma lição, identificando que havia diferenças entre o saber que estava previsto por ambos, em seus planos de aula, assim como entre o saber desenvolvido do tema de cada um para chegarem ao mesmo objetivo, que seria o aprendizado do aluno. Versando sobre o mesmo tema, Perrenoud (1993) avança que uma das formas
2 de manifestação do trabalho docente está em traduzir o conhecimento acadêmico em conteúdos didaticamente assimiláveis pelos alunos, ou seja, uma transformação do saber, para que seja mais acessível, sem os erros, as falsas pistas, por meio da apresentação de uma solução bem polida, que pareça a posteriori achada sem esforço no primeiro lance (ARSAC, 1989. p. 7). Ravel (2003) em sua tese de doutorado avança na questão dessas transformações, identificando modificações ocorridas no saber e suas diferenças ao serem verbalizados pelo professor. Nesse trabalho a pesquisadora identifica mudanças entre os saberes ensinados por dois professores que ministram uma mesma lição em sala de aula. Esse trabalho de transformação dos saberes é o que Yves Chevallard chama de Transposição Didática, que seriam as modificações que se faz nos saberes científicos até os saberes que chegam em sala de aula, os saberes ensinados. Em alguns países essas modificações começam aparecer nos conteúdos dos programas e nos manuais de ensino. No Brasil, não existem esses programas; já os manuais seriam os Livros Didáticos. Recentemente foram criados os Parâmetros Curriculares Nacionais e as comissões de avaliação do livro didático, no Brasil, ligadas ao MEC, como o PNLD 1, que encaminham um certo direcionamento, porém, não estabelecem, de fato, o que deve ser ensinado. Por muitos anos, essa atividade ficou sob a quase exclusiva responsabilidade dos autores de manuais (livro didático). Eram eles que, em última instância, determinavam o que deveria ou não ser ensinado, realizando, assim, a primeira, e importante, etapa da Transposição Didática, que se caracteriza pela passagem dos saberes científicos aos saberes a serem ensinados, ou seja, os manuais escolares. David Bordet sugere a existência de duas fases nesse processo de transposição didática.... Transposição Didática externa (passagem do saber científico ao saber a ensinar), e os debates abertos aqui sobre a Transposição Didática interna (passagem do saber a ensinar tal qual apresentados dentro dos programas e manuais aos saberes ensinados em classe) (1997, p. 47). 1 PNLD Plano Nacional do Livro Didático
3 Para Chevallard (1991) o professor cria um metatexto, no momento de realizar o processo de transposição. Com isso, Câmara dos Santos (1997) avança ao afirmar que a segunda fase da transposição didática, a interna, seria caracterizada pela criação de um novo texto didático, impregnado pela subjetividade de cada professor. Começamos a entender a Transposição Didática Interna devido à identificação do professor como um ser, sujeito não só às condições institucionais, mas, também, à sua própria subjetividade. Porém, ele não é o único elemento humano e sujeito às suas subjetividades dentro do sistema didático; temos, também, o aluno. O sistema didático é caracterizado pela relação ternária que envolve dois pólos humanos o professor e o aluno e um não humano: o saber. (Schubauer-Leoni, 1988), a Transposição Didática Interna ocorre nesse contexto. Entendemos que desde há muito tempo vem-se falando e teorizando acerca do aluno como um sujeito ativo no processo de ensino-aprendizagem. Podemos enumerar algumas teses construtivistas de Piaget (1971, 1973) e Vygotsky (1984, 1985) que caminham na direção do que propomos acima. Em relação ao construtivismo Piagetiano podemos citar, aqui, algumas das que consideramos mais relevantes para a nossa discussão: (a) O conhecimento é fruto de um processo ativo e interativo de elaboração e reelaboração, feito pelo sujeito que conhece. (b) Nesse processo, ele o sujeito epistêmico - constrói representações mentais sobre o mundo, quer seja o mundo real, concreto, ou sobre objetos abstratos. (c) Construindo representações sobre o mundo, o indivíduo constrói sua própria estrutura cognitiva, sua inteligência. (d) A inteligência não é, pois, um potencial finito, herdado por ocasião do nascimento, mas, sim, uma estrutura que se constrói e constitui a partir de uma base biológica que interage com o meio físico e/ou lógico-formal. No tocante à Teoria Sociointeracionista de Vygotsky, podemos tomar como teses centrais de Vygotsky, auxiliares à nossa discussão, em relação à teoria histórico-cultural as seguintes:
