OBRA ANALISADA: Farsa de Inês Pereira --1523 GÊNERO Teatro AUTOR Gil Vicente DADOS BIOGRÁFICOS Nome completo: Gil Vicente BIBLIOGRAFIA Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação (1502) Auto Pastoril Castelhano (1502) Auto dos Reis Magos (1503) Auto de São Martinho (1504) Quem Tem Farelos? (1505) Auto da Alma (1508) Auto da Índia (1509) Auto da Fé (1510) O Velho da Horta (1512) Exortação da Guerra (1513) Comédia do Viúvo (1514) Auto da Fama (1516) Auto da Barca do Inferno (1516) Auto da Barca do Purgatório (1518) Auto da Barca da Glória (1519) Cortes de Júpiter (1521) Comédia de Rubena (1521) Pranto de Maria Parda Farsa de Inês Pereira (1523) Auto Pastoril Português (1523) Frágua de Amor (1524) Farsa do Juiz da Beira (1525) Farsa do Templo de Apolo (1526) Auto da Nau de Amores (1527) Auto da História de Deus (1527) Tragicomédia Pastoril da Serra da Estrela (1527) Farsa dos Almocreves (1527) Auto da Feira (1527) Farsa do Clérigo da Beira (1529) Auto do Triunfo do Inverno (1529) Auto da Lusitânia, intercalado com o entremez Todo-o-Mundo e Ninguém (1532) Auto de Amadis de Gaula (1533) Romagem dos Agravados (1533) Auto da Cananea (1534) Auto de Mofina Mendes (1534) Floresta de Enganos (1536) RESENHA O talento de Gil Vicente foi posto à prova. Havia a suspeita de que suas peças não fossem de sua própria autoria. Assim é que a Farsa de Inês Pereira foi escrita a partir de um mote escolhido pelos nobres: mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube. Seguindo sua tendência de analisar o comportamento humano, o autor elaborou a
temática da peça de modo a abordar a sensatez na conformação da vida à classe social a que se pertence. O mote fornecido corresponde à síntese da conclusão da peça: é melhor levar a vida ao lado de um lavrador gentil que pudesse sustentá-la, do que se unir a um fidalgo que, a despeito da polidez nos costumes, a tratasse mal. De início, ficamos sabendo que Inês Pereira mora numa casa da vila com a mãe. A composição da personagem feminina rompe com alguns paradigmas em relação à imagem que se tem da mulher de então. Inês é pessoa de muita atitude, nas palavras de sua mãe: MÃE: Hui! E ela sabe latim E gramática e alfaqui E tudo quanto ela quer! (p. 94) Portanto, Inês é dona de suas próprias vontades, mas ainda assim se encontra submetida à situação destinada às mulheres de então. A personagem se queixa do trabalho e da condição de clausura doméstica a em que se encontra. Para se ver livre dessas condições, decide se casar. Sua mãe concorda com a decisão, mas a adverte de que para conseguir um bom casamento, uma mulher deveria ser bela, cuidar de seus afazeres e ter características de boa geradora de filhos. Contudo Inês não parece interessada em ceder às condições impostas. Inês mostra que não espera ser escolhida, ela é quem deve escolher com quem se casará: INÊS: Mãe, eu me não casarei Senão com homem discreto, E assim vo-lo prometo Ou antes o deixarei. (p. 109) Lianor Vaz é a personagem casamenteira que vai à casa de Inês proporlhe um noivo. Pêro Marques, um rico camponês é o moço interessado no matrimônio com Inês. Ao ler a carta de Pêro Marques, Inês se apercebe da falta de traquejo social do moço e concorda em recebê-lo, mas apenas para divertir-se da rusticidade de seu pretendente.
