RESENHA A HISTÓRIA DAS IDÉIAS NA PERSPECTIVA DE QUENTIN SKINNER

Documentos relacionados
A HISTÓRIA DAS IDEIAS, A HISTÓRIA INTELECTUAL E A HISTÓRIA DO DIREITO: APROXIMAÇÕES METODOLÓGICAS PARA O ESTUDO DOS TRANSPLANTES JURÍDICOS

1 Nesta perspectiva é fundamental

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ COORDENADORIA DE CONCURSOS CCV

FORMAÇÃO CONTINUADA EM LÍNGUA PORTUGUESA

INSTITUTO ÀGORA DE EDUCAÇÃO

Curso TURMA: 2101 e 2102 DATA: Teste: Prova: Trabalho: Formativo: Média:

TEXTO DISSERTATIVO-ARGUMENTATIVO. Professor Marlos Pires Gonçalves

TEMA DA SESSÃO. Patriarcado de Lisboa JUAN AMBROSIO / PAULO PAIVA 2º SEMESTRE ANO LETIVO INTRODUÇÃO 2. REVELAÇÃO E RELIGIÃO

13ª aula de Tópicos de Humanidade & Metodologia Científica 20 a 25/05/02. Diretrizes para a realização de um seminário

Revisão de Metodologia Científica

A epístola de Tiago. Tiago, o Justo, possivelmente um dos irmãos de Jesus (Mt 13:55; Mc 6:3), é o autor dessa epístola.

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

FILOSOFIA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS. 2 a Etapa SÓ ABRA QUANDO AUTORIZADO. FAÇA LETRA LEGÍVEL. Duração desta prova: TRÊS HORAS.

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Retórica e contingência na teoria política

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Universidade Federal Fluminense Instituto de História Profª. Renata Meirelles Disciplina: Historiografia

CIÊNCIA & CONHECIMENTO CIENTÍFICO

ESTRATÉGIAS DE LEITURA

CONSTRUINDO PERGUNTAS (E RESPOSTAS) DE UMA PESQUISA EM SAÚDE. João Luiz Bastos

A LINGUAGEM DAS TREVAS NA FILOSOFIA DE HOBBES VANDER SCHULZ NÖTHLING DE PAULA

Marque a opção do tipo de trabalho que está inscrevendo: ( X ) Resumo ( ) Relato de Caso

RESENHA. LOWE, E. J. A Survey of Metaphysics. Oxford: Oxford University Press, 2002, 416 pp.

Unidade 01. Prof.ª Fernanda Mendizabal Instituto de Educação Superior de Brasília

Tema, Problematização e Justificativa

DEUS: CONCEITO NÃO-DISTRIBUTIVO DE SEGUNDA ORDEM?

A AUTORIDADE DE PRIMEIRA PESSOA, NO TEMPO PRESENTE: A ESCUTA E A INTERPRETAÇÃO DA ESCUTA

Sociologia e esperança

Projeto de Pesquisa Algumas considerações sobre os elementos que o constitui, de acordo com a NBR 15287:2006.

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

AULA 02 O Conhecimento Científico

JúlioAraújo(UFC)

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO. Relatório Perfil Curricular

Classificação das Ciências. Tipos de conhecimento. Conhecimento Popular. Conhecimento Religioso. Conhecimento Filosófico. Metodologia Científica

LINGUAGEM E ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA

Prefácio à quarta edição em inglês

Porque o Sínodo de 2015 não fala de Contracepção?

DIREITO CONSTITUCIONAL

1. A hipótese da relatividade linguística de Sapir-Whorf:

O Projeto de TCC. Como elaborar??? Claudia Brandelero Rizzi. (com contribuições do Clodis e Adriana)

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ANEXO 1. Metas para um Currículo de Pensamento Crítico. (Taxonomia de Ennis)

Resenha do Suspiro dos Oprimidos. de Rubem Alves

1. INTRODUÇÃO 2. JUSTIFICATIVA 3. OBJETIVOS 4. METODOLOGIA 5. REVISÃO TEÓRICA 6. CONCLUSÃO 7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

RESENHA - ANÁLISE DO DISCURSO: PRINCÍPIOS E PROCEDIMENTOS REVIEW - DISCOURSE ANALYSIS: PRINCIPLES AND PROCEDURES

Função social: apresenta como objetivo básico instruir, ensinar, ou seja, levar o leitor a assimilar conhecimentos e valores instituídos.

