Lei Maria da Penha e ação penal no caso de lesão corporal leve



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Transcrição:

Lei Maria da Penha e ação penal no caso de lesão corporal leve Rafael Cavalcanti Lemos Sumário 1. Introdução. 2. Abordagem legislativa da ação penal. 3. Ação penal pública condicionada à representação. 4. Lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher e direito de representação. 5. Considerações conclusivas: a violência doméstica ou familiar contra a mulher como um problema de direito humano feminino internacional. Rafael Cavalcanti Lemos é Juiz Substituto do Tribunal de Justiça de Pernambuco. Especialista em Direito Processual Civil pela UFPE. Mestrando em Direito pela Universidade de Londres. 1. Introdução O Código Penal, no caput do seu artigo 129, comina pena de detenção, de três meses a um ano, a quem ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem. A supramencionada ofensa é dita leve em contraposição àquelas previstas nos parágrafos 1 o e 2 o do indigitado artigo, chamadas, respectivamente, de grave e gravíssima: sob a mesma rubrica, o legislador tipificou dois modelos distintos de lesão corporal: a grave e a gravíssima. Enquanto no 1 o encontram-se os casos de lesão corporal grave, no 2 o estão os casos de lesão corporal gravíssima. A diferença entre ambas as denominações emerge cristalina a partir da análise da pena cominada: reclusão de 1 a 5 anos para a hipótese grave e reclusão de 2 a 8 anos para a gravíssima. Assim, a lesão corporal grave (ou mesmo a gravíssima) é Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 339

uma ofensa à integridade física ou à saúde da pessoa humana, considerada muito mais séria e importante do que a lesão simples ou leve (NUCCI, 2006a, p. 561). Se a lesão corporal leve for praticada em situação de violência doméstica ou familiar, a pena é de três meses a três anos de detenção, consoante o parágrafo 9 o do artigo 129 do Código Penal, acrescentado pela Lei 10.886/2004 e modificado pela Lei 11.340/2006 no que diz respeito ao quantum repressor. Dispôs, por seu turno, a Lei 9.099/1995, no artigo 88, batizada dos Juizados Especiais, que a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves depende de representação. A Lei Maria da Penha, contudo, já referida no presente texto sob o número 11.340/2006, vedou, por meio do artigo 41, a aplicação da Lei 9.099/1995 aos crimes de violência doméstica ou familiar, quando praticados contra mulher. Este artigo visa justo discutir os efeitos da Lei 11.340/2006 sobre a ação penal no caso de lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher. Para isso, servir-se-á da jurisprudência pátria e da doutrina jurídica nacional e estrangeira. 340 2. Abordagem legislativa da ação penal A ação penal é tratada no Título VII da Parte Geral do Código Penal e no Título III do Livro I do Código de Processo Penal. Zaffaroni e Pierangeli (2002, p. 769) entendem que Muito discutível é a legitimidade de disposições de preceitos relativos à ação penal no âmbito do Código Penal, posto que o tema pertence ao processo penal e não ao direito penal, e, não obstante isso, muitos códigos recentes mantêm tais disposições no seu contexto. É que o poder-dever de punir estatal só se realiza pelo exercício do jus persequendi, ou, por outras palavras, é através da ação penal que movimenta os órgãos jurisdicionais do Estado que a ameaça abstrata contida no preceito sancionador da norma penal incriminadora pode se concretizar. A despeito da crítica transcrita acima, certo é que existe íntima relação entre a ação penal e a extinção da punibilidade, razão certa pela qual o legislador entendeu por bem tratar do primeiro instituto (ação penal) outrossim no código dedicado ao direito material. 3. Ação penal pública condicionada à representação Toda ação penal é pública, salvo expressa ressalva legal (artigo 100, caput, do Código Penal), e a ação penal pública é promovida pelo Ministério Público, dependendo, quando a lei o exige, de representação do ofendido (artigos 129, inciso I, da Constituição da República e 100, 1 o, do Código Penal): A regra geral é a da competência do Ministério Público para, oferecendo denúncia, movimentar a ação criminal que apurará se é de aplicar-se pena ao infrator da lei penal. (...) Há mesmo sistemas legislativos, de que o francês se apresenta como o tipo clássico, nos quais impera o princípio de competir, somente, à justiça pública a promoção da ação para aplicação das penas; ao ofendido só se reconhece a ação civil, para reparação do dano. (...) Não seguiu o Código Penal vigente a orientação do de 1890, cujo art. 407, 2 o, enumerara as exceções ao princípio geral da ação penal por denúncia do Ministério Público, em todos os crimes e contravenções ; exceções essas modificadas, com ampliações, em geral, pela legislação esparsa posterior, como documenta o art. 407, 3 o, da Consolidação das Leis Penais, Revista de Informação Legislativa