Após desencorajar Pêro Marques quanto ao casamento, Inês recebe os judeus casamenteiros Latão e Vidal, que vão lhe propor o enlace matrimonial com Brás da Mata. Decide-se por se casar com tal escudeiro. Mas a personagem principal da farsa encontra no marido um ser que a reprime. As expectativas de Inês a essa altura são frustradas. É por isso que Inês se sente aliviada quando o marido viaja para a África, pois o escudeiro desejava se fazer cavaleiro na guerra. Entretanto, o marido morre durante a viajem, vítima do ataque de um mouro, enquanto fugia da batalha. Inês recebe a carta a respeito do acontecido e não disfarça seu alívio. Ela se casa, então, com Pêro Marques, logo arquitetando a personalidade fraca do novo marido para explorá-lo. Entra em cena a figura do ermitão, que se tornara padre por uma decepção amorosa com Inês, pois ele fora um de seus namorados. É com o ermitão que Inês se envolve amorosamente. O encontro entre os dois é marcado pela ingenuidade de Pêro Marques que leva a esposa até o seu amante, chegando a carregá-la nas costas para atravessar um rio. É nesse sentido que o mote se torna emblemático: mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube. ESTILO DE ÉPOCA Em aproximadamente 34 anos de atividade, Gil Vicente escreveu por volta de 45 peças, que vão desde autos religiosos, até as farsas, capazes de expor características da vida palaciana. Além disso, o autor também escreveu algumas narrativas de cavalaria. Suas peças possuem características que nos permitem classificá-las em algumas modalidades, tais como: a mística, a sátira, a comédia e a farsa. Se considerarmos a variedade de estilos da obra de Gil Vicente, podemos identificar duas características comuns; suas referências são a sátira e o lirismo. É importante ressaltar que farsa, neste contexto, é um gênero textual teatral (o farsesco) de caráter predominantemente de caricatura e crítica aos costumes e valores da corte. Assim, percebemos que a tradição do teatro europeu do final da Idade Média forneceu diretrizes ao teatro vicentino.
Apesar de terem se originado na corte, a comédia e a farsa vicentina têm características populares que se sobressaem. Nas obras de Gil Vicente, há a preocupação em representar um retrato satírico da sociedade através de personagens-tipo. Para isso, o autor recorria a muito humor e ironia. Assim, divertia e provocava a elite palaciana. Afinal, o público das peças vicentinas era quem detinha o poder. A fase de maior prestígio da corte portuguesa, por conta da expansão marítima, ocorreu durante o reinado de D. Manuel I (1495 1521). A Farsa de Inês Pereira foi encenada pela primeira vez em 1523. As viagens de reconhecimento e colonização foram os acontecimentos mais importantes para os portugueses nos séculos XV e XVI. Tais acontecimentos exercem influência nos aspectos culturais, econômicos e sociais da sociedade portuguesa. Portugal, em fins do século XV e início do século XVI, via a corte como local de excelência na circulação de ideias. No paço real, se concentravam as atividades intelectuais. Essa centralização de interesses na corte favoreceu que homens de letras se envolvessem em empreendimentos políticos e militares. Serviam aos reis portugueses simultaneamente como intelectuais e empreendedores marítimos e administrativos. Trata-se de autores como João de Barros, que além de gramático e era alto funcionário de administração; o poeta Camões, bem como o dramaturgo Gil Vicente, entre outros. Tais autores contribuíram para o desenvolvimento do humanismo português em literatura. Humanismo surgiu na Itália no século XIV. Trata-se de um movimento cultural e artístico que se caracteriza pela retomada de textos gregos e latinos, transformados em paradigma da boa literatura. O humanismo português produziu manifestação literária de vários gêneros: prosa, poesia e teatro. O teatro popular de Gil Vicente é um dos grandes representantes da literatura humanista. INTERTEXTUALIDADE Há estudos que mostram um paralelo entre a personagem Inês Pereira, de Gil Vicente em Farsa de Inês Pereira e a personagem Luísa, de Eça de Queirós, em O Primo Basílio. O que as aproximam seriam suas personalidades, características físicas, além de seus papéis como