4 (a) A relação entre o indivíduo e o mundo não é uma relação direta, ela é mediada por sistemas simbólicos. Isto posto, tal relação não é dual, mas triangular : indivíduo-mundo-mediador (quer seja esse mediador o outro pessoa ou os objetos e signos, como postula o materialismo histórico-dialético, base filosófica da teoria). (b) A mediação assume, então, um papel central na apropriação dos conhecimentos pelo indivíduo. (c) O conhecimento, por sua vez, não é entendido como uma construção solitária. Ele é historicamente construído e culturalmente organizado. (d) A sala de aula é entendida como um palco de negociação de significados, onde os conhecimentos historicamente construídos são organizados de forma a serem objeto de negociação entre professor e alunos. Estes últimos se apropriam dos saberes científicos e culturais, através das múltiplas interações vividas naquele contexto. Características da Transposição Didática Interna No mesmo caminho, em nossa Dissertação de Mestrado 2, buscamos identificar elementos que poderiam caracterizar um processo de transposição didática que surgiria dentro da sala de aula, ou seja, criação de um novo texto didático. Alguns questionamentos rondaram nosso trabalho, e de certa forma, nos orientaram para encontrarmos elementos que caracterizariam essa fase na Transposição Didática, a transposição didática interna. As questões seriam: quais os distanciamentos entre o saber inicialmente previsto, a ser ensinado (aquele apresentado no livro didático), e o saber efetivamente ensinado pelo professor (manifestado pelo seu discurso)? Como as concepções de ensinoaprendizagem que são reveladas pelo professor influenciariam nas diferenças entre os saberes efetivamente ensinados? Até que ponto as escolhas efetuadas pelos autores de livros didáticos, para o trabalho com quadriláteros, influenciaram nesse processo de transformação do saber por parte do professor? De que forma o contrato didático estabelecido em sala de aula e a 2 BESSA DE MENEZES, Marcus. Investigando o processo de transposição didática interna: o caso dos quadriláteros. 2004. 184 f. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPE-PE, Recife.
5 gestão do tempo, em seus diferentes aspectos, contribuíram para a existência de diferenças entre os saberes (a ensinar e ensinados). Para responder esses questionamentos e identificarmos os possíveis elementos dessa fase da transposição didática, buscamos, dentro de uma mesma escola, professores que estariam ministrando o conteúdo de quadriláteros para duas turmas de 7ª série, os quais são licenciados em Matemática. Essas escolhas foram feitas com o intuito de buscar uma mesma proposta pedagógica por parte da escola e o mesmo referencial do saber a ser ensinado, além da mesma formação acadêmica por parte dos professores e, com isso, tentarmos minimizar os efeitos de algumas variáveis que poderiam surgir em nosso processo de análise. Basicamente em todas as análises, identificamos diferenças entre o que estava proposto no Livro Didático (saber previsto a ser ensinado) e o que os professores verbalizavam em sala de aula (saber efetivamente ensinado). Nessas diferenças, a primeira que pudemos identificar na análise global das aulas dos professores foi a tentativa de uma reorganização e diferentes gestões do tempo do saber no cenário didático, gerando, assim, uma nova forma na apresentação desse saber por parte dos professores. Como podemos observar no discurso dos professores durante a entrevista: Professor 1: (...) tá certo que você saiba as