organizada por Vicente Piragibe. Em relação a cada crime, cuja perseguição não pode ser feita, quando existente, em ação iniciada por denúncia, ou quando a denúncia fica subordinada a condições e formalidades, é que o estatuto de 1940 focaliza a proibição ou a exigência especial. (ESPÍNOLA FILHO, 2000, p. 372-375). A representação do ofendido, portanto, quando exigida, é uma condição ou limite (FERRI, 1998, p. 149) de procedibilidade da ação penal pública: representa apenas e tão-somente uma condição de procedibilidade, representando uma delatio criminis postulatória, pois, com ela, não só se faz a comunicação da prática de um crime e de sua autoria, mas também se reclama que se instaure a persecutio criminis. (ZAFFARONI; PIERAN- GELI, 2002, p. 770). Não uma condição para a punibilidade, como a conceitua Fragoso (1990, p. 148): Estão, no caso, reunidas as características gerais de um crime: ação, tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade. Em certos casos excepcionais, a existência do crime, além das características gerais que inidicamos, exige mais que ocorra condição objetiva de punibilidade. Entende-se por condição objetiva de punibilidade a condição exterior ao modelo legal de conduta punível (tipo), de que depende a ilicitude penal do fato (cf. n o 206, infra). É o caso, por exemplo, dos crimes falimentares, que dependem sempre da sentença declaratória de falência, que é condição objetiva de punibilidade. Como logo se percebe, nos casos em que a lei prevê condição objetiva de punibilidade, ela constitui pressuposto da pena, e, portanto, característica ou requisito do fato punível. O mesmo é defendido por Marques (2000, p. 385), para quem, em face de a decadência do direito de representação ter sido prevista como causa de extinção da punibilidade no artigo 107, inciso IV, do Código Penal, o direito de o Estado punir não pode logicamente extinguir-se sem que tenha existido. A ideia da punibilidade, obiter dictum, é essencial à conceituação do crime, pois este não existe sem que uma pena lhe seja cominada (GARCIA, 1977, p. 197). Para Bruno (1984, p. 196-197), porém, apenas a anistia, por ficção jurídica, e a inovação de lei descriminante fazem desaparecer de um fato o caráter de ação típica necessário para sua definição como crime, porquanto a pena não pode ser tomada por momento constitutivo do atuar criminoso, podendo-se ver nela somente a sua consequência de direito específica, um dado posterior à existência do crime e que exige, para manifestar-se, que este se tenha constituído por inteiro. De qualquer modo e fechado o parêntese acima, a vantagem da representação residiria em que, enquanto resguarda o interesse privado, permite que, uma vez satisfeita a condição de procedibilidade, por ser pública, apresente-se como mais idônea para se efetivar o processo de repressão ao crime. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2002, p. 771). Como leciona Espínola Filho (2000, p. 373), há, muita vez, a ponderar que, pela natureza da infração e pelos seus resultados, afetando, dum lado, interesses sociais, e, do outro, da forma mais imediata, os da vítima, a ação punitiva deve, como acentuou tão proficientemente Carrara (Programma del corso di diritto criminale, 11 a ed. vol 1 o, 548 e 549), atender mais ao amor da paz, ou ao decoro e conveniência do ofendido do que ao menor interesse social da repressão, que cumpre fazer ceder à perspectiva de uma publicidade considerada perigosa pelo mais direto interessado. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 341

4. Lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher e direito de representação Vozes respeitáveis, apesar do comando inserto no artigo 41 da Lei Maria da Penha, levantaram-se pela manutenção da representação como condição de procedibilidade para os crimes de lesão corporal leve ocorridos em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, como as Câmaras Criminais Primeira e Segunda do Tribunal de Justiça de Pernambuco: DIREITO PENAL. LESÃO COR- PORAL DE NATUREZA LEVE. AUDIÊNCIA ESPECIAL. RENÚN- CIA À REPRESENTAÇÃO. APLI- CABILIDADE DO ART. 16 DA LEI 11.340/2006. REJEIÇÃO DA DE- NÚNCIA. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. INCONSISTÊNCIA. RE- CURSO DESPROVIDO. 1. Para os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, o art. 41 da Lei 11.340 não veda apenas a aplicabilidade parcial da Lei 9.099/1995, mas sim a totalidade desta. 2. Também não é previsto na Lei 11.340 que a ação penal de lesão corporal de natureza leve cometida contra a mulher, no âmbito familiar, deva ser pública incondicionada. 3. Os fundamentos expendidos pelo magistrado singular têm amparo legal e estão revestidos de discernimento e sensatez. 4. Recurso não provido. Decisão unânime. (Recurso em Sentido Estrito n o 0159179-3, 1 a Câmara Criminal do TJPE, Rel. Roberto Ferreira Lins. j. 20.12.2007, unânime, DOE 11.01.2008). PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS CORPUS. VIOLÊNCIA DO- MÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER (ART. 129, 9 o DO CP). 342 PRISÃO EM FLAGRANTE. INDE- FERIMENTO DO PEDIDO DE AR- BITRAMENTO DA FIANÇA PELO JUÍZO. CONSTRANGIMENTO ILE- GAL CONFIGURADO. LIMINAR DEFERIDA. ORDEM CONCEDIDA PARA CONFIRMAR A DECISÃO LIMINAR. 1. In casu, o paciente encontra-se preso pela prática do delito tipificado no art. 129, 9 o, do CP, que, em face da alteração trazida pela Lei n o 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, passou a ter como pena a detenção, de 03 (três) meses a 03 (três) anos, o que permite a fixação da liberdade provisória com fiança, que inclusive já havia sido arbitrada pela autoridade policial. 2. Ante a renúncia expressa da vítima ao direito de representação, estando o feito no aguardo da designação da audiência estabelecida pelo art. 16 da Lei 11.340/2006 para ser extinto sem punição do paciente, ou, na pior das hipóteses, havendo a continuidade do processo, por se tratar de delito cuja pena máxima cominada é de 03 (três) anos de reclusão, afigura-se possível, em tese, o benefício da substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direito no momento da condenação, não sendo razoável, portanto, a restrição da liberdade do paciente, pois, como se sabe, na presente ordem jurídica a prisão cautelar é medida excepcional. 3. Ordem concedida para confirmar a decisão liminar. Decisão por unanimidade. (Habeas Corpus n o 0161878-2, 2 a Câmara Criminal do TJPE, Rel. Mauro Alencar de Barros. j. 20.12.2007, unânime, DOE 10.01.2008). Para quem assim pensa, a Lei Maria da Penha não teria visado acabar com o direito de representação da ofendida por lesão corporal leve porque Revista de Informação Legislativa

as chances de um acertamento do conflito entre as partes são muito maiores se a vítima tiver a faculdade de fazer uso, como instrumento de negociação, do direito de livrar o agressor do processo criminal. [...] Esse empoderamento da vítima restabelece o equilíbrio da relação. Assim, a mulher dispõe da possibilidade de dar prosseguimento ou não à ação penal, além de poder levar o agressor a concordar com a separação nos termos por ela propostos, rompendo-se o ciclo de violência. [...] Não há como pretender que prossiga a ação penal depois de o juiz ter obtido a reconciliação do casal ou ter homologado a separação com definição de alimentos, partilha de bens e guarda de filhos e visitas. A possibilidade de trancamento do inquérito policial em muito facilitará a composição dos conflitos envolvendo as questões de Direito das Famílias, que são bem mais relevantes do que a imposição de uma pena criminal ao agressor. A possibilidade de dispor da representação revela formas através das quais as mulheres podem exercer poder na relação com os companheiros. (DIAS, 2007, p. 120, 123-124). Segundo Dias (2007, p. 124-125), ainda duas outras questões relevantes devem ser levadas em conta para a interpretação de que a lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher é de ação penal pública condicionada à representação: (A) o estímulo que a ausência dessa condição de procedibilidade traria ao silêncio da ofendida, a qual deixaria de comunicar à autoridade a agressão para que o ofensor não viesse a ser inexoravelmente processado, e (B) a previsão expressa de representação constante do artigo 30 do projeto de lei (numerado 4.559/2004) que deu origem à Lei Maria da Penha, artigo que findou por ser, de roldão, suprimido