O QUE É DIREITO ALTERNATIVO 1. O que não é Direito Alternativo. Os detratores do Direito Alternativo, na falta de um argumento inicial forte para combatê-lo, criaram uma falsa imagem sobre ele, estereotipando-o como um movimento de jurista contra a lei, pregadores do voluntarismo jurídico. O magistrado, sem limites, está livre para julgar segundo critérios próprios. Muitos textos já foram escritos sobre Direito Alternativo. Entre eles, vários cuidaram de desfazer esta falsa idéia. Entretanto, após mais de vinte anos de vida, o movimento do Direito Alternativo ainda enfrenta a mesma crítica. O pior é que dela surtiram efeitos, pois grande parte dos juristas brasileiros, neófitos no assunto, dão-lhe crédito. Alunos, professores, advogados, promotores de justiça e magistrados estão convictos do caráter anômico do alternativismo. Chegam a afirmar, por escrito, tal atitude, caindo em prática acadêmica de duvidosa ética, pois jamais mencionaram as fontes, para embasar tais acusações. Há um grave erro epistemológico nestas críticas ao Direito Alternativo, pois seus fundamentos não encontram comprovação empírica ao se analisar o discurso justificador da alternatividade. Para escrever minha tese de doutorado na Universidade de Barcelona, Espanha, li praticamente tudo o que foi escrito sobre Direito Alternativo, ressalvados alguns textos em jornais de ínfima circulação 1, e posso afirmar, categoricamente, que nenhum autor alternativo coloca como base teórica ou prática, até mesmo como um dos requisitos do Direito Alternativo, a anomia, o voluntarismo jurídico e o combate à lei em si. Sequer o método positivo é alvo central da crítica dos operadores jurídicos alternativos. Esta circunscreve-se a enfrentar a teoria e a ideologia juspositiva. Isso será visto ao final. 1 Ver meu livro Manual de Direito Alternativo Brasileiro, 2ª Ed. Editora Conceito, 2011.
2. Um pouco de história. O Direito Alternativo ou Movimento do Direito Alternativo é um movimento de juristas, ou seja, um grupo de pessoas com certos objetivos comuns que se organizaram, no Brasil, para produzir uma nova forma de ver, praticar e ler o Direito, a partir do ano de 1990. De início eram apenas juizes de Direito, hoje abrange também advogados, promotores de justiça, professores, estudantes, procuradores, enfim, todo profissional vinculado à Ciência Jurídica. O germe do Direito Alternativo pode ser identificado em alguns juízes de Direito que judicavam descontentes no tempo da ditadura militar brasileira e que se encontram nas reuniões efetuadas pela Associação dos Magistrados Brasileiros com o propósito de elaborar propostas ao Congresso Constituinte, que culminou com a Constituição Federal de 1988. O primeiro passo para o início do Direito Alternativo foi a criação de um grupo de estudos, organizado por alguns magistrados gaúchos, comuns e trabalhistas, liderados pelo hoje Desembargador Amilton Bueno de Carvalho. Nesse mesmo tempo, alguns juristas não magistrados, como Edmundo Lima de Arruda Júnior, Antônio Carlos Wolkmer, Miguel Pressburger, Miguel Baldez, Clèmerson Merlin Clève, entre outros, influenciados pelo movimento italiano uso alternativo do Direito, já falavam da possibilidade de criação de um Direito Alternativo, isso por volta do ano de 1987. O episódio histórico responsável pelo surgimento do movimento Direito Alternativo ocorreu no dia 25 de outubro de 1990, quando um importante jornal denominado Jornal da Tarde, de São Paulo, veiculou um artigo redigido pelo jornalista Luiz Maklouf, com a manchete JUÍZES GAÚCHOS COLOCAM DIREITO ACIMA DA LEI. A reportagem buscava desmoralizar o grupo de estudos acima mencionado. Ao contrário do desejado, acabou dando início ao movimento no mês de outubro de 1990,
sendo o I Encontro Internacional de Direito Alternativo, realizado na cidade de Florianópolis, Estado de Santa Catarina, nos dias 04 a 07 de setembro de 1991 e o livro Lições de Direito Alternativo 1, editora Acadêmica, os dois marcos históricos iniciais. Isso ocorreu em resposta à reportagem encomendada. 