formadoras de opinião. O romance O Primo Basílio foi publicado em 1878, causando escândalos na sociedade portuguesa. A temática do romance está centrada em Luísa, que valorizava futilidades e se casou - por conveniência e por se deixar levar pela situação - com o engenheiro Jorge. O marido viaja para o Alentejo e Luísa se envolve com Basílio, antigo namorado que acabara de chegar do Brasil. Assim como a Farsa de Inês Pereira, o romance O Primo Basílio aborda a temática do adultério. Ambos os autores constroem personagens que desobedecem os padrões de comportamento destinados às mulheres de suas respectivas épocas. VISÃO CRÍTICA O tema da peça Farsa de Inês Pereira visa a manter uma relação próxima à da realidade vivida pela sociedade portuguesa à época em que Gil Vicente viveu. Pode-se perceber, por exemplo, a questão do desejo de ascensão social daqueles que viviam e trabalhavam em torno da corte. Nesse caso, o casamento é a forma de conseguir essa ascensão. Assim, o casamento é apenas um contrato celebrado entre duas partes dispostas a se casar, ou, como se dizia à época, duas pessoas casadoiras. Percebe-se como Inês trata de obter o mais vantajoso enlace. Essa tradição cultural relacionada ao casamento é mostrada na peça com fortes traços de oportunismo. A esse oportunismo, relacionado ao desejo de ascensão na corte, se soma o desprezo pela vida do campo. Como se pode concluir, o trabalho, nessa organização social, não faz parte das práticas privilegiadas da vida palaciana. Trabalho, nesse sentido, é sinônimo de estar distante da vida valorizada dos locais que detinham poder e influência. Ainda que conseguisse riquezas através da prosperidade no campo, o possuidor de terras recebe o estigma social de estar à margem do que ocorria nos grandes centros de poder e influência, isto é, nas imediações da vida no paço real. Há, assim, uma valorização dos costumes cortesãos e um desprezo pelos modos rústicos. Em certa medida, o teatro vicentino busca analisar os comportamentos humanos. Mesmo em seus autos, Gil Vicente não está interessado no âmbito divino. Seu foco é a maneira como o homem se relaciona com os dogmas religiosos. Da mesma maneira, mesmo nas
peças em que a temática central envolve a valorização da vida cortesã, como na Farsa de Inês Pereira, o objetivo do autor não é retratar a vida cortesã em si mesma, e sim mostrar como as pessoas se comportam diante dos seus ímpetos pela trapaça que resulta em benefício, a aparência, a futilidade e a ociosidade. Para isso, Gil Vicente tematiza tais desvios de conduta. Num primeiro momento, há uma ridicularização às pretensões de Inês e ao refinamento de mentira de Brás da Mata. O autor adverte o público das consequências de se ignorarem os princípios que norteavam os costumes da sociedade portuguesa. Nota-se, porém, que a condenação moral proposta na peça não é absoluta. Com efeito, Inês recebe a frustração de seu primeiro casamento, mas, mais amadurecida, não só se aperfeiçoa em relação a buscar o que deseja, como também se vinga das amarras dos costumes que a querem casta, fiel e dedicada ao marido. Portanto, na Farsa de Inês Pereira, através do humor e da ironia, Gil Vicente revela condutas da sociedade de então. Assim é que o ingênuo camponês é exposto ao ridículo; a pretensiosa moça se torna cada vez mais apta a conseguir o que deseja; o escudeiro ardiloso e cheio de pompa tem o fim miserável de um covarde. A peça retrata ainda os judeus sagazes; a mãe prudente e resignada; o falso padre e a casamenteira fantasiosa. Tais personagens-tipo se relacionam aos valores dos segmentos sociais que os representam. A marca de Inês é a insurgência contra o padrão de vida das mulheres de seu tempo. Sonhadora e desobediente, a personagem principal da peça despreza os conselhos da mãe quanto ao casamento seguro com um homem simples. Realiza seu desejo de se casar com um fidalgo, mas vê suas ambições frustradas. Com a experiência, aprende que há artifícios para manter as aparências através do casamento seguro, e, mesmo assim, conseguir a liberdade que deseja.