no Senado tão-só por haver feito parte do rejeitado conjunto de normas minudentemente disciplinadoras do procedimento policial e do processo judicial pertinentes à violência doméstica ou familiar contra a mulher. A Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, entretanto, em 12 de agosto de 2008, por ocasião do julgamento do Habeas Corpus 96.992/DF, decidiu, rebatendo os argumentos acima, que o crime de lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher é de ação penal pública incondicionada. O Ministro Paulo Gallotti destacou, em seu Voto-vista, que: seja pela exacerbação da pena prevista para o crime de lesão corporal qualificada, seja pela expressa menção à inaplicabilidade da Lei n o 9.099/1995, sem qualquer restrição, penso que esse delito, praticado contra mulher no âmbito familiar, voltou a ser processado mediante ação penal pública incondicionada. É de ação penal pública condicionada à representação, dentre as lesões corporais, apenas a lesão corporal leve simples, vale dizer, sem a qualificadora do 9 o. (...) E sob um enfoque sociológico, é inegável reconhecer que grande parte das mulheres vítimas de violência doméstica, especialmente aquelas de classes econômicas menos favorecidas, quando levam seus casos ao conhecimento das chamadas autoridades, acabam por ser coagidas a se retratar, sofrendo intimidação de todos os tipos por parte dos infratores, inclusive físicas, morais, psicológicas, financeiras etc. (...) O argumento de que não se deve retirar da mulher o poder de decisão sobre a situação de violência em sua família, com todo o respeito aos que pensam de modo diverso, termina por não solucionar o grave problema, mantendo a possibilidade de serem vítimas de inaceitável coação na busca de impu- Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 343

nidade, circunstância que acaba por estimular a reiteração criminosa. (...) o agressor deve estar consciente de que responderá a um processo criminal e será punido se reconhecida sua culpabilidade. Embora haja expressa vedação legal à aplicação dos institutos despenalizadores previstos na Lei n o 9.099/1995, a condenação não implicará necessariamente em privação da liberdade, dada a possibilidade de ser o agente beneficiado com a substituição da reprimenda corporal por medidas restritivas de direitos, com exceção das que possuam exclusivo conteúdo econômico, ou com a suspensão condicional da pena, a teor dos artigos 44 e 77 do Código Penal. Também em Voto-vista, já havia dito o Ministro Hamilton Carvalhido: A questão é a da natureza da ação penal nos crimes de lesões corporais leves ou culposas, praticadas contra a mulher no âmbito das relações domésticas. (...) Relativamente ao crime de lesão corporal, especialmente dela tratam os artigos 7 o, inciso I, como forma de violência doméstica e familiar contra a mulher, e 44, para aumentar a pena do artigo 129, parágrafo 9 o, do Código Penal, de 1 (um) para 3 (três) anos de detenção, ambos da Lei n o 11.340/06 (...) A vigência da lei de criminalização derivada, que criou a forma qualificada do crime de lesão corporal leve, inserta no parágrafo 9 o do artigo 129 do Código Penal, número 10.886/04, tanto quanto a Lei n o 11.340/06, são de vigência posterior à lei que dispôs sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e deu outras providências, entre as quais fazer da ação penal pública condicionada os crimes de lesão corporal leve e lesão culposa. Não há, assim, falar em representação como condição da ação penal relativa ao crime de 344 lesão corporal leve qualificada, por estranha forma qualificada do delito ao suporte fático do artigo 88 da Lei n o 9.099/95 (...) É caso, pois, de ação penal pública incondicionada o do artigo 129, parágrafo 9 o, do Código Penal, forma de violência doméstica e familiar contra a mulher. Outra não é a posição de Nucci (2006b, p. 884), para quem se pode mesmo compreender o artigo 41 da Lei Maria da Penha como uma amplificação do artigo 17 desse diploma legal: Embora severa, a disposição do art. 41 em comento, é constitucional. Em primeiro plano, porque o art. 98, I, da Constituição Federal, delegou à lei a conceituação de infração de menor potencial ofensivo e as hipóteses em que se admite a transação. Em segundo lugar, pelo fato de se valer do princípio da isonomia e não da igualdade literal, ou seja, deve-se tratar desigualmente os desiguais. Em terceiro prisma, esse é o resultado, em nosso ponto de vista, da