3. Sua proposta. O movimento não possui uma ideologia, mas pontos teóricos comuns entre seus membros, destacando-se: 1) não aceitação do sistema capitalista como modelo econômico; 2) combate ao liberalismo burguês como sistema sociopolítico; 3) combate irrestrito à miséria da grande parte da população brasileira e luta por democracia, entendida como a concretização das liberdades individuais e materialização de igualdade de oportunidades e condição mínima e digna de vida a todos; 4) uma certa simpatia de seus membros em relação à teoria crítica do Direito. Há uma unanimidade de crítica ao positivismo jurídico (paradigma liberal-legal), entendido como uma postura jurídica técnica-formal-legalista, de aparente apego irrestrito à lei e de aplicação de uma pseudo interpretação lógica dedutiva, somada a um discurso apregoador: a) da neutralidade ou avaloratividade; b) do formalismo jurídico ou anti-ideológica do Direito; c) da coerência e completude do ordenamento jurídico; d) da fonte única do Direito e da interpretação mecanicista das normas efetuada através de um método hermenêutico formal/lógico/técnico/dedutivo. Os juristas alternativos, em desacordo com a teoria e a ideologia juspositiva, denunciam: a) ser o Direito, político, parcial e valorativo, pois é a regulamentação normativa de determinada estrutura de poder; b) representar, o formalismo jurídico, uma forma de escamotear o conteúdo perverso de parte da legislação e de sua aplicação no seio da sociedade; c) não ser o Direito coerente e completo. Suas antinomias (contradições) e lacunas (vazios) são várias e explícitas; d)
ser a lei fonte privilegiada do Direito, mas a ideologia do intérprete dá o seu sentido, ou o sentido por ele buscado. A exegese de um texto legal não é declarativa de seu conteúdo, mas, bem ao contrário, e axiológica e representa os interesses e fins perseguidos pelo exegeta. Para sua práxis, o movimento defende: 1) Positivismo de Combate hoje chamado de positivação combativa. Trata-se de uma luta pelo cumprimento de várias leis, todas com conteúdos sociais, em pleno vigor, mas não cumpridas de fato. O Poder Judiciário, em boa parte, exerce a função de recuperação ideológica em prol das camadas privilegiadas, ou seja, por intermédio de uma interpretação restrita, no mundo real, neutraliza legislações de cunho social, impedindo a concretização de seus efeitos. Por ilustração, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, nos últimos anos, simplesmente está tornando, na prática, ineficaz o Código do Consumidor, produzindo irrecuperável prejuízo à sociedade e fortes benefícios a poderosas instituições, em particular as financeiras. Os membros do Direito Alternativo fazem exatamente o contrário, ou seja, labutam para materializar todos os direitos previstos na legislação, mas sonegados na vida cotidiana, como a maioria dos previstos no artigo 5º e seguintes da Carta Magna; 2) Uso alternativo do Direito. É uma atividade hermenêutica. Realiza-se uma exegese extensiva de todos os textos legais com cunho popular e uma interpretação restritiva das leis que privilegiam as classes mais favorecidas, isso sempre dando força máxima aos princípios estabelecidos na Constituição Federal. Trata-se de uma interpretação social ou teleológica das leis, ou seja, dar um sentido à norma buscando atender (ou favorecer) as classes sociais discriminadas por qualquer motivo (econômica, social, racial ou sexualmente) ou a maioria da sociedade civil. É o oposto do realizado pelos juristas tradicionais, quando restringem as normas populares e ampliam as beneficiadoras das
classes que lhes interessam; 3) Direito Alternativo em sentido estrito. É o ponto mais polêmico e extrapola os limites deste artigo. Mas é um ponto ligado à utopia de construção de uma sociedade mais justa, ou com relações de poder mais democráticas, reguladas por um Direito novo. Mas o advento da globalização econômica e todas as crises subseqüentes deixaram essa utopia um pouco no aguardo. De uma forma ou de outra, a vontade de construir algo melhor tem grande poder de unir pessoas em algum projeto político, no caso do Direito Alternativo, um projeto político jurídico. Passados vinte anos do início do Direito Alternativo, creio que o momento exige seu retorno à ordem do dia. Isso porque a luta democrática não é linear. No atual contexto histórico, muitos tribunais, em especial o STJ, praticam uma política de retrocesso, pelo menos na visão alternativa. O Direito Alternativo, um movimento que se tornou um forte capítulo da história do Direito brasileiro, é, sem a menor dúvida, o maior contraponto ideológico a esse tipo de política favorecedora das instituições financeiras e demais grandes grupos econômicos. Os operadores jurídicos alternativos já demonstraram ser fortes combatentes em defesa da sociedade civil e das pessoas menos poderosas. Quem pensou em vitória equivocou-se. Forças antidemocráticas crescem, tomam espaço no mundo jurídico e necessitam ser combatidas efusivamente. Portanto, a luta continua, companheiros.