propriedades, mas isso você só vai usar em Matemática. Algumas propriedades de diagonais, de lados, e não vai usar em outra matéria, em outro trabalho que ele for fazer. Assim, se ele for da área de saúde, área de ciências humanas, então, é importante ele saber as figuras, mas as propriedades é um fato muito específico. Já o professor 2: Muitas vezes, o Livro Didático que a gente está trabalhando, ele não tem demonstrações, assim, muito claras para um aluno, pra cabecinha do aluno de 7 a série, como eu tento buscar demonstrações que passe pra eles de uma forma, uma linguagem mais clara possível, uma coisa bem simples pra eles. Outra diferença estava nas expectativas demonstradas pelos professores ao
6 saber, incidindo uma maior ou menor relevância, ao objeto de ensino, no seu discurso em sala de aula, realizando assim, diferentes discursos para esses saberes em função dessas expectativas, as quais se apresentaram distintas para cada professor. Professor 1: Finalmente, a última, que é a mais complicada de se entender; isso, por causa do português. É difícil de se interpretar isso daqui. Vamos lá! As diagonais se cortam em um ponto médio. Professor 2: Olha, aqui, pessoal! Gente, olhando aqui! Nessa letra a, vamos ver os valores desconhecidos, com os lados opostos congruentes. Simples, não? Né, gente? É interessante observar que essas expectativas são distintas para cada professor, e nem sempre se corresponde às expectativas dos alunos os alunos não acham tão difícil ou tão fácil, essas expectativas são próprias dos professores. Observamos também como diferença, o próprio discurso relativo aos conteúdos, nos quais os professores, em alguns momentos, percorreram caminhos distintos (influenciados possivelmente pelas suas concepções de aprendizagem e pela sua relação ao saber), inserindo atividades de dobradura de papel, retirando e partindo para demonstrações diferentes das propostas pelo Livro Didático. Nesse estudo, foi possível verificar a existência da Transposição Didática Interna. Professor 1: (...) É o ponto médio da diagonal. Vejam só! Isso não quer dizer que essa diagonal daqui seja igual a essa não, pessoal. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Ele está dizendo que esse ponto médio aqui é ponto médio de BD e ponto médio de AC, ou seja, supondo que aqui seja 4 cm, dá prá dizer quanto é esse pedaço?. O Professor 1, para mostrar a propriedade, utiliza exemplos com números, sem recorrer ao uso de uma demonstração. Uma maneira diferente de como o Livro Didático utilizado trata esse conteúdo, já que demonstra, através de quatro proposições detalhadas.
7 Professor 2: Pessoal, olha! Eu queria mostrar uma coisinha para vocês. Se vocês quiserem, e se vocês pegarem qualquer paralelogramo, uma folha de papel, que é um retângulo, que é um paralelogramo, e fizerem diagonais, assim, com dobradura só nas diagonais, olha só! Vocês dobram uma diagonal, dobra a outra diagonal. O que é que vai acontecer com essas duas diagonais? Se você fizer até aqui, você vai ver que vai dar o meio, ok? Isso é uma experiência que pode ser feita por vocês, também. E, muita coisa a gente vai ver na próxima aula. E a gente pode provar muitas dessas propriedades. Ok, pessoal? Novos caminhos da Transposição Didática Interna Com isso, em nosso trabalho percebemos a necessidade de se investigar a existência de mais uma parte no processo de Transposição Didática, ou seja, mais uma modificação do saber. Essa nova possível transposição seria realizada pelo aluno, transformando o saber ensinado pelo professor em um novo saber, o saber aprendido. Esse processo surgiria na reelaboração do saber em jogo no cenário didático, através das relações entre o aluno e o mundo, acreditando que esse novo saber não possua a mesma cara, o mesmo valor, a mesma utilidade sempre. O saber é efêmero e as necessidades do ser humano são infinitas, com isso, os saberes serão construídos de uma forma particular para cada indivíduo. Justificando, de certa forma, assim as possíveis evoluções no saber com o passar do tempo, gerando