má utilização pelo Judiciário, ao longo do tempo, de benefício criado pelo legislador. Em outros termos, tantas foram as transações feitas, fixando, como obrigação para os maridos ou companheiros agressores de mulheres no lar, a doação de cestas básicas (pena inexistente na legislação brasileira), que a edição da Lei 11.340/2006 tentou, por todas as formas, coibir tal abuso de brandura, vedando a pena de cesta básica, além de outros benefícios (art. 17 desta Lei), bem como impondo a inaplicabilidade da Lei 9.099/95. De fato, a Lei 11.340/2006 não enxerga a violência doméstica ou familiar contra a mulher como infração de menor potencial ofensivo, de maneira que, numa resposta forte porém constitucionalmente isonômica, o legislador achou oportuno e adequado afastar integralmente a aplicação, a situa- Revista de Informação Legislativa

ções daquela natureza, de uma lei voltada para delitos normativamente considerados menores, a 9.099/1995. 5. Considerações conclusivas: a violência doméstica ou familiar contra a mulher como um problema de direito humano feminino internacional A violência doméstica ou familiar contra a mulher é um problema de direito humano feminino internacional. Direito humano feminino porque a vítima de violência doméstica ou familiar mulher passa por constrangimentos sem equivalência com os sofridos por vítimas doutro gênero, uma vez que recebe a carga de uma violência sistêmica e estrutural consistente num mecanismo de controle patriarcal das mulheres nascido da ideia da superioridade masculina sobre a inferioridade feminina, do desempenho de papéis e do cumprimento de expectativas estereotipados, bem como da predominância econômica, social e política do homem em contraste com a dependência da mulher (COOK, 1994, p. 20). As regras de processo, em situações assim, são tão significativas quanto aquelas de direito substantivo penal (CHAR- LESWORTH; CHINKIN, 2000, p. 324). É por sua própria Constituição (artigos 5 o, I e 2 o, e 226, 8 o ) que o Estado brasileiro está obrigado a criar instrumentos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares, promovendo a igualdade de direitos e obrigações entre homens e mulheres, mormente quando aqueles (instrumentos) têm fulcro nos tratados internacionais em que é parte e, sempre que não a contrariem mas a confirmem, a despeito de que (os tratados) não sejam considerados emenda à Constituição (artigo 5 o, 3 o ). Uma aplicação androcêntrica do artigo 41 da Lei Maria da Penha, tomando por condicionada à representação a ação penal pública no caso de lesão corporal leve em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, termina por frustrar o cumprimento de tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, nomeadamente (na ementa e no artigo 1 o da Lei 11.340/2006) a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (de sigla inglesa CEDAW) e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (também chamada de Convenção de Belém do Pará). Referências BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral. 4 ed. t. 3. Rio de Janeiro: Forense, 1984. CHARLESWORTH, Hilary; CHINKIN, Christine. The boundaries of international law: a feminist analysis. Manchester University Press, 2000. COOK, Rebecca J. Women s international human rights law: the way forward. In: COOK, Rebecca J. (Org.). Human rights of women. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1994. DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. São Paulo: RT, 2007. ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de processo penal brasileiro anotado. Atualizado por José Geraldo da Silva e Wilson Lavorenti. v. 1. Campinas: Bookseller, 2000. FERRI, Enrico. Princípios de direito criminal: o criminoso e o crime. Tradução de Paolo Capitanio. 2 ed. Campinas: Bookseller, 1998. FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal: parte geral. 1 ed. Revisão de Fernando Fragoso. Rio de Janeiro: Forense, 1990. GARCIA, Basileu. Instituições de direito penal. 4 ed. 39a. tiragem. v. I, t. 1. São Paulo: Max Limonad, 1977. MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2 ed. v. I. Campinas: Millennium, 2000. NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 6 ed. Atualizada e ampliada. São Paulo: RT, 2006a.. Leis penais e processuais penais comentadas. 1 ed. 2a. tiragem. São Paulo: RT, 2006b. ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. 4 ed. revisada. São Paulo: RT, 2002. Brasília a. 46 n. 181 jan./mar. 2009 345