22/08/2014. Tema 6: Ciência e Filosofia. Profa. Ma. Mariciane Mores Nunes. Ciência e Filosofia

Descobrindo a Verdade

Descobrindo a Verdade

2. Revisão de literatura e Referencial teórico

SELECÇÃO DE UM PROBLEMA DE INVESTIGAÇÃO ALGUMAS ORIENTAÇÕES 1

A Política segundo a Bíblia. Uma Visão Introdutória

TEORIA DA LINGUAGEM O REALISMO - NORMAN GEISLER. vivendopelapalavra.com. Revisão e diagramação por: Helio Clemente

Revista Filosofia Capital ISSN Vol. 1, Edição 2, Ano BREVE ANÁLISE FILOSÓFICA DA PESSOA HUMANA DO PERÍODO CLÁSSICO AO CONTEMPORÂNEO

FILOSOFIA COMENTÁRIO DA PROVA

A ORIGEM DA FILOSOFIA

Iniciação Científica

A ciência deveria valorizar a pesquisa experimental, visando proporcionar resultados objetivos para o homem.

Identificação do Candidato

Resenha / Critical Review

PROF. FÁBIO CAMPOS ARTIGO CIENTÍFICO

Metáfora. Companion to the Philosophy of Language, Oxford, Blackwell, 1998, pp

No contexto da fé cristã, a teologia não é o estudo de Deus como algo abstrato, mas é o estudo do Deus pessoal revelado na Escritura.

Grice: querer dizer. Projecto de Grice: explicar a significação em termos de intenções.

A ciência deveria valorizar a pesquisa experimental, visando proporcionar resultados objetivos para o homem.

Método e Metodologia Conceitos de método e seus princípios

TEMA DA SESSÃO. Patriarcado de Lisboa JUAN AMBROSIO / PAULO PAIVA 1º SEMESTRE ANO LETIVO Instituto Diocesano da Formação Cristã

SOCIOLOGIA AULA 02 INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA PROFESSOR FELIPE

COMENTÁRIO DA PROVA DE FILOSOFIA. Professores Daniel Hortêncio de Medeiros, Eduardo Emerick e Ricardo Luiz de Mello

Apologética Cristã IV. Metodologia

26/08/2013. Gnosiologia e Epistemologia. Prof. Msc Ayala Liberato Braga GNOSIOLOGIA: TEORIA DO CONHECIMENTO GNOSIOLOGIA: TEORIA DO CONHECIMENTO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL Nível Mestrado e Doutorado

A Lei Moral e a Existência de Deus

PROBLEMÁTICA E PROBLEMA DE PESQUISA

Religião e Sociedade

PÊCHEUX E A PLURIVOCIDADE DOS SENTIDOS 1

LISTA DE CONTEÚDOS PARA RECUPERAÇÃO FINAL Professor: Airton José Müller Componente Curricular: Filosofia

A APLICAÇÃO DO CONTEXTUALISMO LINGUÍSTICO E A BUSCA DA COMPREENSÃO DA I APOLOGIA DE JUSTINO MÁRTIR

Colégio Santa Dorotéia

PARECER DOS RECURSOS

THOMAS KUHN A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS

DIREITO FUNDAMENTAL AO TRABALHO DIGNO

Elementos fundamentais na construção da monografia

Introdução à Ética, Moral e Virtude

Dr. Antônio Renato Gusso 1

COLEGIADO DO CURSO DE DIREITO Autorizado pela Portaria no de 05/12/02 DOU de 06/12/02 Componente Curricular: Filosofia PLANO DE CURSO

Oi, Ficou curioso? Então conheça nosso universo.

19/05/2017 DOUGLAS LÉO RACIOCÍNIO LÓGICO

Lógica Formal e Booleana. Introdução

Como elaborar um projeto de pesquisa

A ilusão transcendental da Crítica da razão pura e os princípios P1 e P2: uma contraposição de interpretações

Filosofia e Sociologia PROFESSOR: Alexandre Linares

H003 Compreender a importância de se sentir inserido na cultura escrita, possibilitando usufruir de seus benefícios.