uma dialética entre o velho e o novo saber. A essa possível nova fase da transposição didática iremos chamar de transposição didática discente. Ou seja, a transposição didática evidencia que existe uma diferença entre os saberes que são verbalizados pelos professores em sala de aula e os saberes que são propostos no texto escolar. A existência dessa diferença coloca em xeque a validade do que é ensinado pelo professor, fazendo com que o saber ensinado possa perder sua legitimidade. A necessidade da existência de uma vigilância epistemológica do saber em jogo no cenário didático, para que ele não se distancie muito do saber de
8 origem (científico) e perca a sua legitimidade como tal, faz com que o estudo de como se processa a Transposição Didática seja muito relevante. Pudemos verificar, durante as observações em sala de aula, algumas possíveis transposições que provocaram esses distanciamentos entre os saberes, como, por exemplo, quando o Professor 1 disse que os vértices opostos são ligados por diagonais. O distanciamento ocorre na medida em que os vértices opostos não são ligados por diagonais; os vértices opostos existem sem a necessidade da ligação por uma diagonal. Esses distanciamentos podem causar alguns obstáculos didáticos, como entender que as diagonais ligam vértices opostos, e, assim sendo, os polígonos com lados ímpares não teriam diagonais. A vigilância epistemológica do saber, por parte dos professores, em virtude da realização de uma transposição didática interna, talvez seja a principal contribuição que nossa pesquisa possa fornecer à didática da matemática. Outro ponto de aprofundamento da teoria da transposição didática, com a possível existência da transposição didática interna, seria na direção da identificação de obstáculos de aprendizagem devido a um excesso de transformações no objeto de ensino, com o intuito de facilitar o entendimento por parte do aluno. Ou seja, ao tentar facilitar a compreensão do conteúdo ministrado, o professor insere informações que poderão causar, mais na frente, conflitos com esses conhecimentos estabelecidos. Como podemos exemplificar, através do discurso de alguns professores de séries iniciais, que, ao ensinarem a multiplicar, dizem aos alunos que a multiplicação sempre aumenta, ensinando a operação da multiplicação através de adições sucessivas, esquecendo que essa regra não irá ser válida para os números racionais, o que ocasionará possíveis interferências na formação e no desenvolvimento de conceitos futuros, ocasionando o que poderíamos chamar de efeitos da transposição interna. Referências ARSAC, Gilbert ; DEVELAY, Michel & TIBERGHIEN, Andrée. (1989) La transposition didactique en mathematiques, en physique, en biologie. Lyon:
9 IREM. BESSA DE MENEZES, Marcus. (2004) Investigando o processo de transposição didática interna: o caso dos quadriláteros. 184 f. Dissertação (Mestrado em Educação) UFPE-PE, Recife. BORDET, David. (1997) Transposition didactique: une tentative d'éclaircissement. In: DEES, nº110. CNDP. CÂMARA DOS SANTOS, Marcelo. (1997) O professor e o tempo. In: Revista Tópicos Educacionais. v.15. nº 1/2. Recife: Universitária/UFPE. CHEVALLARD, Y. (1991) La transposition didactique. Grenoble, La pensée Sauvage. JOSSE, E. (1992) Analyse du discours des enseignanats. Paris: Presses Universite-Paris VII. PERRENOUD, Philippe. (1993) Práticas pedagógicas, profissão docente e formação: perspectivas sociológicas. Lisboa: Dom Quixote. PIAGET, J. (1971) A Epistemologia Genética. Petrópolis: Vozes. PIAGET, J. (1973) Biologia e Conhecimento. Petrópolis: Vozes. RAVEL, L. (2003) Des programmes a la classse: etude de la transposition didactique interne. Tese de Doutorado não-publicada. Université Joseph Fourier Grenoble I. SCHUBAUER-LEONI, M.L. (1988) Le contrat didactique dans une approche psychosociale des situations d ensigneiment. In: Interactions Didactiques, nº 8, 63-75. VYGOTSKY,L.S. (1984) A Formação Social da Mente. São Paulo: Martins Fontes. (1985) Pensamento e Linguagem. São Paulo: Martins Fontes.