Roteiro 16. Livre-arbítrio. FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA Estudo Aprofundado da Doutrina Espírita Programa Filosofia e Ciência Espíritas

Leviathan Cadernos de Pesquisa Política N. 8, pp , André Drumond *

Método fenomenológico de investigação psicológica

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS- GRADUAÇÃO COORDENAÇÃO GERAL DE PESQUISA INICIAÇÃO CIENTÍFICA VOLUNTÁRIA - ICV

COLÉGIO SHALOM ENSINO MEDIO 1 ANO - filosofia. Profº: TONHÃO Disciplina: FILOSOFIA Aluno (a):. No.

Transcrição:

RESENHA A HISTÓRIA DAS IDÉIAS NA PERSPECTIVA DE QUENTIN SKINNER Vander Schulz Nöthling 1 SKINNER, Quentin. Meaning and Understand in the History of Ideas, in: Visions of Politics, Vol. 1, Cambridge: Cambridge University Press, 2005. Em seu célebre artigo Meaning and Understanding in the History of Ideas 2, Quentin Skinner aponta vários absurdos históricos decorrentes da idéia de que o valor da história das idéias reside no fato de que os textos clássicos em moral, política, religião e outros tais modos de pensamento contêm uma sabedoria perene na forma de idéias universais 3. Segundo Skinner, esse pressuposto inevitavelmente leva o historiador das idéias a se concentrar exclusivamente ou predominantemente no que o texto clássico diz acerca de um determinado tema, investigando sua estrutura interna como se o texto tivesse sido escrito por um contemporâneo. Esse tipo de abordagem, todavia, constitui uma fonte de equívocos que comprometem seriamente os resultados da investigação histórica, de modo que a história deixa de ser história, e torna-se uma mitologia. Skinner identifica três resultados possíveis das 1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais UFMG (2011) e professor do Seminário Diocesano Nossa Senhora das Dores (Diocese da Campanha). 2 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas, in: SKINNER, Q. Visions of Politics, vol. I. Cambridge: Cambridge University Press, 2005. 3 Ibid. p.57. 185 Página

abordagens focadas exclusivamente ou predominantemente na estrutura interna dos textos: a mitologia da doutrina, a mitologia da coerência e a mitologia da prolepsis. A mitologia da doutrina consiste, basicamente, em esperar que cada autor clássico (na história, digamos, da teoria moral ou política) deverá enunciar alguma doutrina acerca de cada tópico considerado constitutivo de sua disciplina 4. Esta mitologia assume duas formas distintas. Em primeiro lugar, o historiador corre o risco de converter observações dispersas feitas por um autor clássico em uma doutrina que tal autor jamais enunciou, e jamais poderia ter tido a intenção de enunciar. Ao privilegiar o estudo de afirmações que, de alguma maneira, parecem prenunciar doutrinas com as quais está familiarizado, o historiador torna-se particularmente susceptível ao anacronismo, ou seja, à impropriedade histórica decorrente da atribuição de uma determinada doutrina a um autor que, em sua época, jamais poderia tê-la formulado. É claro que a leitura cuidadosa de um texto clássico tem o seu valor no trabalho de interpretação das idéias nele contidas, mas não se deve ignorar e tampouco minimizar a importância do contexto em que tais textos foram escritos. Em segundo lugar, o historiador corre o risco de criticar um autor clássico por este ter falhado em enunciar uma doutrina considerada característica de sua disciplina. Trata-se, como se pode perceber facilmente, do inverso da primeira forma da mitologia da doutrina e, mais uma vez, o equívoco consiste em esperar de um autor clássico a formulação de uma doutrina que este jamais poderia ter formulado. A mitologia da coerência consiste na atribuição de uma consistência absoluta às obras de autores que, na verdade, falharam em apresentar suas idéias de modo perfeitamente consistente e sistemático. Este procedimento, observa Skinner, dá ao pensamento dos 4 Ibid. p.59. 186 P ágina

grandes filósofos uma coerência, e um ar geralmente de um sistema fechado, que eles podem jamais ter alcançado ou mesmo aspirado alcançar 5. Como resultado, alguns historiadores caem na tentação de tentar minimizar ou mesmo suprimir a importância de afirmações que parecem comprometer de modo decisivo a coerência interna de um texto clássico, ou de criticar um autor clássico por ter falhado na construção de um sistema totalmente coerente. Nesse sentido, ao se deparar com afirmações contraditórias, o historiador pode ser levado a descartar um dos pólos da contradição, ignorando as tensões que caracterizam as obras de todo grande autor. O absurdo deste tipo de abordagem reside no fato de que, ao tentar salvar a todo custo a coerência das idéias de um autor, o historiador arrisca-se a sacrificar parte do que o próprio autor deixou registrado. Por fim, a mitologia da prolepsis consiste no tipo de discussão que somos inclinados a produzir quando estamos mais interessados no significado retrospectivo de um dado episódio que em seu sentido para o agente em seu próprio tempo 6. O absurdo desse tipo de abordagem reside precisamente na descrição da obra de um autor clássico, assim como de sua relevância, de tal maneira que aquilo que o autor pode ter tido a intenção de dizer acaba sendo negligenciado. Muito embora o historiador das idéias possa analisar o significado que um texto do passado tem para nós, leitores do tempo atual, é um grande equívoco acreditar que tal explicação possa corresponder a uma descrição daquilo que o autor clássico tinha em mente ao escrever sua obra. Podemos citar, como exemplo, a análise proposta por George Wright em Religion, politics and Thomas Hobbes 7, segundo a qual os esforços empreendidos por Hobbes para explicitar a relação entre religião e política, igreja e estado, possui uma relevância particularmente especial para os leitores de hoje, uma vez que diversas formas de 5 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas ; op. cit. p. 68. 6 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas ; op. cit. p.73. 7 WRIGHT, G. Religion, Politics and Thomas Hobbes. The Netherlands: Springer, 2006. 187 P ágina

fundamentalismo religioso vêem ganhando controle de instituições políticas em diversas partes do mundo. Em princípio, não há nada de errado com essa análise, contanto que não se chegue ao extremo de afirmar que, ao escrever sua obra, Hobbes tivesse pretendido atacar o mesmo tipo de fundamentalismo que tanto tem preocupado o mundo contemporâneo. É verdade que o fundamentalismo religioso desempenhou um importante papel ao longo da Revolução Inglesa, mas seria absurdo confundir o significado que nós podemos encontrar nas idéias hobbesianas acerca da relação entre religião e política com o significado que estas mesmas idéias tinham para seu autor. O método histórico proposto por Skinner consiste fundamentalmente em tentar situar esses textos [históricos] em contextos que nos permitam, por sua vez, identificar o que seus autores estavam fazendo ao escrevê-los 8. Skinner esclarece que se quisermos compreender tais textos, devemos ser capazes de oferecer uma explicação não meramente do significado do que foi dito, mas também do que o autor em questão pode ter tido a intenção de dizer ao dizer o que disse 9. Segundo o autor, devemos distinguir entre duas dimensões específicas do trabalho hermenêutico: a dimensão do significado, ou seja, daquilo que o texto diz, e a dimensão do ato lingüístico, ou seja, daquilo que o autor faz ao dizer o que diz. O método histórico tende a concentrar-se na dimensão performativa dos textos clássicos. Mas o que exatamente significa investigar aquilo que o autor faz ao dizer o que diz? Basicamente, este tipo de abordagem significa tentar explicitar as questões sobre as quais os autores clássicos se debruçaram, e para as quais tentaram formular soluções. Em primeiro lugar, o historiador das idéias deve tentar explicitar o contexto discursivo no qual o texto foi produzido, a fim de descobrir tudo aquilo que o autor pode ter tido a intenção de comunicar a seus leitores 8 SKINNER, Q., Razão e Retórica na Filosofia de Hobbes; tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Editora UNESP, 1999, p. 22. 9 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas ; op. cit. p. 79. 188 Página

contemporâneos. Em segundo lugar, é preciso identificar, entre as várias possibilidades de significado descobertas, aquela que corresponde à afirmação em questão. Daí a importância do conhecimento histórico acerca do período em que tais textos foram escritos. Pois é precisamente a história que nos permite identificar os problemas que atraíram a atenção dos autores clássicos. A esse propósito, observa Skinner que o contexto social figura como a estrutura última a partir da qual podemos decidir quais significados convencionalmente reconhecíveis alguém poderia, em princípio, ter desejado comunicar 10. 10 SKINNER, Q. Meaning and Understanding in the History of Ideas ; op. cit., p. 87. 189 P ágina